Motherhood and mothering forms since the middle ages to the present
Silvia Mayumi Obana Gradvohl1, I, II, III, IV; Maria José Duarte Osis2, II; Maria Yolanda Makuch3, II
I Professora do curso de Psicologia da Universidade São Francisco (USF – Campinas e Itatiba)
II Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP) SP - Brasil
III Universidade Paris Diderot (Paris 7)
IV Bolsa Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior PDSE/CAPES
RESUMO
Tradicionalmente a maternidade e a maternagem são vistas como decorrentes de relações biológicas e afetivas estabelecidas entre mãe e filho. Atualmente, com o avanço das tecnologias reprodutivas e as novas configurações familiares, observa-se o desenvolvimento de novas possibilidades de maternidade e maternagem que questionam os vínculos biológicos e os papéis de gênero nos cuidados ao filho. A reflexão sobre a construção social da maternidade e da maternagem ao longo do tempo pode favorecer a discussão sobre as demandas das novas configurações familiares. O objetivo deste artigo é realizar uma reflexão sobre os diferentes valores da maternidade e as diversas formas de maternagem desde a Idade Média até a atualidade, nas sociedades ocidentais.
Palavras-chave: Maternidade, Maternagem, Mulher.
ABSTRACT
Traditionally motherhood and mothering are seen as resulting from biological and affective relations between mother and son. Today, with the advancement of reproductive technologies and new family configurations observed the development of new sources of motherhood and maternal bonds questioning the biological and gender roles in the care of child. The reflection on the social construction of motherhood and mothering over time can encourage discussion about the demands of new family configurations. The purpose of this article is a reflection on the different values of motherhood and the various forms of mothering since the Middle Ages to the present, in western societies.
Keywords: Maternity, Mothering, Woman.
Introdução
De modo geral, observa-se que o desejo pela maternidade pode ocorrer antes mesmo da existência de um corpo grávido, com as brincadeiras de bonecas na infância (Gradvohl, Osis & Makuch, 2013). Entretanto, é durante a gravidez, com a presença do filho em seu corpo, que a mulher começa a se sentir mais intensamente como mãe (Lo Bianco, 1985). A intensidade e o momento em que se vivenciará a maternidade estão diretamente relacionados às influências culturais do meio em que a mulher se encontra e também de sua história pessoal e afetiva (Badinter, 1987).
Enquanto a maternidade é tradicionalmente permeada pela relação consanguínea entre mãe e filho, a maternagem é estabelecida no vínculo afetivo do cuidado e acolhimento ao filho por uma mãe. O modo como se dará esse cuidado, segundo a antropóloga Kitzinger (1978), dependerá dos valores socialmente relacionados ao que é ser mulher e ao significado de um filho em um determinado contexto cultural. Desta forma, espera-se que a valoração e a vivência da maternidade e da maternagem variem historicamente e de acordo com a inserção das mulheres em culturas específicas. O objetivo deste artigo é realizar uma reflexão sobre os diferentes valores da maternidade e as diversas formas de maternagem desde a Idade Média até a atualidade nas sociedades ocidentais.
A desvalorização da maternidade e da maternagem
Durante a Idade Média, a família europeia era constituída a partir dos interesses econômicos, excluindo qualquer tipo de relação afetiva entre os cônjuges e entre estes e os filhos. Os casamentos eram arranjados e visavam à manutenção dos bens familiares. Neste cenário, as mulheres e as crianças figuravam igualmente como pessoas de pouca importância, que se subordinavam ao marido/pai. Nenhum valor especial era atribuído à maternidade e tampouco aos bebês. A maternagem não era exercida pelas mães, que a delegava às camponesas pobres. Os bebês eram alimentados pelas amas-de-leite e permaneciam sob os cuidados de terceiros até atingirem cerca de oito anos de idade. Após essa idade as crianças eram integradas às atividades domésticas cooperando como força de trabalho e sendo consideradas adultos em miniatura (Ariès, 1981).
A ausência da maternagem pela mãe e a falta de cuidados especiais colaboravam para as altas taxas de mortalidade dos nascidos vivos naquela época (Badinter, 1987). A justificativa para a negligência das mães era que o bebê não merecia tamanha atenção, uma vez que, por ser frágil, teria poucas chances de sobrevivência (Ariès, 1981). Também na Idade Média era comum o infanticídio e a prática do abandono da criança à própria sorte como forma de limitar o número de filhos (Bonnet, 1990). As famílias eram numerosas e o acolhimento às pessoas nas casas não se restringia aos que possuíam os mesmos laços sanguíneos, sendo dominante a vida em comunidade. Também não existia privacidade nas casas e todas as pessoas tinham livre acesso a todos os cômodos (Ariès, 1981).
