domingo, 23 de fevereiro de 2014

A primeira escola

Jardins de infância eram vistos como rivais da família e ficaram restritos a privilegiados.

Maria Helena Camara Bastos

A educação infantil é considerada hoje fundamental para a formação escolar do estudante. Mas em 1875, um jardim de infância causou uma verdadeira reviravolta na educação brasileira, como reconheceu um artigo no jornal Cruzeiro quatro anos depois. O texto mencionava “um chalé expressamente construído e mobiliado para o Jardim de Crianças”, que vinha sendo bastante prestigiado pelo imperador e por diversas autoridades. A Gazeta de Notícias chegou a noticiar, em 1881, que “Sua Majestade retirou-se à 1 hora da tarde, tendo antes visitado todas as dependências do estabelecimento e manifestado sua satisfação por vê-lo tão bem montado e em tão lisonjeiras condições”. Criado quatro anos antes pelo médico e educador Joaquim José de Menezes Vieira (1848-1897) e sua esposa, Carlota, o Colégio Menezes Vieira (1875-1887) funcionava no Centro do Rio de Janeiro, na Rua dos Inválidos, 26. Oferecendo os ensinos primário, secundário e profissional em três sistemas – internato, semi-internato e externato –, a escola foi o primeiro jardim de infância do Brasil.

Menezes Vieira se inspirou na iniciativa do pedagogo Friedrich Froebel (1782-1852), que havia fundado o primeiro kindergarten (jardim de infância) na Alemanha em 1837. Até então, nenhum projeto como esse havia emplacado no Brasil. Tanto foi o sucesso da empreitada, que outros educadores começaram a tocar projetos semelhantes na capital do Império a partir da década de 1880. Bernardino de Almeida, por exemplo, fundou uma escola para crianças pobres em 1881. O professor Hemeterio José dos Santos criou, dois anos depois, o Colégio Froebel. Em 1888, foi a vez de Maria Guilhermina Loureiro Andrade, que fundou o Kindergarten Modelo.

A ideia de educação infantil ainda não estava suficientemente incorporada ao debate pedagógico no século XIX; era como se a sua existência ameaçasse o papel da família ou a própria função da escola primária. E mesmo a iniciativa e a defesa intransigente dos jardins de infância feita por Menezes Vieira e muitos outros não bastaram para a sua implementação em larga escala no Brasil daquela época. Defendidos e atacados, eles permaneceram por longo tempo restritos a um número de alunos privilegiados.

O jardim de infância do Colégio Menezes Vieira só admitia meninos e funcionava em um prédio cuja forma era a de um pavilhão hexagonal. Construído no centro de um jardim, ele tinha um vestíbulo, uma secretaria, um vestiário, salas de trabalho, um pátio coberto para os exercícios físicos, um refeitório e dormitórios, além de latrinas para os alunos e para as professoras. Em suas dependências, crianças de três a seis anos eram introduzidas à ginástica, à pintura, à jardinagem, ao desenho, aos exercícios de linguagem e de cálculo, à escrita, à leitura, à História, à Geografia e à religião.

Uma parte do terreno do colégio era dividida em canteiros para os exercícios de “jardinicultura”, que eram realizados pelos alunos mais velhos, sob a orientação das professoras. Nas salas de aula, que acomodavam até trinta alunos, havia pequenos bancos e mesas com cantos arredondados, que permitiam que “a professora entretivesse com os educandos como uma boa e carinhosa mãe entre os filhos”, como consta no Manual para os Jardins de Infância, de Menezes Vieira (1882). As salas eram decoradas com os trabalhos dos alunos e com quadros que exibiam frases de Froebel, como “A vida da criança deve ser uma festa perpétua” e “Oh! O Jardim há de dar o que os cárceres não deram”.

Dona Carlota seguia princípios como esses e também os ensinamentos do pastor Friederich Oberlin (1740-1826), o primeiro a abrir, em 1770, uma sala de asilo em uma aldeia da Alsácia, na França, para cuidar das crianças pequenas enquanto os pais trabalhavam. Posteriormente, muitas outras professoras tiveram a mesma orientação. Desde então, a atuação da “jardineira” está vinculada à de educadora, que era vista como uma extensão da ação materna. Sobre o tema, inclusive, a Gazeta de Notícias publicou em 10 de dezembro de 1979: “A professora de um jardim de crianças faz, nada mais, nada menos, do que o papel de uma mãe zelosa do futuro de seu filho”. Essa filosofia seguia uma tendência da época: a de redimensionar o papel da mulher, que estava deixando de se restringir à esfera familiar (privada) e se estendendo para a esfera escolar (pública). Isso criou algumas expectativas a respeito das características dessa profissional, que deve ser meiga, carinhosa e abnegada. Ainda hoje, essas características permanecem formando um “modelo”, pois se fala em “maternagem”.

Menezes Vieira conhecia profundamente o que havia de mais avançado na literatura pedagógica daquele final do século XIX. No seu jardim de crianças, ele se valia de algumas novidades com as quais entrava em contato toda vez que viajava pela Europa. Uma das que mais influenciaram seu trabalho foi a metodologia propagada pelo educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que vinha fazendo experiências pioneiras no Internato de Yvedon, na Suíça. O canto, a ginástica, os jogos e as brincadeiras também representaram um material valioso para o educador.

Além dessas práticas, Menezes recomendava que as professoras se valessem de “conversas morais e instrutivas, (...) exercícios manuais de construção, de modelação, de recorte, de picado, de traçado, de desenho”. Para ele, tais atividades acostumavam a criança “a ver e ouvir bem, adquirir noções corretas, interessando-a ao mesmo tempo pelos objetos circunvizinhos, desenvolvendo-lhe as faculdades inventivas, a necessidade do método, (e) o gosto pelo trabalho”. O jogo, de acordo com sua visão, era a linguagem do brincar e o modo mais pleno de expressão da identidade infantil, o que contrariava a rigidez e o imobilismo característicos do modelo escolar vigente.

Assim como aconteceu com outras novidades introduzidas no ensino brasileiro daquele tempo, Menezes Vieira também foi um entusiasta do método intuitivo, que preconizava o desenvolvimento da percepção das crianças. Segundo ele, os educadores não deveriam se ater apenas ao que era concreto, mas também ajudar os alunos a desvendar todo um universo abstrato [Ver RHBN, nº 67]. O “Jardim de Crianças” seria então o primeiro estágio do método, e tinha como objetivos “o desenvolvimento integral, harmônico, da parte física, moral e intelectual do educando, para que aproveite a instrução primária. Não é uma escola na acepção vulgar do termo, é a transição suave e racional da família para a escola. Não ensina especialmente a ler, escrever e contar; prepara as crianças para que mais rápida e utilmente possam aprender”. Em dezembro de 1880, a Revista Ilustrada trouxe um artigo sobre as vantagens do método – que também era usado no curso primário – e enaltecia as virtudes do Menezes Vieira: “Não se bate ali, ensina-se à criança; não há castigo, há promessa, o carinho em vez do bolo, um jardim em lugar da escola. E quanto progresso: quanta alegria”.

Para complementar o trabalho que fazia no campo institucional, Menezes Vieira produziu uma extensa obra didática entre 1882 e 1885. Dela fizeram parte o Manual para os Jardins de Infância, o Jornal das Crianças, o periódico mensal A Família, o ABC Fröebel e uma coleção de hinos escolares reunida em Cantos Infantis patrióticos, instrutivos, recreativos. Mas devido aos problemas de saúde da esposa, em 1887 Menezes acabou vendendo o colégio – que foi rebatizado como Gymnasio Fluminense. Mais tarde, em 1890, por indicação de Benjamin Constant, então ministro da Instrução Pública, fundaria o Pedagogium (1890), um museu pedagógico que também funcionava como um centro impulsionador das reformas no ensino, e foi redator da Revista Pedagógica, que veiculava as ideias e propostas discutidas na instituição.

Os jardins de infância ainda ganharam um impulso com o advento da República. Não que o novo regime tenha contribuído para isso. O que aumentou mesmo foi a divulgação dos métodos propagados por Menezes Vieira, que ganharam adeptos em instituições de ensino de todo o Brasil. Tanto que, em 1924, o país já contava com 47 jardins e creches, principalmente em capitais. O Estado só legalizaria definitivamente a educação infantil pouco antes do começo do século XXI. Decisão ratificada em 1996 por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que reconhecia que as crianças de zero a seis anos tinham direito não só ao jardim de infância, mas também à pré-escola, ao pré-primário, ao maternal. E pensar que tudo começou com os alunos de Dona Carlota...

Maria Helena Camara Bastos é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e autora de Pro Patria Laboremus – Joaquim José de Menezes Vieira (1848-1897) (Edusf, 2002).

Saiba Mais

ARCE, Alessandra. Friederich Froebel. O pedagogo dos Jardins de Infância. Petrópolis: Vozes, 2002.
FROEBEL, Friederich. A Educação do Homem. Passo Fundo: Edupf, 2001.
KUHLMANN Jr., Moisés. “A Educação Infantil nos séculos XIX e XX”. In: STEPHANOU, M.; BASTOS, M.H.C. (orgs.). Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005.
MONARCHA, Carlos (org.) Educação da infância brasileira (1875-1983). São Paulo: Autores Associados/Fapesp, 2001.
Revista de História da Biblioteca Nacional

MPB: um pouco de história

http://criticadeponta.com

A MPB é um constructo cultural, e como tal nem sempre existiu e nem sempre quis dizer a mesma coisa

A sigla “MPB” apareceu na língua portuguesa em algum momento dos anos 1960, como uma abreviação de “música popular brasileira”. Mas o que se entendia então, e o que se entende hoje, por “música popular brasileira”? A popularidade da música é algo de difícil definição, e, quem sabe, apenas um pouco menos volátil que a popularidade dos políticos.

Talvez seja útil recuar um pouco na história. No século 19, por exemplo, não se falava, salvo engano, em música popular brasileira. Até a libertação dos escravos, estes não eram legalmente considerados como parte do “povo”, e suas formas de expressão sonora não eram consideradas como “música popular”. Aliás, mesmo depois disto, havia quem nem visse razões para chamá-las de “música”. O crítico literário Sílvio Romero, um dos primeiros a se interessar por estes assuntos, chamou seu livro aparecido em 1883 de Cantos populares do Brasil, e não Música popular do Brasil. Talvez, naquele momento, a expressão “música popular” pudesse ser vista como contraditória: a palavra “música” seria reservada para uma das Belas Artes, praticada e usufruída pela aristocracia do fino gosto; e pelo povo só na medida em que se identificasse com os valores daquela. Como escreveu o pianista Arnaldo Estrela em 1931: “Este é o mês do carnaval. (…) Enquanto a Sra. Música no seu recolhimento austero goza as férias de verão, a musa popular samba e canta ao léu das ruas.” (Citado em Andrade, 2004:30)

Por outro lado, no título escolhido por Romero, o emprego do qualificativo “do Brasil”, em vez de “brasileiro”, sugere que os cantos seriam cantados aqui, mas talvez não necessariamente criados aqui, ou de caráter intrinsecamente identificado ao país. (De fato, as pesquisas do crítico sergipano deram grande ênfase à permanência de canções portuguesas entre nós).

Mais tarde, nas primeiras décadas do século 20, Mário de Andrade e outros estudiosos consideraram que o povo brasileiro (formado, na concepção vigente, sobretudo pela população rural) tinha sido capaz de criar expressões musicais próprias, às quais atribuíram grande valor tanto em termos de beleza, quanto de identidade cultural. Esta música foi chamada de “popular”, e talvez a principal obra de síntese escrita sobre ela, da autoria da discípula de Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga, teve por título Música popular brasileira (primeira edição em 1947).

Contudo, foi também nas primeiras décadas do século 20 que novas formas de expressão sonora, ligadas ao mundo das cidades, e também a novas formas de tecnologia (como os discos e o rádio), passaram a ganhar crescente importância no país. Compositores como Sinhô, Noel Rosa, Ari Barroso, e intérpretes como Francisco Alves, Carmen Miranda e tantos outros, ganharam entre 1920 e 1940 um novo e logo imenso público, predominantemente urbano, de consumidores de discos e programas de rádio. Esta música, num primeiro momento, não foi chamada de “popular” – pelo menos não por pensadores da estirpe de Romero e Andrade. Tal palavra, para eles, estava por demais associada a certos ideais nacionais, incompatíveis com os ingredientes cosmopolitas e comerciais que, em maior ou menor medida, entravam na composição daqueles novos sambas, marchas e frevos. Esta música foi por isso chamada de “popularesca”, palavra cuja conotação pejorativa não se pretendeu disfarçar.

No decorrer do século 20, porém, esta expressão foi abandonada, e a música urbana passou a ser conhecida como “popular”, adotando-se para a música rural a etiqueta de “folclórica”. A história destas mudanças ainda está para ser contada em detalhes, mas pode-se avançar algumas idéias. Em primeiro lugar, o monopólio do discurso sobre música por parte dos intelectuais tradicionais sofreu no período fortes abalos. A nova música urbana já vinha com seus próprios intelectuais: Alexandre Gonçalves, autor de O choro; Francisco Guimarães, autor de Na roda do samba; Orestes Barbosa, autor de O samba (além de compositor); Almirante, radialista (além de cantor e compositor); Ari Barroso, radialista e vereador (além de pianista e compositor). Todos eles tinham profundas ligações pessoais com a música sobre a qual vieram a manifestar-se como autores de livros, jornalistas, radialistas, e pelo menos em um caso, político. É natural que não quisessem chamá-la com uma etiqueta pejorativa como “popularesca”.

Em segundo lugar, os herdeiros de Sílvio Romero e Mário de Andrade passaram a adotar a expressão “música folclórica” em vez de “música popular”. Esta mudança pode, por sua vez, ter duas explicações. A primeira, é que Renato Almeida e Oneyda Alvarenga entre outros, reconheceram na música dos rádios e dos discos não só o que poderíamos chamar de “popularidade adjetiva” (que seria a “popularesca”, sinônimo de aceitação ampla), mas também “popularidade substantiva”, associada aos nobres ideais da nacionalidade. (A outra face desta moeda, é que personagens depois considerados como ilustres pioneiros da MPB – como Pixinguinha, Donga, Noel Rosa, Almirante – começaram sua carreiras fazendo músicas que, pelos padrões dos anos 1960-70, seriam consideradas “folclóricas”).

A segunda explicação é que a cultura anglo-americana substituiu a cultura francesa como influência dominante no país. Na França, usa-se (ainda hoje) a expressão musique populaire, e não musique folklorique, para designar as expressões sonoras rurais de caráter tradicional. Em inglês, estas são ditas folk music, enquanto popular music corresponde grosso modo ao “música popular” da sigla MPB.

Assim, nos anos 1950 aparece no Rio de Janeiro a Revista de música popular que tem como tema central os compositores e intérpretes do rádio e dos discos. Em 1976, Zuza Homem de Mello publica um livro com o mesmo título daquele que Oneyda Alvarenga publicara em 1947, Música popular brasileira. O conteúdo, entretanto, mudara inteiramente. Agora, falava-se de bossa-nova, e não de bumba-meu-boi; e os personagens não eram mais agricultores anônimos, mas Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina e seus colegas. Ainda mais interessante, da mesma maneira como o público havia entendido nos anos 1940 o significado do título do livro de Alvarenga, entendeu nos anos 1970 o do livro de Homem de Melo.

E a sigla MPB? Ao que tudo indica, ela aparece no início dos anos 1960, mas não se sabe o momento exato. Um dos seus primeiros registros conhecidos é o nome do conjunto MPB-4. Segundo o Dicionário Cravo Albin (www.dicionariompb.com.br): “O histórico do grupo remonta a 1962, inicialmente com formação de trio, integrado por Ruy, Aquiles e Miltinho, responsáveis pelo suporte musical do Centro Popular de Cultura da Universidade Federal Fluminense (filiado ao CPC da UNE), em Niterói. A partir do ano seguinte, com a adesão de Magro, passou a atuar como Quarteto do CPC (…). Em 1964, com a extinção dos CPCs, Magro e Miltinho, na época estudantes de Engenharia, batizaram o conjunto como MPB-4, o que provocou por parte de Sérgio Porto o comentário de que o nome do quarteto parecia ‘prefixo de trem da Central do Brasil’”.

O comentário de Sérgio Porto parece mostrar que a sigla, se não foi inventada pelo grupo, ainda não seria usual naquele momento. Mas a menção a uma outra sigla – CPC – é muito significativa neste contexto. Antes do golpe militar de 1964, se o grupo era conhecida como “Quarteto do CPC”, ele seria algo como o “CPC-4”. Depois do golpe, os CPCs são proscritos, mas não parece improvável que a nova sigla de três letras, rima incluída, e com o “P” de povo por assim dizer no centro, tenha sido sugerida pela recente (e agora censurável) ligação do quarteto. De fato, como argumentei em outro lugar (Sandroni, 2004), a sigla MPB condensa, além de significações musicais – na qual “popular” se define por oposição a “folclórico” e “erudito” – associações políticas, onde ecoam não apenas os CPCs de antes do golpe, mas também o MDB de depois do golpe.

A significação da sigla como etiqueta mercadológica é mais recente e talvez incompatível com as outras duas. A partir dos anos 1990, há uma crescente fragmentação do panorama musical, que põe em cheque a concepção de música-popular-brasileira como frente única e compactada. Tal mudança liga-se, entre outros fatores, à afirmação de identidades musicais regionais ou estaduais (mangue-beat pernambucano, axé baiano), transnacionais (rap, funk) ou de popularidade considerada meramente adjetiva – embora a palavra “popularesco” não tenha sido ressuscitada (forró estilizado, pagode romântico).

Neste contexto fragmentado, a MPB passa a ter uma segunda vida, designando agora uma parcela do mercado de consumo, uma prateleira entre as prateleiras das lojas de discos: aquela onde repousam os CDs de Chico Buarque, Djavan, Gal Costa e outros compositores e intérpretes surgidos para a fama nos anos 1960 e 1970.

Para concluir, acredito que a discussão sobre a situação da MPB pode ganhar com a contextualização histórica das concepções de “música”, “popular” e “brasileiro”. A MPB é um constructo cultural, e como tal nem sempre existiu e nem sempre quis dizer a mesma coisa.

Bibliografia:

Alvarenga, Oneyda. Música popular brasileira. São Paulo: Duas Cidades, 1982.
Andrade, Nivea Maria da Silva. Os significados da música popular : a revista Weco, revista de vida e cultura musical (1928-1931). Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de História, 2004.
Mello, José Eduardo Homem de. Música popular brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
Sandroni, Carlos. “Adeus à MPB”. Em Decantando a República, B. Cavalcante, H. Starling e J. Eisenberg (orgs.), Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p.23-35.
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1954.

Carlos Sandroni
é sociólogo, doutor em Música pela Universidade de Tours, na França, e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-33, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001
Revista Cult

A doença do prazer

No início do século XX, a medicina queria imprimir uma conduta que impedisse tanto o excesso quanto a continência sexual

Cristiana Facchinetti


Remédio da década de 1920 promete a cura para a esterelidade e fraqueza senil: era por uma sexualidade cotidiana e disciplinada no seio da famíliaAs demarcações de diferença anatômica e do comportamento sexual, bem como de suas “patologias” eram um desafio para a ciência da segunda metade do século XIX. O surgimento das teorias da hereditariedade aumentava o temor sobre consequências funestas dos desvios nessa área: além de prejudicar física e moralmente o indivíduo, tais anomalias afetariam seus descendentes diretos e, por extensão, ameaçariam o organismo de toda a nação pelo risco de degeneração social.

No Brasil, como na Europa, políticas estatais e científicas se articulavam para estabelecer o controle e a regulação moral dos indivíduos, especialmente no que se refere à saúde e à reprodução da população. Entre nós, porém, havia um obstáculo em especial: a questão racial. Especialmente após a Abolição (1888), a miscigenação tornou-se um tema crucial nos debates científicos. Mais do que a raça negra – considerada primitiva, mas pura – era a mistura racial que, pensava-se, produzia a degeneração. A medicina do período definia a população brasileira como um coletivo de indivíduos mestiços e desequilibrados, de agir impulsivo, instintivo e irracional, incapazes de se submeterem a uma organização política mais evoluída.

Novas especialidades médicas ganharam impulso. Entre elas, a medicina mental, que também sublinhava as “mazelas de nosso laboratórioétnico”, como escreveu o médico Renato Kehl. Esse clima de pessimismo científico era embalado, ainda, pelo crescimento desordenado das cidades, pelas greves e os movimentos urbanos.

No início do século XX, as descobertas da microbiologia adicionaram uma perspectiva social ao “diagnóstico” do brasileiro. Ele se definia, agora, pela falta de saúde e de educação. Além das teorias da hereditariedade, passaram a ser consideradas as influências do meio para as degenerações psicológicas e físicas.
 
Um símbolo dessa mudança de pensamento é o personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato. Nas crônicas “Uma velha praga”, publicadas no jornal O Estado de São Paulo em janeiro de 1914, o escritor explicita o caráter degenerado do mestiço: o caboclo Jeca Tatu é o “funesto parasita da terra”, descrito como “baldio, seminômade, inadaptável à civilização”, “fronteiriço, mudo e sorna [fingido]”. Em dezembro do mesmo ano, no mesmo jornal, Monteiro Lobato publica Urupês e recupera a imagem do personagem. Desta vez, descreve Jeca Tatu como um doente, vítima da miséria e da indigência. “Jeca não é assim: está assim”, ou seja, é passível de regeneração por meio do saneamento e da educação.