Valorização da maternidade e maternagem
Entre os séculos XVII e XIX, com o desenvolvimento do capitalismo e a ascensão da burguesia, instaura-se a divisão entre esferas públicas e privadas. Cabia ao estado administrar as relações de produção e à família as condições de sobrevivência. Deste modo, a criança, até então criada em comunidade, passa a ser responsabilidade dos pais. Ao mesmo tempo, consolida-se a diferenciação de papéis sociais. Ao homem caberia o sustento da casa, enquanto à mulher os cuidados da família (Scavone, 2001).
Esse cuidado da mulher com os filhos não se restringiria apenas ao atendimento das necessidades básicas do bebê, mas também a uma disponibilidade psíquica, a qual passa a ser denominada maternagem (Winnicott, 1956/2000).
Nesse período, tem início uma alteração na imagem da mulher como mãe. A maternagem passa a ser extremamente valorizada e os cuidados relativos a essa atividade passam a ser exclusivos da mãe. Ela é quem deve cuidar e amamentar os filhos (Correia, 1998). O desenvolvimento da nova função culmina na rápida associação entre mulheres, e maternidade e maternagem. Ao mesmo tempo, iniciam-se por volta de 1760 as publicações médicas definindo como deveria ser esse cuidado e estabelecendo a amamentação como um dever das mães. Boas mães seriam aquelas que nutrissem um amor incondicional pelos filhos. É nessa época que surge o mito do instinto materno, segundo o qual a maternidade era uma tendência feminina inata, assim como a maternagem, pois se somente as mulheres poderiam gestar, eram elas as pessoas mais apropriadas para criar os bebês (Badinter, 1987).
Dentro desse contexto, no início do século XIX, evidencia-se cada vez mais a exaltação social da maternidade e da maternagem. A mulher adquire maior valorização social, passando a ser a responsável pelo lar e pela criação dos novos cidadãos (Moura, 2004). Com a incorporação das novas atividades, as mulheres passam a desejar adjetivos como “mulher-mãe”, “rainha do lar”, que agregavam respeito às chamadas novas mulheres modernas (Freire, 2008).
Quanto mais responsabilidades a mulher assumia dentro do lar como mãe e educadora, maior era o status adquirido na sociedade, que valorizava o devotamento e sacrifício em benefício dos filhos e da família (Moura, 2004).
A valorização da vida familiar contribui para que tenha início o desenvolvimento da vida privada também. As casas passam a ser dividas por cômodos e ocorre a maior proximidade entre os membros familiares. Os vínculos tornam-se mais afetivos e os casamentos arranjados perdem espaço (Ariès, 1981). As crianças passam a ser consideradas como promessas de realização dos adultos, merecendo todo cuidado e atenção da mãe. Além do cuidado materno, o estado passa a ter interesse na educação dos futuros cidadãos. Isso ocorre porque a moralidade da família passa a ser essencial à consolidação do sistema capitalista.
A valorização da maternidade na Europa, despovoada após a primeira guerra mundial, também respondia aos interesses pró-natalistas do estado capitalista. Para esse sistema, o aumento da população favoreceria o enriquecimento da nação. Respondendo aos objetivos do estado capitalista, a ideologia maternalista na Europa, além de incentivar o aumento das taxas de fecundidade, transformou a maternidade em um dever patriótico. Às mães caberia o futuro da nação. Seriam elas as responsáveis pelos filhos saudáveis que se tornariam cidadãos úteis à pátria.
Dentro desse contexto, evidencia-se uma pressão social para que as mulheres se tornassem mães. Isto desencadeou nas mulheres que não tinham o desejo da maternidade a sensação de inadequação social (Correia, 1998) ou culpa por não terem condições de dedicarem-se única e exclusivamente à maternagem devido à chamada jornada dupla de trabalho (no lar e fora do lar) (Moura, 2004).
Questionamento da maternidade e da maternagem
Respondendo à pressão social para a maternidade, iniciam-se paralelamente dois tipos de movimentos feministas: o movimento radical, que associava a maternidade à submissão ao homem (Szapiro, 2008), e o movimento maternalista, que defendia a maternidade e a maternagem como principais papéis sociais femininos, reivindicando o reconhecimento dessas funções como um trabalho que deveria ser remunerado (Bock, 1991).