A combinação entre o biológico e o social também repercutiu nos estudos da sexualidade. A medicina mental dedicava-se à trama sexual dos impulsos, considerando não apenas a hereditariedade, mas também os comportamentos sociais e as características físicas e psíquicas dos indivíduos. Por um lado, o ser humano era visto como “um cabide de glândulas”, na expressão de Renato Kehl. Equilibrar suas secreções, os hormônios, era garantia da “plena posse de seu personalismo”, e bastaria uma única glândula funcionar “mais ou menos mal para surgirem os fenômenos nervosos”. Por outro lado, a “fisionomia” mental e moral do indivíduo também seria condicionada pelo meio. Daí a importância da educação para a construção das identidades. Mesmo o instinto sexual, o mais irremediável dos instintos, poderia ser educado.

Para garantir a transformação da “raça brasileira”, frequentemente reconhecida como vítima dos impulsos instintivos e da sensualidade excessiva, a medicina mental, por meio da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923 pelo psiquiatra Gustavo Riedel (1887-1934), organizou um projeto de educação sexual que se propunha a ensinar “a reprodução, a verdadeira significação do casamento, o combate às doenças venéreas, o problema da prostituição, a higiene social etc.”. Educar significava equilibrar os impulsos: imprimir uma conduta que impedisse tanto o excesso quanto a continência sexual. A peça-chave para essa regulação era o casamento programado por critérios científicos. Ao domesticar os instintos desenfreados por meio de uma sexualidade rotineira e controlada no interior da família, o matrimônio moldaria cidadãos republicanos exemplares: a “esposa-mãe” (“o tipo completo da mulher normal”) e o homem varonil, capaz de sublimar parcialmente seus instintos deslocando-os para o trabalho e para o sustento da família, sua principal função social. Além disso, as escolhas conjugais que contassem com a ajuda de exames pré-nupciais e conselhos médicos proporcionariam uma melhoria substancial da nação, produzindo proles sadias.

Mas esse combate ao imaginário hipersexual da brasilidade nasceu ameaçado. No período do entreguerras (1918-1939), em meio às transformações das grandes cidades brasileiras, a normalidade, longe de estar garantida pela ciência, se tornaria cada vez mais instável.
 
Enquanto a medicina recomendava às mulheres a maternidade e o cuidado das proles, as “boas moças de família” começavam a ter acesso ao estudo e ao trabalho fora de casa, ganhavam o espaço público, circulavam em festas, lojas e teatros, liam romances, iam aos cinemas. Embora ainda não hegemônica, crescia a recusa ao casamento e à maternidade, e também a aquisição de hábitos considerados virilizantes, como o uso de calças, o corte dos cabelos à la garçonne (curto, como de homens) e o hábito de fumar. Cada vez mais se exigia o fim da exclusividade da dona de casa, especialmente na classe média. A utopia médica era arruinada pelo “excesso de intelectualização” feminina, que daria “recursos ao egoísmo, diversão do espírito, orgulho sem limites, malevolência, falta de compreensão completa dos deveres sociais”, como está descrito nos Archivos Brasileiros de Psychiatria Neurologia e Sciencias Affins, de 1906. Como bem definiu Maria Bernadete Ramos, eram as “novas Evas reivindicando democracia sexual”.

No campo da sexualidade masculina, a proliferação da sífilis, desencadeadora de doença mental, denunciava a continuidade dos excessos venéreos na população, limitando o alcance dos projetos de futuro. Novos comportamentos na cidade moderna também se contrapunham ao modelo masculino provedor. Personagens marginais, mas de grande repercussão pública, como João do Rio, Lima Barreto e Oswald de Andrade, são testemunhos seguros – tanto em sua obra quanto em seu estilo de vida – de costumes pouco adequados ao ideal do trabalhador casado. Pululam na literatura da época tipos que reafirmam as “sexualidades interditadas” pelos médicos, como anotou Julio Pires Porto-Carrero: celibatários, libertinos, polígamos, desquitados, uranistas (homossexuais) e “toda a turma de personalidades psicopáticas” que, apesar de seu “grau intelectual alto”, teria “incapacidade acentuada para adaptar-se à norma”.

No conto “História de gente alegre” (1910), de João do Rio, mulheres “unissexuais” se perdem nos excessos da noite, protagonizando cenas de entrega aos seus desejos em público, regados à morfina. Lima Barreto, na crônica “No ajuste de contas”, de 1918, cobrava das feministas burguesas e conservadoras que se colocassem contra o casamento, “que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbárie medieval, de quase escrava; degradando-a à condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos...; não lhe respeitando a consciência e liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-bostas feministas que há por aí”. Oswald de Andrade, por sua vez, brada em Serafim Ponte Grande (1933) contra a hipocrisia da sociedade, e são múltiplas as suas menções a questões sexuais, relacionamentos fora do casamento e experiências homossexuais.

Enquanto a medicina criava o Brasil fabril e regenerado, intelectuais, artistas, mulheres, homossexuais, negros e mulatos criavam o Brasil febril, moderno-modernista.
 Revista de História da Biblioteca Nacional

O nosso Halloween nasceu na Antiguidade

Festa do Dia das Bruxas foi criada pelos celtas há mais de 2000 anos para homenagear os espíritos de seus antepassados

Pietro Henrique Delallibera

Wikimedia Commons
Druida representado em gravura inglesa de 1676. Estudos mostram que os celtas foram os pais do Dia das Bruxas

Hoje, dia 31 de outubro, diversos países comemoram o Halloween. A festa, importada há algumas décadas dos Estados Unidos, ganha cada vez mais popularidade entre nós brasileiros e a cada ano que passa movimenta parcelas maiores do mercado. No entanto, se engana que pensa que a origem do “Dia das Bruxas” é americana: as raízes mais profundas da comemoração remontam à Antiguidade.

Sabe-se que os primeiros a realizar uma celebração semelhante à que conhecemos hoje foram os celtas. Esse povo, que viveu há cerca de 2000 anos onde atualmente estão a Irlanda, a Inglaterra e o norte de França, comemorava o seu ano novo no dia 1º de novembro, data que marcava o fim do verão, o término da colheita e o início de um rigoroso inverno. Por conta disso, a passagem do ano era associada com o início de um período sombrio, gélido, e na noite de 31 de outubro os celtas realizavam um festival chamado Samhain (se pronuncia “sow-in”). Nesse dia, acreditava-se que a fronteira entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos era desfeita, e as almas dos antepassados caminhavam sobre a Terra. Era justamente nesse dia que os druidas, espécies de “feiticeiros” celtas, aproveitavam a influência dessas presenças espirituais para realizar previsões sobre o próximo ano e a colheita vindoura.

Em meados da década de 40 da era cristã, os romanos já haviam conquistado a maior parte do território celta. Pelos 400 anos seguintes, essas regiões seriam dominadas pelo império dos césares, que promovia um festival muito semelhante à tradição do Samhain, chamado Feralia. Nesse dia, sempre no final de outubro, os romanos celebravam a passagem dos mortos para a outra vida. O convívio entre os dois povos fez com que os costumes se misturassem e incorporassem elementos em comum.


Wikimedia Commons
Canadense fantasiada para o Halloween em 1928. Nos moldes americanos, a festa se disseminou por quase todo o mundo Ocidental

Durante a Idade Média, o catolicismo aumentou sua influência sobre as regiões do antigo Império Romano e reprimiu ou “cristianizou” antigas práticas pagãs. Com o Feralia – ou Samhain – não foi diferente: no século IX, o papa Bonifácio IV determinou que o dia 1º de novembro, antigo ano novo celta, seria o “Dia de Todos os Santos”. Ou seja, em vez de celebrar as almas dos antepassados em rituais e festividades nada ortodoxos, a população deveria venerar os mártires cristãos.

Também foi nesse período que surgiu o nome que a festa assumiu hoje: a data foi nomeada, em um tipo de inglês arcaico, de All-hallows ou All-hallowmas, um derivado de Alholowmesse, que significa all saints’ day (“Dia de Todos os Santos” em inglês). Assim, a noite anterior à festa, ou seja, dia 31 de outubro, passou a ser chamada de All-hallows Eve (referência a evening, que significa “noite” em inglês), o que se transformou, ao longo dos séculos, na forma moderna Halloween.

O resto da história já é um pouco mais conhecida: o festival desembarcou na América com os colonizadores ingleses e ganhou popularidade ao longo das décadas, assumindo um caráter de “confraternização entre vizinhos”. O “Dia das Bruxas” ganhou características modernas, como as fantasias ou a prática do “doce-ou-travessura”, mas, ainda assim, algumas de suas brincadeiras típicas mantêm relação com rituais de mais de 2000 anos.

O Apple bobbing, competição comum nos Estados Unidos que consiste em pegar maçãs de uma bacia cheia d’água usando somente a boca, provavelmente tem relação com a Feralia romana: o “Dia das Bruxas” do tempo dos césares coincida com as comemorações em homenagem à deusa Pomona, guardiã das árvores e das frutas, cujo símbolo é a maçã. Assim, vários ritos e jogos praticados por séculos envolveram a fruta, o que acabou derivando a brincadeira atual. Outra mostra de que os nossos “rituais” podem esconder muito mais história do que aparentam.
Revista História Viva

Morte aos escravos

No Império, a pena capital atingiu majoritariamente negros, pobres, descendentes de escravos e mestiços

João Luiz Ribeiro




Fora as penas de açoites, reservadas aos cativos (aqui no traço da Revista Illustrada), até 1835 o código criminal brasileiro não distinguia homens livres de escravos. (Fundação Biblioteca Nacional)

Compareceu ao tribunal do júri da corte imperial do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1851, o escravo José, crioulo (nascido no Brasil), cozinheiro de profissão. Era acusado do homicídio de seu senhor, o armador e capitão do mar José Augusto Cisneiros, em novembro do mesmo ano. Desconsolado, porque o juiz de direito não lhe permitia contar sua versão dos fatos, suspirou: “no meio das galinhas as baratas não têm razão”. Condenado à morte, José foi enforcado em 13 de janeiro de 1852, segundo o modo habitual de execução, conforme descrito pelo missionário Daniel Kidder (1815-1891): “No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma escada e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte, se pendura nos ombros da vítima”.

A fala de José resume o que é ser escravo diante de homens livres encarregados de julgá-los segundo os termos de uma lei feita com a finalidade de regular a imposição da pena de morte a eles. Uma lei, de 10 de junho de 1835, relacionada à Revolta de Carrancas, em Minas, dois anos antes, que tirava do escravo qualquer chance de ter razão.

Com exceção da pena de açoites, reservada aos cativos, nos pontos essenciais, as normas estabelecidas pelo Código Criminal de 1830 e pelo Código do Processo Criminal de 1832 não distinguiam os homens livres dos escravos. Eram todos julgados da mesma maneira: para a sentença de pena última era preciso a unanimidade dos votos; os réus podiam protestar por um segundo julgamento, podiam apelar para os tribunais superiores e impetrar revista no Supremo Tribunal de Justiça. Com a lei de 10 de junho de 1835, tudo mudou. Homens livres e escravos, até então desiguais em vida, tornaram-se desiguais para a morte.

No Brasil imperial, a pena de morte estava intimamente relacionada à escravidão. Pelo código criminal, três eram os crimes capitais: a insurreição de escravos, o homicídio qualificado e o homicídio com roubo. O artigo 1º da lei incluiu novos crimes que deveriam ser punidos com a morte: “matar por qualquer maneira que seja, propinar veneno, ferir gravemente, ou fazer qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, ao administrador, feitor e às mulheres que com eles viverem”. O artigo 2º enquadrava na nova lei o crime de insurreição e quaisquer outros que merecessem a pena de morte. Para se condenar à morte, bastariam dois terços dos votos dos jurados e a sentença seria executada sem recurso.

Para que a lei de 10 de junho fosse aplicada, era preciso que o réu fosse escravo; não o sendo, aplicava-se o código criminal. Embora deixasse de compartilhar com os homens livres inúmeros direitos, o escravo continuou a apresentar-se diante de um tribunal de “iguais”. De qualquer modo, tornou-se muito mais fácil condenar um escravo à morte, e muito mais rápido executá-lo.

Além dos escravos, argumentaram os partidários da pena capital, existia no Brasil uma casta de homens em tudo semelhante a eles, e que só poderia ser contida pelo terror salutar da pena última. Referiam-se aos homens livres pobres: descendentes de escravos, mestiços, imigrantes, enfim, à maioria da população brasileira. Além da apelação da parte, criou-se uma apelação ex-officio, feita pelojuiz de direito, também em caso de sentença capital ou de galés perpétuas.

Entre as pessoas livres condenadas à morte no Império, encontramos ladrões assassinos, jagunços mandatários de morte encomendada, maridos ciumentos e esposas adúlteras. Mas, ao contrário do que sucedia com os escravos, entre o tribunal e a forca ainda haveria um longo caminho a percorrer. A maioria dos homens livres condenados à morte no Brasil imperial conseguiu, em novos julgamentos, a redução da sentença, geralmente para a de galés perpétuas.

Condenar à morte é uma coisa, executar a sentença, outra muito diferente. A Constituição de 1824 concedera ao imperador o direito de graça – perdoar ou comutar as sentenças criminais. Em 1829 esse direito foi limitado, dele excluindo os escravos que matassem os senhores A circular reservada de 29 de dezembro de 1853, do poder moderador, acabou com a limitação. O direito de graça dera ao imperador a chave para controlar a política da pena de morte, ou mesmo a política criminal do Estado brasileiro. D. Pedro II, a partir de 1854, comutaria cada vez mais as sentenças de morte, paulatinamente abolindo de fato, embora não de direito, a pena de morte no Brasil.

No período regencial (1831-1840), entre a abdicação de D. Pedro I e a subida ao trono do seu filho, D. Pedro II, foram pouquíssimas as comutações. Durante a regência tivemos o grande tempo das execuções capitais no Brasil, quando ficou mais fácil condenar à morte, e mais rápido executar a sentença. O regente usava o direito de graça com parcimônia para não desagradar as elites que, em última instância, o elegiam. Na província do Rio de Janeiro, por exemplo, carrascos transitavam de uma vila à outra, com a ordem de “execute-se” alcançando-os no caminho de volta à corte. Dois carrascos não foram suficientes. Entre 1833 e junho de 1841, puderam ser constatadas 90 execuções de escravos e 78 ordens de execução, cujo cumprimento ainda não pôde ser comprovado pela pesquisa. Quanto aos homens livres, tivemos, no mesmo período, 14 execuções e 13 ordens de execução a serem comprovadas. Apenas 16 escravos tiveram suas sentenças comutadas.

De 1841 a 1853, o panorama mudou. Os casos menos problemáticos continuaram a ser examinados pelo procurador da coroa, antes de seguirem, por intermédio do ministro da Justiça, para exame do jovem imperador. Os processos que suscitavam controvérsias jurídicas passaram a ser também examinados pela seção de Justiça do Conselho de Estado. Encontramos a execução de 82 escravos e outras 48 ordens de execução. São conhecidas 13 execuções de homens livres e três ordens de execução. De 1842 a fevereiro de 1854, tivemos a comutação das sentenças de morte de 58 escravos e de 27 homens livres.

Foi a partir de meados dos anos 1850 que Pedro II começou a praticar sua política de abolição gradual da pena de morte, em consonância com a política de abolição gradual da escravidão. Primeiramente, em parceria com o ministro da Justiça Eusébio de Queirós, à frente da pasta entre 1848 e 1852, depois, com Nabuco de Araújo, que ocupou o cargo entre 1853 e 1857. Política cautelosa. Ao mesmo tempo em que se tomavam medidas em prol dos escravos condenados à morte, havia um endurecimento em relação aos homens livres, com vistas a combater a impunidade. É na década de 1850 que encontramos o maior número de execuções de homens livres: 23, e mais oito ordens de execução. Quanto aos escravos, 45 foram enforcados e ordenadas outras 12 execuções. Cinquenta e oito cativos e 27 homens livres tiveram a pena de morte comutada em galés perpétuas.

A partir do início dos anos 1860 a pena de morte fica reservada aos escravos. A última execução de um homem livre condenado à morte pela Justiça civil foi a de José Pereira de Souza, no termo de Santa Luzia, no atual estado de Goiás, em 30 de outubro de 1861. Embora nos anos 60 e 70 se continuasse excepcionalmente a mandar enforcar escravos, a orientação de Pedro II era para que os conselheiros de Estado da seção de Justiça buscassem a todo custo argumentos que justificassem a comutação da sentença. Quando não encontrava motivos para comutar, o imperador engavetava o processo por anos a fio. O último enforcamento no Brasil foi o do escravo Francisco, em Pilar das Alagoas, em 28 de abril de 1876. É importante mencionar que Francisco não matara o próprio senhor, mas fora cúmplice de dois outros escravos no homicídio do senhor destes. O número de comutações supera de longe o de execuções: 150 na década de 1860 (131 escravos e 19 homens livres); 183 na década de 1870 (158 escravos e 25 homens livres) e 108 na última década do império (82 escravos e 26 homens livres).

Naquele ano de 1876, Pedro II partiu para a Europa, e lá se encontrou com o escritor francês Victor Hugo (1802-1885), incansável defensor da abolição da escravatura e da pena de morte. Depois que voltou ao Brasil, o imperador passou a comutar todas as sentenças de morte, de homens livres e de escravos.

Pedro II, apesar dos protestos dos escravocratas, não voltou atrás. Nunca mais mandou executar uma sentença de morte, abolindo de fato a pena capital, embora tivéssemos que esperar a República para que de direito ela fosse abolida para crimes civis.

SAIBA MAIS - Bibliografia

ANDRADE, Marcos Ferreira. O outro 13 de maio. Revista de História, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Ano 1, n. 2, agosto de 2005.

CARVALHO FILHO, Luis Francisco. “Impunidade no Brasil – Colônia e Império”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, USP, 2004.

FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade em um ambiente rural, 1830-1888. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Renascer para a morte

Nem só de luzes viveu a arte renascentista: temas macabros faziam lembrar a fragilidade da vida e condenavam a vaidade

Maria Berbara


Imagem: Museu do Prado
 
A ideia de representar a morte através de um esqueleto segurando uma ampulheta não é, como se poderia pensar, medieval. Essa imagem, assim como a de cadáveres decompostos assombrando vivos, surge no século XIV europeu e se torna frequente nas primeiras décadas do século XVI – na mesma época, portanto, em que Michelangelo realiza as espetaculares pinturas no teto da Capela Sistina, Rafael recria a claridade serena da Escola de Atenas e Leonardo Da Vinci sonha com o protótipo de máquinas voadoras e submarinas.

Um dos maiores mitos construídos em torno do Renascimento é o de que foi um período otimista, alegre e solar, em oposição às “trevas” medievais. Longe disso. A percepção aguda da passagem do tempo herdada da tradição clássica, somada a uma consciência histórica particularmente sensível, povoou a literatura e as artes visuais de imagens tristes, mórbidas ou melancólicas, nas quais a morte e a velhice obscurecem a alegria de uma juventude breve demais.

Em 1527, o imperador Carlos V de Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico, comanda o saque de Roma. Durante três dias a cidade eterna é atacada, pilhada e selvagemente destruída: edifícios são queimados, obras de arte e livros são extraviados, a guarda suíça é praticamente dizimada. Entre a população civil, calcula-se que se tenham perdido ao menos 6 mil vidas somente nos primeiros dias. Mesmo quando Carlos V ordena o fim do saque, Roma permanece ocupada por soldados por mais oito meses. A abundância de corpos insepultos favorece a erupção de uma epidemia de peste. Alimentos e água limpa tornam-se bens escassos. Desde o surgimento dos primeiros discursos sobre o Renascimento, Roma vinha personificando no imaginário humanista a grandeza da urbe imperial rediviva e o renovado poder vaticano. O saque colocou à prova essas associações, acentuando um sentimento de profunda melancolia. Após 1527, a imagem das ruínas antigas já não evoca tanto o passado clássico, mas sim exprime um sentimento de desolação ante a percepção da vitória definitiva do tempo sobre o homem e todas as suas realizações.

Entre 1538 e 1540, o pintor e humanista português Francisco de Holanda (ca. 1517-1585), então residente em Roma, faz desenhos que reproduzem pinturas, esculturas, monumentos e fortalezas da cidade, compondo o chamado Álbum dos Desenhos das Antigualhas (também conhecido como Álbum do Escorial). Entre esses desenhos, porém, Francisco incluiu o que parece ser uma alegoria da Roma decaída. Concebida como a quintessência alegórica do mundo clássico, a cidade é representada como uma jovem mulher parcialmente nua, usando uma coroa sobre a qual descansa um cenário de ruínas. Seus braços pendem inermes e a mão direita segura um espelho. Ao fundo, aparecem os esplendores de outrora: o coliseu, a coluna trajana, o obelisco vaticano. Na parte inferior do desenho lê-se a frase Non similis sum mihi, isto é, “Não me pareço comigo mesma”, que contrasta dolorosamente a glória do passado com a miséria do presente.