O movimento radical compreendia a maternidade e a maternagem como responsáveis por tornarem as mulheres dependentes dos homens, uma vez que a dependência do filho à mãe por um longo período de tempo a impossibilitava de realizar outras atividades. Segundo esse movimento, a solução para as mulheres se encontrava no controle da reprodução (Scavone, 2001). Assim, a procriação não deveria mais ser considerada como destino inevitável da mulher, mas sim como uma opção (Szapiro, 2008).
Por outro lado, o movimento maternalista considerava a maternagem como uma das atividades essenciais à vida feminina. Tão essencial e importante que deveria ser remunerado pelo Estado como um trabalho, já que era também uma atividade social. O objetivo desse movimento era, portanto, a remuneração dos trabalhos domésticos. Não havia questionamentos quanto à limitação da mulher ao trabalho doméstico como no movimento radical.
As reinvindicações das feministas radicais, como a luta pela contracepção livre e gratuita e a liberação do aborto, no início do século XX, tinham como premissa fundamental a livre escolha pela maternidade (Scavone, 2001). Tais reinvindicações progressivamente abriram espaços para questionamentos a respeito da imposição social às mulheres para a maternidade e da atividade exclusiva da maternagem às mães, contrariando os preceitos do instinto materno.
A paternagem participativa
Se antes houve a reinvindicação das mulheres ao direito de escolher quando a maternidade deveria ocorrer, porque elas desejavam realizar outras atividades, ao ocorrer de fato o ingresso das mulheres no mercado de trabalho por volta de 1960, a demanda passa a ser sobre a divisão das tarefas domésticas e da maternagem com os homens (Freitas, 2007).
A participação masculina nessas novas demandas não ocorre de modo igual. A presença masculina ocorre de forma mais efetiva no que se refere aos cuidados com os filhos, se comparada à participação nas atividades domésticas (Araújo & Scalon, 2005). Válido ressaltar, entretanto, que essa proximidade masculina no cuidado com o filho é mais frequente na criança em idade escolar, quando já deixaram de ser alimentados exclusivamente pelo leite materno (Demo, 1992).
Já a menor participação dos homens nas tarefas domésticas é atribuída ao fato de que estas atividades ainda são consideradas essencialmente femininas, permanecendo ainda a segregação por gênero (Jablonski, 2010).
Embora ainda incipiente, nota-se que a maior participação dos homens nos cuidados ao filho, tem possibilitado a desintegração de antigos estereótipos paternos e maternos, favorecendo a paternidade participativa. Neste novo modelo de paternidade, espera-se do homem não apenas o sustento financeiro da família, como na família patriarcal, mas uma paternidade que se expresse também nos cuidados educacionais e afetivos com os filhos (Freitas et al.,2009)
É a partir da paternidade participativa que tem início o conceito de parentalidade por volta dos anos 60. O termo parentalidade surgiu na França e se refere à dimensão do processo e construção do relacionamento entre pais e filhos (Zornig, 2010). Nesse conceito, o cuidado com os filhos é exercido tanto pelo pai quanto pela mãe. Nesse sentido, a maternagem começa a ser concebida como uma tarefa a ser exercida independente do gênero (Scavone, 2001).
Diferentes tipos de maternidade e maternagem
A partir dos anos 90 do século XX, com o avanço da medicina reprodutiva possibilitando novas formas de procriação, vem à tona a questão do parentesco sanguíneo na maternidade e paternidade. (Pozzi, 2009). As tecnologias reprodutivas separam a reprodução da sexualidade, rompendo com o determinismo biológico. Além da quebra da certeza universal de que mãe seria a mulher que pariu a criança (Freire, 2008). Com isso, há o surgimento da família artificial, com personagens que se distinguem em mãe biológica (mãe que “empresta” o útero ou doa os óvulos) exercendo a maternidade substitutiva (Freire, 2008) e o pai biológico (pai que doa os espermatozoides) cumprindo a paternidade genética (Scavone, 2001). Do mesmo modo, se estabelecem a mãe e o pai sociais, aos quais cabe exercer a atividade de maternagem com o bebê.
Recentes conquistas na medicina reprodutiva ainda levantam questões bem mais complexas como a possibilidade de um mesmo bebê ter três pais genéticos. Trata-se de projeto inglês que poderá legalizar a modificação do genoma humano por meio da doação mitocondrial de uma mulher saudável a um casal cuja mulher seja portadora de algum problema grave. Através dessa técnica o núcleo do óvulo da mãe seria inserido no óvulo da doadora saudável e, posteriormente, seria fertilizado com o espermatozoide do pai. No projeto, a doadora seria considerada como um doador de órgãos (Pubmed Health, 2014).