Mesmo antes do saque, a presença da morte já permeava a arte europeia. Uma forte veia de arte macabra percorre diversas regiões até ao menos os anos 1550, vinculada à difusão de estampas anatômicas, nas quais a beleza plástica do cânone antigo e da teoria das proporções está associada à evidência moral da morte. Talvez o livro anatômico mais influente do século XVI tenha sido De humani corporis fabrica (ou simplesmente Fabrica), publicado pela primeira vez em 1543. Obra do médico belga Andrea Vesalius (1514-1564), é composto por uma série de estampas – realizadas, provavelmente, por Stephen van Calcar, discípulo de Ticiano – representando os diferentes sistemas de funcionamento do corpo humano, como o esquelético, o nervoso e o vascular. Naquela que é, talvez, a imagem mais célebre do livro, um magnífico esqueleto apoia melancolicamente o próprio crânio em uma das mãos enquanto, ao modo de um Hamlet, parece monologar pousando a outra mão em um crânio sobre uma tumba onde se lê a inscrição latina: Vivitur ingenio, caetera mortis erunt, ou seja, “O engenho vive, todo o resto é mortal”. Se a morte de todas as coisas é certa, a estampa parece indicar como possível via de superação a realização intelectual, o “engenho”.

Com conotação muito mais sombria, o esqueleto-morte é representado em diversas estampas do mestre alemão Albrecht Dürer (1471-1528). Em uma delas, um jovem casal, belo e bem vestido, conversa serenamente em primeiro plano, enquanto, ao longe, escondida atrás de uma árvore, espreita a morte – representada por um esqueleto erguendo uma ampulheta. O sentido da representação não poderia ser mais claro: memento mori, “lembra-te da morte”. A mensagem funciona como uma advertência moralizante: enquanto nos deleitamos com os prazeres mundanos, a morte se aproxima, e haveremos de ser julgados pelo que fizemos ou deixamos de fazer enquanto tivemos a oportunidade de nos dedicarmos à vida espiritual e à reflexão sobre a morte, em vez das delícias dos sentidos.

Na mesma tradição do memento mori trabalha o discípulo de Dürer, Baldung Grien (ca. 1484-1545), acrescentando, porém, o elemento erótico: em uma de suas mais famosas telas, a morte abraça uma jovem que, coberta apenas por uma leve túnica, chora enquanto se sabe arrastada para o túmulo. Baldung Grien retoma aqui o motivo de A Morte e a Donzela, isto é, o contraste brutal entre o momento de maior florescimento da vida e o aspecto mais repulsivo da morte, representado por um cadáver em avançado estado de putrefação. O fato de, na língua alemã, a morte ser um substantivo masculino – der Tod – sem dúvida contribuiu para a criação dessas obras extraordinárias nas quais o amor, o sexo, o tempo e a morte soam como notas dissonantes, mas complementares, na dramática sinfonia da existência.

A fusão entre o erótico e o necrótico aparece em diversos outros artistas renascentistas, muitas vezes sob a forma da vanitas. Para o historiador de arte Jan Bialostocki, uma das ideias filosóficas mais difundidas universalmente é a de que todos os bens, inclusive (ou sobretudo) a vida, são transitórios. Esta ideia está presente em distintas culturas visuais, e de modo muito forte no Renascimento. Vanitas vanitatum omnia vanitas, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, lê-se no Eclesiastes. A expressão deu origem ao gênero iconográfico vanitas, caracterizado justamente por contrastar a vida e a morte de modo a evidenciar a fragilidade da primeira. Com frequência, a vanitas é uma natureza-morta que reúne, por exemplo, frutas, livros ou objetos científicos e símbolos da transitoriedade da vida, como a vela, a bolha de sabão ou a própria caveira. Em outros casos representa-se uma jovem segurando um espelho, ou então uma pessoa jovem, um velho e uma criança – aludindo às três idades do ser humano, como fizeram, além de Baldung Grien, Ticiano e Giorgione.

O Renascimento, portanto, está longe de ter sido um período de explosivo otimismo, como muitas vezes somos levados a crer por uma construção histórica enraizada no século XIX. Ele não foi uma “nova era” totalmente desvinculada do passado medieval. Nenhum momento histórico está perdido no tempo e no espaço, mas se relaciona de modo orgânico com aquele que o precede. A passagem do tempo, a fragilidade da vida, a inexorabilidade da morte, o fim de todas as coisas e o temor do que nos aguarda quando toda a matéria se tiver convertido ao pó geraram sentimentos que em poucos momentos históricos estiveram mais presentes do que durante o que se convencionou chamar de Renascimento.

Maria Berbara é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e organizadora de Renascimento italiano, ensaios e traduções (Nau Editora, 2010).
Revista de História da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O lado escuro de Getúlio Vargas

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO


RESUMO Segunda parte da biografia de Getúlio Vargas aborda seu lado "ruim", concentrando-se nos anos que levaram à ditadura do Estado Novo. Apesar de certo tom oficialesco, livro se destaca pela narrativa da Revolução de 32 e da Intentona Comunista e ajuda a desfazer maniqueísmo ingênuo em torno da figura do líder.

Assim como o colesterol, pode-se dizer que existe um Getúlio Vargas "bom" e outro "ruim". O primeiro é o líder de uma revolução democrática, o campeão dos direitos sociais, o governante nacionalista. O segundo é o chefe da única ditadura pessoal que o Brasil conheceu e o político inescrupuloso aferrado ao exercício do poder.

Claro que esse maniqueísmo ingênuo se desfaz conforme conhecemos mais sobre personalidade tão ambígua e sua complexa inserção numa época conflagrada como os meados do século passado. Fomentar essa compreensão isenta é o maior mérito da biografia em três volumes empreendida pelo jornalista e pesquisador Lira Neto, da qual se publica agora a segunda parte, "Getúlio - Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo (1930-1945)" [Companhia das Letras, 632 págs].

Nela se concentra o Getúlio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio às tormentas ideológicas da década de 1930, jogando uns contra outros, sempre aliado ao adversário da véspera -chefe do governo provisório (1930), presidente eleito pela Constituinte (1934) e enfim ditador a partir de 1937.

É natural que o protagonista comande o espetáculo numa biografia; mesmo no caso de figura decisiva como Vargas, porém, é fascinante o grau em que sua trajetória foi antes comandada pelas circunstâncias. Mestre da paciência e do silêncio, ele esperava que se consolidassem à medida que tratava de se amoldar a elas.

Não eram apenas circunstâncias locais, pois os anos 1930 ilustram com nítida evidência que não existe o "nacional", no sentido de que ele é sempre uma variante particular de fenômenos mais amplos, de dimensão internacional.

Impulsionada pela catástrofe da crise econômica de 1929, por toda parte a revolução social parecia iminente. Sua ponta de lança eram os partidos comunistas, organizados sob disciplina militar e obedientes à União Soviética.

O fascismo foi, como se sabe, uma defecção nacionalista e racista desse movimento revolucionário, logo apropriada pelos setores interessados em preservar a propriedade e a hierarquia ameaçadas. Desde os anos 1920, hordas de fanáticos das duas seitas -opostas nos propósitos, iguais em método e estética- se enfrentavam em arruaças nas principais cidades do mundo.

Divulgação/CPDOC/FGV
Getúlio Vargas após assumir a presidência do Brasil, em 1930

Quando duas forças políticas se empenham num confronto violento e prolongado sem que nenhuma submeta a outra, torna-se provável um desenlace cesarista (também chamado bonapartista). Incapaz de um compromisso estável, exaurida pelas lutas intermináveis, a sociedade vê um ditador enfeixar o poder absoluto para restabelecer a ordem periclitante, ainda que sob uma retórica revolucionária.

Nada muito diverso ocorreu no Brasil da época. Mas a comparação é instrutiva porque permite isolar, quase como num experimento químico, as peculiaridades que distinguem o cesarismo tupiniquim, getuliano, do padrão mais geral.

A mais notável, talvez, é seu caráter camaleônico. Embora formado no positivismo autoritário e reformista que fez longa escola na política gaúcha, Getúlio nunca aderiu a qualquer doutrina ideológica. Conforme as conveniências, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, reivindicando para si o centro de gravidade da política, afastado de ambos os extremos.

Característica psicológica da personagem? Certamente. Mas também sintoma de uma sociedade onde ideologias têm função decorativa, na qual as ideias não são levadas ao pé da letra nem sequer a sério, em que programas e compromissos são "para inglês ver".

Esse traço cultural do país responde por mazelas (sucessivas constituições, leis e orçamentos que não se respeitam, partidos de araque, política inautêntica) e também por subprodutos benfazejos (ausência de racismo politicamente articulado, tolerância religiosa e sexual, descrença em relação a dogmas).

Tortura e assassinatos políticos faziam parte da rotina da repressão policial, sobretudo após o golpe do Estado Novo, em 1937. Não podem ser quantificados porque os registros foram destruídos a tempo, mas as revoltas armadas do período deixaram um saldo reduzido de baixas.

Foram 22 mortos na Intentona Comunista (1935); ainda menos na tentativa de golpe integralista (patética versão nativa do fascismo) em 1938. Mesmo a Revolução Constitucionalista de 1932, o maior conflito armado na história republicana depois das sangrentas campanhas de Canudos e do Contestado, deixou menos de mil mortos.

Esse cômputo integra um padrão reiterado na formação brasileira, uma sociedade mais violenta do que a maioria das demais, desde logo pela extensa deformação da escravatura, mas onde a violência encontra escassa expressão política.

Cada um é livre para especular sobre esse enigma nacional. Resultado da profunda desarticulação social que é própria do legado escravocrata? Hábito adquirido da conciliação, dos acertos "pelo alto", a fim de não despertar o vulcão adormecido da desigualdade? Anemia da sociedade civil, o que deixa as forças políticas quase sempre à mercê do bloco que controla o hipertrofiado poder central? Porosidade à ascensão individual, que impede a pressão coletiva de atingir um ponto crítico?

PROTESTOS

Na opinião deste resenhista, dois episódios se destacam na narrativa de Lira Neto. O primeiro é a Revolução de 1932, a começar pela extraordinária descrição do incidente -os protestos de 23 de maio nas ruas em São Paulo- que a prenunciou. Ainda que o livro nunca abandone a perspectiva da personagem incrustada no Palácio do Catete, seu relato transmite a sensação de que a revolta se desenrola diante de nossos olhos.

Fica patente o quanto havia de reacionário no movimento, que mobilizava um sentimentalismo nostálgico da supremacia política paulista. Ao mesmo tempo, deflagrada pela elite econômica e cultural, a insurreição teve substancial apoio popular e conduziu à breve democratização de 1934, que adiou a ditadura.

Esta seria inevitável em decorrência do outro episódio proeminente, o infausto levante militar organizado no ano seguinte pelo Partido Comunista. Por volta de julho de 1935, Josef Stálin, o ditador soviético, finalmente atinou que o nazifascismo era a ameaça prioritária. Os partidos comunistas, até então instruídos a incitar a revolução armada, passaram a adotar uma política defensiva de frente ampla com as demais forças antifascistas. No Brasil, o golpe em preparação não foi abortado, em parte por causa das estimativas delirantes sobre a chance de vitória que seu líder, Luís Carlos Prestes, repassava a Moscou.

Detonada em novembro no Recife e em Natal, e dias depois no Rio, a intentona foi facilmente estrangulada pelo governo. Concebida por uma potência estrangeira, converteu-se no fantasma a ser invocado como eterno pretexto pelas duas ditaduras do século, a de 1937 e a de 1964. Foi o maior dos muitos erros de Prestes, tido por militar capaz, mas politicamente obtuso.

Seu fracasso aproximou perigosamente o Brasil do Eixo, tendência revertida para um tardio realinhamento com os Estados Unidos que só seria consumado em 1942, quando aquele país compeliu o nosso a ceder bases aéreas no Nordeste como apoio logístico para a campanha no Atlântico. Na barganha, Getúlio obteve dos americanos financiamento para a primeira siderúrgica, Volta Redonda.

Premido por manifestações populares, provocadas pelo afundamento de navios brasileiros que violavam o bloqueio naval imposto pela Alemanha à Inglaterra, o governo enviou uma força expedicionária à guerra na Itália. O engajamento com as potências democráticas desencadeou a dinâmica que levaria os militares à primeira deposição de Getúlio Vargas (1945).

Como saldo, o Estado Novo deixava um aparelho federal modernizado, uma legislação trabalhista que renderia ao getulismo dividendos eleitorais por muitos anos e incipientes processos de industrialização e urbanização que se fariam avassaladores nas décadas seguintes.

Não faltam amenidades ao livro. Desde o apreço de Getúlio Vargas por pontualidade, churrasco, cavalos, charutos, golfe e pingue-pongue até detalhes de sua estreita relação com a filha Alzira, confidente e secretária particular que organizou os arquivos do pai, esta biografia não perde o fio do pitoresco, do íntimo e do prosaico. O antiquado romance com a mulher de um hierarca do regime -a "bem-amada" que aparece nos diários secretos do presidente- é contado em tom picante.

Duas ressalvas num livro de resto admirável. A pouca familiaridade do biógrafo com temas econômicos deixa lacunosa essa importante faceta na atuação do ditador.

E as principais fontes do livro -as recordações filtradas pela devoção de Alzira Vargas e os diários mantidos pelo pai (1930-42), que mesmo ali ostenta a compostura protocolar de quem calcula sua revelação póstera- às vezes conferem uma tonalidade oficialesca ao conjunto, que não deixa de refletir, entretanto, o pesado clima cartorial da época. 
Folha de S. Paulo

Hitler e a poderosa engrenagem nazista de saquear obras de arte


CASSIANO ELEK MACHADO
ilustração ANA PRATA


RESUMO Confiscar obras de arte era para os nazistas tão importante quanto as vitórias militares; artista frustrado, Hitler escondeu em lugares como minas de sal milhares de peças e tinha planos de construir um gigantesco museu. Livro de jornalista porto-riquenho ilumina em detalhe o funcionamento da máquina nazista de espoliação.

Quando, no início de maio de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, oficiais do Terceiro Exército norte-americano entraram numa mina de sal da pequena cidade de Altaussee, nos Alpes austríacos, se depararam, depois de uma longa caminhada pelas galerias subterrâneas, com uma curiosa população de esculturas antigas de mármore branco, posicionadas como se estivessem numa reunião.

As lanternas dos oficiais também iluminaram uma vasta quantidade de pinturas, 6.755 delas, contabilizou-se depois, apoiadas nas pedras de sal, sem nenhum plástico que as protegesse. Mais de 5.000 eram de grandes mestres, incluindo a joia da pintura holandesa "Adoração do Cordeiro Místico" (1425-32), dos irmãos Van Eyck, uma madona de Michelangelo e "O Astrônomo", de Vermeer.

Anos mais tarde especulou-se que a pintura mais famosa do mundo, a "Mona Lisa", de Da Vinci, tenha estado na mesma mina, no período de três anos em que a sorridente obra-prima ficou realmente escondida. O pesquisador norte-americano Noah Charney, autor de um livro sobre o tema, "The Thefts of the Mona Lisa" [Arca, US$ 18, 162 págs.], concluiu que houve sim uma Gioconda no subsolo de Altaussee, mas que se tratava de uma cópia, que os nazistas acreditaram ser a verdadeira.

Não havia só quadros pela mina. Em caixotes e cestas, repousavam pilhas de livros e de documentos antigos, e móveis de variados estilos, inclusive tronos, eram vigiados por armaduras de 600 anos.

Espalhadas por todo o cenário estavam caixas de madeira, de diferentes tamanhos, com a mesma inscrição, que também pôde ser vista nos versos de muitas das melhores pinturas: A.H., Linz.

Havia mais de 3.000 anos, e ainda hoje, aquela mina tinha sido usada para a extração de sal. Mas naqueles tempos de guerra ela se convertera numa espécie de reserva técnica, um depósito para o gigantesco museu que Adolf Hitler (o A.H.) pretendia construir na cidade austríaca onde passou parte de sua infância e adolescência.

O ambicioso projeto de Linz, que caso houvesse sido levado a cabo constituiria o maior museu de todos os tempos, implodiria em seguida.

Pouco antes de se suicidar, em 30 de abril de 1945, o líder nazista ditou um testamento, no qual manifestava o desejo de que o museu fosse continuado por seus seguidores, mas seu delírio não ultrapassou os limites do bunker de Berlim, onde ele mantinha uma maquete do tamanho de um quarto do "Führermuseum".

Com a fachada desenhada pelo próprio Hitler, como se sabe um pintor e arquiteto frustrado, o museu começou a ser planejado antes do início da guerra. Em junho de 1939, a meses da invasão da Polônia, um historiador da arte designado para montar o acervo da instituição já tinha em mãos um orçamento equivalente a R$ 185 milhões atuais.

Em fins de 1944, com muitos alemães em debandada, a empreitada ainda ganhava fôlego (e dinheiro). Naquela altura, sua dotação orçamentária era de inacreditáveis R$ 1,38 bilhões.

Ainda que muitos marcos alemães tenham sido empregados em compras e vendas de obras de arte na Europa, ao longo da Segunda Guerra, não era este o principal expediente do Exército alemão para saciar a fome de arte de Hitler e de outros líderes do Terceiro Reich. Roubar, espoliar e confiscar eram verbos mais conjugáveis.

Um dos melhores trabalhos já feitos sobre o tema, "O Museu Desaparecido - A Conspiração Nazista para Roubar as Obras-Primas da Arte Mundial" [trad. Silvana Cobucci Leite, WMF Martins Fontes,  384 págs.], de Héctor Feliciano, chega  às livrarias brasileiras. 

Bruno Poletti/Folhapress

Ilustração de Ana Prata

Não é um capítulo encerrado, este ao qual o premiado jornalista porto-riquenho dedicou muitos anos de pesquisa, desde que topou acidentalmente com o tema, em 1988. Os recentes acontecimentos num apartamento do bairro de Schwabin, em Munique, ilustram isso com vivacidade.

Feliciano conta à Folha que quase engasgou quando leu a edição digital do "Guardian", há dois domingos, no terraço de sua casa, em San Juan, capital de Porto Rico.

O diário britânico reproduzia a notícia dada pela revista alemã "Focus" de que mais de 1.400 obras haviam sido encontradas em posse de Cornelius Gurlitt, filho de um dos marchands mais influentes entre os nazistas, Hildebrand Gurlitt.

Uma das pinturas apreendidas no apartamento do misantropo Gurlitt, "Mulher Sentada em uma Poltrona" (1920), de Henri Matisse, estava inclusive reproduzida no livro do jornalista.

Era uma obra sem destinação conhecida, que pertencera a uma das principais coleções de arte de marchands judeus franceses confiscadas durante a guerra, a de Paul Rosenberg (1881-1959), que foi galerista de artistas como Matisse, Picasso e Braque.

Como conta em minúcias "O Museu Desaparecido", em texto fluente e repleto de informações, a coleção Rosenberg integra o conjunto de 100 mil pinturas roubadas, apenas na França, pelos nazistas, que também confiscaram cerca de 500 mil móveis e mais de 1 milhão de livros e manuscritos.

O trabalho de Feliciano ilumina todas as engrenagens dessa máquina de roubar obras de arte: que estruturas de poder organizavam os butins, de quem confiscavam, que tipos de pinturas eram almejados, como as peças eram transportadas, estocadas, quem saía ganhando com esse vaivém.

EPICENTRO

Ainda que muitos tenham sido os cenários dessa história, o epicentro foi o museu conhecido como Jeu de Paume, na place de la Concorde, centro de Paris. Nesse pavilhão, construído em 1861 por Napoleão 3° originalmente como um espaço para o jogo ancestral do tênis, funcionou o maior depósito de obras roubadas pelos nazistas.

Lá também operou a principal das três estruturas do Reich para roubo de arte, a ERR, abreviação de Einsatzstab Reichsleiters Rosenberg für die Besetzten Gebiete, ou Destacamento Especial do Dirigente do Reich Rosenberg para os Territórios Ocupados, sendo o Rosenberg em questão o ideólogo nazista Alfred Rosenberg.

Só no período que vai do outono de 1940, quando a França já estava ocupada pela Alemanha, ao inverno de 1941, sabe-se que o ERR teve ao menos 60 funcionários fixos: historiadores, restauradores, fotógrafos. O labor deles era acompanhado pela elite do Reich.

O número 2 do regime nazista, Hermann Goering, comandante-chefe da Força Aérea alemã, esteve pessoalmente mais de 20 vezes no Jeu de Paume, para supervisionar trabalhos e, sobretudo, para alimentar sua coleção particular.

Um depoimento do líder nazista Hans Frank durante o Julgamento de Nuremberg, o tribunal militar internacional para julgar os crimes de guerra, entre 1945 e 1946, dá a ideia da afeição do "reischsmarschall" pela arte. "Se Goering tivesse gasto mais tempo na Força Aérea e menos nas bacanais e pilhando obras de arte, talvez a Alemanha estivesse em melhor situação hoje, e eu não estaria preso nesta cela", disse Frank.

O testemunho está recolhido no livro "As Entrevistas de Nuremberg" [trad. Ivo Korytowiski, Companhia das Letras, R$ 68, 552 págs.], de Leon Goldensohn, que traz ainda depoimentos do próprio Goering sobre arte.