Ainda ao final do século XX, observa-se que também as uniões homoafetivas suscitam questões bem mais complexas em relação à maternagem do que a paternidade participativa e as questões de gênero a ela relacionadas. Para os casais homoafetivos o desejo da constituição de uma família é dificultado pela genuína impossibilidade de gerar um filho que seja fruto da relação que vivenciam. A vinda de um filho para essas uniões é sempre dependente de uma terceira pessoa com quem um dos membros do casal homoafetivo procriaria. Ou ainda de terceiros, no caso de adoção (Passos, 2005).
Esse novo tipo de família suscita a questão do exercício da maternagem por dois pais ou duas mães. Para Roudinesco (2003) essas novas configurações questionam as funções paternas e maternas, antes rigidamente demarcadas, e apontam para uma forma mais flexível e afetuosa de relacionamento. Assim, é possível pensar em uma horizontalidade das hierarquias e na ausência de papéis fixos entre os membros, possibilitando distintas referências de autoridade. Além disso, as filiações ocorreriam não apenas entre os familiares, mas também entre grupos de amizade (Passos, 2005).
Também é preciso considerar que, atualmente, nas camadas mais pobres a maternagem é dividida com os vizinhos da comunidade, avós, tios e filhos mais velhos (Almeida, 2007). Por outro lado, nota-se que em famílias com maior poder aquisitivo, a maternagem é dividida com creches, escolas de artes, música, idiomas, esporte e outras atividades que mantenham a criança ocupada. Esse tipo de maternagem é denominado de terceirização do cuidado e traz como pano de fundo a preocupação dos pais com o futuro profissional dos filhos (Andrade, Mishima-Gomes & Barbieri, 2012).
Considerações finais
Os papéis sociais de homens e mulheres em relação à procriação e cuidado dos filhos se modificam ao longo da história e do desenvolvimento socioeconômico dos grupos humanos. A maternidade já teve diferentes valores sociais e hoje pode ser avaliada como desvalorizada e ao mesmo tempo valorizada. Desvalorizada, se pensarmos nas mães de gestação que muito se assemelham às mães da Idade Média, que basicamente pariam os filhos e depois os entregavam aos cuidados de terceiros. Por outro lado valorizada, se considerarmos a maternidade genética, quando a mãe social faz questão de que o filho tenha seu material genético.
Quanto à maternagem, evidencia-se que não é mais exercida unicamente pela mãe, sendo dividida com outras pessoas ou instituições, prática também já realizada na Idade Média. Entretanto, ao contrário do que ocorria naquela época, não podemos considerar que por conta disso possa ser considerada como desvalorizada, pois, muitas vezes, deixar o cuidado do filho sob a supervisão de terceiros é a única alternativa para que a mãe possa trabalhar e assim contribuir para o sustento (essencial ou não) da família.
As mudanças na maneira como as sociedades ocidentais lidam com as questões relativas à procriação e ao cuidado com os filhos aparecem como resultado da interação entre as condições materiais da existência e as transformações do pensamento e do imaginário social. Isto faz com que os significados atribuídos aos relacionamentos e aos papéis sociais se modifiquem e passem a demandar novas adaptações nos diversos contextos sociais. A reflexão sobre a construção social da maternidade e da maternagem ao longo do tempo pode favorecer a discussão sobre as demandas das novas configurações familiares frente a uma realidade que muitas vezes só atende aos tradicionais modelos familiares.
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Silvia Mayumi Obana Gradvohl
E-mail: silviagradvohl@gmail.com
Maria José Duarte Osis
E-mail: mjosis@cemicamp.org.br
Maria Yolanda Makuch
E-mail: mmakuch@hotmail.com
1 Psicóloga, professora do curso de Psicologia da Universidade São Francisco (USF – Campinas e Itatiba). Mestre em Ciências da Saúde pelo Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), atualmente é aluna de doutorado pelo mesmo Departamento e Universidade (UNICAMP) SP- Brasil, com período de doutorado sanduíche na Universidade Paris Diderot (Paris 7) - bolsa PDSE/CAPES.
2 Socióloga, Ph.D. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), SP – Brasil.
3 Psicóloga, Ph.D. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), SP – Brasil.
Revista Pensando Familia
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