"De todas as acusações lançadas contra mim, a chamada pilhagem de tesouros artísticos foi a que mais me angustiou", disse. Ele também tratou de suas preferências. "Gosto de todo tipo de arte, exceto o negócio futurista, que detesto. Costumo ser bem cético quanto às pinturas modernas. Picasso, por exemplo, me enoja."

Sabidamente não estava sozinho nestas avaliações. Modernistas em geral eram tratados como "degenerados" e, se eram muito bem guardados pelos nazistas, numa ala do Jeu de Paume batizada de Sala dos Mártires, era para que fossem vendidos ou trocados por outras pinturas consideradas "nobres". "Um mestre da pintura, ou ainda um de seus insossos seguidores,
vale por seis, sete, oito ou até dez 'petimetres' modernos", contabiliza Héctor Feliciano.

CONFISCOS

Hitler não frequentava o Jeu de Paume -só esteve uma vez em Paris em toda a sua vida, numa viagem furtiva logo depois da ocupação-, mas acompanhava com zelo os confiscos na França.

"De todos os ditadores do século 20, nenhum gostou tanto de arte quanto Hitler", diz Feliciano. "Se não houvesse esse interesse profundo e tão integrado na ideologia nazista, não teria havido um butim deste tamanho. Em pleno esforço de guerra, consideravam cada saque tão importante quanto ganhar uma batalha."

Prova da importância que dava ao tema dos saques artísticos é um relatório que Hitler encomendou antes da guerra a um historiador alemão chamado Otto Kümmel.

Ele pediu ao então diretor dos museus nacionais do país para elencar todas as obras de arte roubadas da Alemanha desde o século 16, para que fossem recuperadas.

O chamado "Relatório de Kümmel" é composto por três volumes, cada um com cem páginas. Na lista, entram desde flâmulas e bandeiras roubadas pela Suécia na Guerra dos Trinta Anos (1618-48) até pinturas da coleção do rei da Inglaterra, como "Cristo e Maria Madalena", de Rembrandt, um dos artistas prediletos do Führer.

Hitler não teve muito sucesso com as obras listadas por Kümmel, mas sua política de saque de obras de arte pode ser considerada a mais eficiente desde que Roma começou a pilhar peças da Antiguidade Grega.

O alvo principal eram as grandes coleções. E a que sofreu mais perdas foi a da tradicional família de banqueiros Rothschild, que teve 5.009 obras confiscadas.

Feliciano dá bastante destaque também às expropriações das obras do colecionador Alphonse Kann, do investidor Fritz Guttmann, dos banqueiros David-Weill e da dinastia Bernheim-Jeune.

Depois da guerra, uma parte importante das obras foi restituída às famílias. Havia ao menos um destacamento dos Aliados dedicado só a essa tarefa, chamado de Monumentos, Obras de Arte e Arquivos. O grupo, formado em 1943, para ajudar a proteger e detectar obras roubadas (e também devolvê-las), ficou conhecido como "The Monuments Men".

É este o nome de um livro de Robert M. Edsel, no Brasil lançado como "Caçadores de Obras-Primas" [trad. Talita M. Rodrigues, Rocco, R$ 57, 368 págs.], base de um filme homônimo dirigido e protagonizado por George Clooney.

Feliciano diz que o livro é "chauvinismo militar americano", pois, a seu ver, dá a entender que só oficiais daquele país estiveram na elite de resgate de obras de arte, quando havia, entre outros, militares franceses, canadenses e britânicos.

De qualquer modo, por maiores que tenham sido os esforços dos "Monuments", uma parte substancial dos roubos nunca voltou às famílias originais.

LEGISLAÇÕES

A obra de Feliciano, publicada em diversos países do mundo, acelerou o processo de restituição, assim como outra obra importante sobre o tema, "Europa Saqueada" [trad. Carlos Afonso Malferrari, Companhia das Letras, R$ 68, 544 págs.], da historiadora Lynn H. Nicholas, lançada nos Estados Unidos em 1994. Após as publicações dos livros, tiveram lugar mudanças nas legislações de diversos países.

"O Museu Desaparecido" chama a atenção para o fato de que as instituições francesas detinham, à época do lançamento do livro no país, mais de 2.000 obras de arte recuperadas depois da guerra e não restituídas aos proprietários originais. O jornalista identificou telas importantes em tal condição, como a pintura cubista "Dama em Vermelho e Verde", de Fernand Léger, que estava no Centro Pompidou, ou "O Bosque", do pintor François Boucher, uma das 400 obras "não reclamadas" do acervo do Louvre.

Em 1997, o presidente Jacques Chirac anunciou a criação de uma comissão para tratar do tema, a qual organizou uma exposição nacional com todas as pinturas, respondendo ao argumento de Feliciano de que os museus nem sempre davam visibilidade às obras não reclamadas e não se esforçavam para encontrar os donos originais.

O número de obras roubadas e não restituídas foi caindo progressivamente, mas, das 100 mil pilhadas só na França, o autor estima que cerca de 25 mil ainda não tenham sido devolvidas.

Segundo ele, houve avanços na legislação alemã, que passou a considerar como roubadas também as peças vendidas entre 1933, ano de ascensão de Hitler ao poder, e 1939, já que colecionadores eram forçados a vender. A legislação que menos contribui, para ele, é a da Suíça, que só pune as compras comprovadamente de má fé.

Houve quem alegasse que Feliciano, mestre em jornalismo pela Universidade Columbia e doutor em literatura pela Universidade de Paris, estivesse agindo de má-fé.

Em 1998, três descendentes diretos do conhecido marchand Georges Wildenstein o processaram no Tribunal de Grande Instância de Paris, acusando-o de danos morais por conta de passagens do livro que tratavam das ligações do galerista com os nazistas.

"Mesmo depois do armistício na França e da ocupação alemã desta, Wildenstein parece ter tirado proveito dessa rede de contatos para organizar uma série de contratos e transações com os alemães", diz um trecho do livro.

Os herdeiros pediam US$ 1 milhão e exigiam que ele não voltasse a mencionar o nome Wildenstein em qualquer de seus escritos. As idas e vindas na Justiça levaram cinco anos, até que a Cour de Cassation (equivalente francês do Supremo Tribunal Federal) indeferiu a demanda dos galeristas.

Ainda em plena atividade no universo da arte, os Wildenstein têm uma ligação estreita com a história dos museus no Brasil. Eles foram os principais vendedores de pinturas de grandes artistas internacionais para o Museu de Arte de São Paulo, o Masp.

Segundo levantamento feito pela Folha, ao menos 52 pinturas importantes do museu passaram pelas galerias Wildenstein, entre elas 36 obras francesas, 6 espanholas e 4 italianas.

CASSIANO ELEK MACHADO, 38, é editor da "Ilustríssima".
ANA PRATA, 32, é artista plástica. Participa da 18ª edição do Festival Sesc_Videobrasil, que ocorre até 2/2 no Sesc Pompeia.
Folha de S. Paulo

Zelota: a Vida e a Época de Jesus de Nazaré


Os ideais revolucionários de Jesus


REINALDO JOSÉ LOPES

RESUMO Livro de autor norte-americano de origem iraniana defende que as pregações de Jesus convocando o "Reino de Deus" sejam lidas de forma mais literal e revolucionária que espiritual. Embora a tese não seja totalmente inovadora, "Zelota" popularizou-se após seu autor, muçulmano, ser atacado em entrevista à TV nos EUA.

"Não penseis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer paz, mas espada. Vim trazer divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe", declara Jesus no capítulo dez do Evangelho de Mateus.

Durante séculos, a maioria dos cristãos interpretou a frase belicosa do Nazareno de modo espiritual. Afinal, se levadas ao pé da letra, as exigências de Cristo para abandonar riquezas, casa, pais e filhos para segui-lo não estão entre os assuntos mais agradáveis para um almoço familiar de domingo.

Para o escritor norte-americano de origem iraniana Reza Aslan, no entanto, está na hora de voltar a ler os versículos em seu contexto original -no qual a ideia era desembainhar uma espada literal, e não metafórica.

Eis, em essência, a premissa de "Zelota: a Vida e a Época de Jesus de Nazaré" [trad. Marlene Suano, Zahar, 308 págs.], novo livro de Aslan, 41, que acaba de ser lançado no Brasil: Jesus não era um mestre pacifista, que só pensava em exaltar as virtudes dos lírios do campo e oferecer a outra face.

O principal objetivo do profeta de Nazaré, fomentar a vinda do "Reino de Deus", equivalia a um programa político (e revolucionário), que envolvia a expulsão dos romanos da Palestina e a recriação da antiga e gloriosa monarquia israelita, com o próprio Jesus no trono, sob as bênçãos de Deus.

Daí o nome do livro: zelota (do grego "zelotes") é como os autores bíblicos denominavam os judeus especialmente zelosos das prerrogativas religiosas do Deus de Israel -uma divindade que, ao menos no Antigo Testamento, era capaz de uma aterrorizante fúria militar contra os inimigos dos israelitas. Mais tarde, o termo seria usado para designar uma seita revolucionária judaica.

"Vamos colocar a coisa da seguinte forma: há aqueles que acham que Jesus era total e absolutamente único, diferente de todos os judeus do seu tempo. E há os que acham que, embora ele fosse extraordinário e inovador, ainda assim seu pensamento tinha muito em comum com o de outros judeus. Eu faço parte desse segundo grupo", explicou Aslan, à Folha, em entrevista por telefone.

"Os demais judeus do século 1º d.C. acreditavam que o Messias era um descendente do rei Davi cujo trabalho seria derrotar os inimigos de Israel e implantar o Reino de Deus na Terra. Acredito que essa era a visão que Jesus tinha sobre si mesmo."

Aslan é um acadêmico, com mestrado em teologia na Universidade Harvard e doutorado em história das religiões na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, mas seu livro conquistou o grande público. Razões alheias ao seu conteúdo contribuíram para que a obra tivesse virado best-seller nos nos EUA.

No dia 26 de julho, dez dias após o lançamento norte-americano do livro, Aslan foi hostilizado por uma entrevistadora do canal conservador Fox News, que exigiu que ele explicasse por que um muçulmano iria querer escrever um livro sobre Jesus. "Ser atacado de falta de 'jesusidade' por uma âncora da Fox Nex é aparentemente um bom caminho para conduzir seu livro ao número 1 das listas", comentou Adam Gopnik, na revista "New Yorker".

O que a âncora de TV provavelmente não sabia era que o histórico religioso de Aslan é mais complexo do que ela deu a entender. Nascido numa família iraniana secular, ele tornou-se evangélico na adolescência e, mais tarde, retornou à fé de seus ancestrais.

Larry D. Moore/Wikimedia Commons

O escritor Reza Aslan

"O ponto mais importante, que muito gente não conseguiu entender, é que o livro não é sobre o cristianismo -Jesus, afinal, não era cristão, mas judeu. Meu tema é o judaísmo de veia revolucionária que existia no século 1º d.C., do qual Jesus era um representante", sustenta Aslan, que hoje é professor da Universidade da Califórnia em Riverside.

O BÁSICO

A abordagem do escritor é, em grande medida, uma espécie de "retorno ao básico" na pesquisa histórica sobre a figura de Jesus Cristo.

De fato, um dos primeiros intelectuais a tentar uma interpretação secular para entender quem foi o Nazareno, o alemão Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), já defendia que os objetivos de Jesus eram basicamente políticos.

Especialistas contam ao menos três grandes fases de "busca pelo Jesus histórico", a mais recente delas nos anos 1980. Um consenso entre os estudiosos parece quase tão distante quanto era no século 19.

Aslan diz que não há muito mistério sobre o porquê desse aparente fracasso acadêmico. "Fora do Novo Testamento, simplesmente não há nenhum traço de evidências a respeito de Jesus que seja do século 1º d.C.", afirma.

"Creio que até existe algum consenso, mas ele é muito limitado. Podemos dizer que Jesus era um judeu, que iniciou um movimento para os judeus da Palestina, e que Roma o executou como inimigo do Estado. E é só", diz Aslan. "O que conseguimos fazer é pegar esse pouquinho e colocá-lo no contexto do mundo no qual Jesus viveu, sobre o qual sabemos muita coisa.

Sempre há a possibilidade de que alguma nova descoberta arqueológica mude esse cenário. Mas por enquanto isso não aconteceu."

INTERPRETAÇÕES

Diante de tal pobreza de dados, talvez não seja surpreendente que haja hoje no mercado uma variedade enorme de interpretações sobre Jesus.

Excetuando a ideia de que o personagem nunca tenha existido, sendo apenas uma figura mitológica inventada pelo apóstolo Paulo ou outro membro da primeira geração de cristãos -o que raríssimos historiadores sérios consideram como uma possibilidade-, uma das visões mais influentes é a esposada pelo ex-padre irlandês John Dominic Crossan.

Autor de "Quem Matou Jesus?" [trad. André Cardoso, Imago, R$ 60, 268 págs.], Crossan afirma que Jesus teria sido uma versão judaica dos filósofos cínicos gregos. Em outras palavras, um pensador itinerante que atacava as convenções sociais e convidava seus ouvintes a levar uma vida de solidariedade radical ("comensalidade" é um dos termos técnicos), defendendo que o "Reino de Deus" já estava presente entre os membros dessa confraria.

Outro termo técnico para descrever a posição de Crossan e de outros especialistas é "escatologia realizada", no sentido de que o Jesus histórico pintado por eles não esperava o Juízo Final e a ressurreição dos mortos (e talvez nem a sua própria): a "escatologia", ou seja, a consumação do plano de Deus para o mundo, aconteceria naturalmente entre os que abraçassem a mensagem do Nazareno.

Opõe-se a essa visão um grande campo de pesquisadores, bastante heterogêneo, para quem Jesus era acima de tudo um profeta apocalíptico, ou seja, alguém que previa -provavelmente "para ontem", ainda durante seu tempo de vida- a intervenção decisiva de Deus na história, libertando o "povo escolhido" de Israel e instaurando uma nova era de justiça e de paz.

Uma das abordagens mais influentes sob essa perspectiva está em um dos quatro volumes da série, ainda não concluída, "Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico" [trad. Laura Rumchinsky, Imago, 468 págs., esgotado], do padre norte-americano John P. Meier.

Ao analisar algo que parece ser tão banalmente cristão quanto a oração do Pai Nosso, por exemplo, Meier argumenta que a expressão "Venha a nós o vosso reino" deve ser lida, nos lábios de Jesus, como nada menos que um pedido para que a intervenção apocalíptica de Deus no Cosmos acontecesse o mais breve possível -o "reino" nada mais seria que esse domínio restaurado do Senhor.

Aslan pende mais para o segundo campo, embora sua ênfase política o distinga de Meier, de quem se declara admirador. "Não acho que eu esteja explorando algum terreno realmente novo na questão", pondera. "Consegui apenas reunir os principais dados e argumentos de uma maneira coerente e que pode ser compreendida pelo leitor não especializado."

Apesar da modéstia, Aslan teve peito para defender posições controversas mesmo para os padrões da pesquisa sobre o Jesus histórico. Ele vê a célebre "purificação do Templo" (episódio no qual Jesus expulsa cambistas e vendedores de animais do local mais sagrado de Jerusalém) como um ataque político direto à corrupção da elite sacerdotal judaica, aliada a Roma, coisa com a qual muitos outros estudiosos concordam.

Mas vai além e argumenta que a passagem na qual Jesus diz "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" é, na verdade, uma frase sutilmente subversiva. E parte de uma explicação filológica: o "dai" seria tradução do verbo grego "apodidomi", ou "devolver". Em vez de dizer que é certo pagar imposto para os romanos, tema da frase, Jesus estaria dizendo simplesmente que se deve devolver o dinheiro romano ao imperador e retomar o que pertence a Deus, ou seja, a Terra Santa de Israel.

Da mesma forma, a ideia de "oferecer a outra face" seria aplicável apenas a irmãos judeus, não a pagãos ocupando Jerusalém, ou a qualquer outro não judeu.

"O judaísmo era tudo o que Jesus conhecia e pregava. Ele mesmo afirmou que não veio para abolir nem uma só letra da Lei de Moisés", diz Aslan. "O mandamento de amar ao próximo já estava presente no judaísmo, mas valia apenas para membros da comunidade de Israel."

Pergunto se, sob essa perspectiva, Jesus e outros profetas e revolucionários judaicos do século 1º d.C. (alguns dos quais acabariam expulsando os romanos temporariamente entre 66 d.C. e 70 d.C., até serem esmagados) poderiam ser comparados aos muçulmanos que defendem a jihad hoje.

"Certamente em nenhum momento Jesus pregou a violência contra não combatentes", afirma Aslan. "Mas, é claro, ao longo da história, sempre houve o uso da religião como arma contra potências consideradas opressoras ou em favor da justiça social."

REINALDO JOSÉ LOPES, 34, é jornalista, assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.
Jornal Folha de S. Paulo

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O discreto charme do populismo

 
Vargas, Perón e Rujas: exemplos dos governos populistas estabelecidos no continente americano.
http://www.brasilescola.com
ELEONORA DE LUCENA
 
O Livro de Ernesto Laclau publicado agora no Brasil revê o populismo em chave bem diversa do menosprezo e desdém em geral atribuído a ele. Para o pesquisador, a prática política representa uma articulação profunda por mudanças institucionais e teve papel preponderante na consolidação da democracia na América Latina.

O populismo foi essencial na construção de governos nacionais e populares na América Latina e "teve um papel enormemente positivo para a democracia no continente". A visão é do sociólogo e historiador argentino Ernesto Laclau, 78, um especialista no tema que divide o debate político e horroriza setores conservadores.
Professor emérito de teoria política da Universidade de Essex (Grã-Bretanha), Laclau mergulha no fenômeno em "A Razão Populista" [trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Três Estrelas, 384 págs.].

Parafraseando o célebre "Manifesto Comunista", de Karl Marx, ele afirma: "Há um fantasma que assombra a América Latina e esse fantasma é o populismo".

Para ele, a ascensão de movimentos de massas no continente provoca mudanças em governos, que assumem características nacional-populares. Há batalhas por alterações institucionais e inevitáveis choques com elites.

Institucionalismo versus populismo -aí está o embate.

"A participação democrática das massas, com seus ideais comunitários, não se ajusta a Estados liberais tradicionais", afirma ele, em entrevista à Folha.

Afinal, as instituições nunca são neutras. "Elas são a cristalização de uma relação de forças entre grupos sociais. Quando mudam essas relações, as instituições -e até as constituições- precisam ser modificadas. Estamos num processo de mudança no qual as novas forças sociais estão fazendo novas demandas e, naturalmente, vão se chocar com vários aspectos constitucionais estabelecidos anteriormente, em sociedades que eram muito diferentes", analisa.

É para bloquear essa ascensão das massas que o poder conservador trata de se agarrar a essas antigas formas institucionais e faz uma cruzada antipopulista, avalia Laclau.

"Não que as instituições tenham que ser abolidas, mas precisam ser reformadas", pondera. "As instituições da República Velha do Brasil não funcionariam na sociedade contemporânea", exemplifica o professor.

Laclau se refere especialmente às mudanças institucionais ocorridas na Bolívia, no Equador e na Venezuela.

Nesse último país, diz que houve uma mudança radical, que deixou para trás uma sociedade desestruturada e com pouca participação de massas. Destaca o papel das "misiones" (os programas sociais chavistas), que formam grupos autônomos em distintos níveis da comunidade. "Essa sociedade necessita instituições novas, e os conservadores querem manter as instituições mais tradicionais."

Também no Equador o debate foi para mudar leis dos anos 1990, que refletiam o apogeu do neoliberalismo e das ideias do Consenso de Washington implantadas no país. Situações semelhantes ocorrem na Bolívia, com participação indígena, e na Argentina.

Pergunto sobre o alegado viés autoritário que, segundo alguns, está embutido em mudanças nesses países. Laclau diz que a acusação é absurda. Cita as eleições periódicas que ocorrem hoje no continente. E lembra as ditaduras que proliferaram por aqui no século 20, especialmente do Chile de Augusto Pinochet.

"Se houve um ataque autoritário às instituições, esse ataque não veio do populismo, veio do neoliberalismo", declara.

RETÓRICA

O populismo é alvo de achincalhe, menosprezo, desdém. Muitas vezes, é apontado como simples retórica.

É o que Laclau descreve, com exemplos históricos, em todo um capítulo. "O populismo não só tem sido degradado mas também denegrido. Seu rechaço tem sido parte da construção discursiva de certa normalidade, de um universo político ascético do qual sua lógica perigosa teria que ser excluída", diz.

É dessa concepção de um mundo sem ação das massas que surgem as conhecidas ideias de que governos devem ser exercidos por técnicos e gestores teoricamente competentes? "Trocar a política pela administração tem sido sempre a ideologia conservadora das elites econômicas da América Latina", responde Laclau.

E observa que não é à toa que na bandeira brasileira consta o lema positivista "ordem e progresso".

E o que é, então, o populismo? Para Laclau, é "uma forma de construir o político, não é uma ideologia".

Supõe uma divisão da sociedade em dois campos e ocorre quando os "de baixo" interpelam o poder. Surge quando as instituições já não são capazes de absorver as reivindicações dos "de baixo". "Tais demandas tendem a se aglutinar fora do sistema, num ponto de ruptura com o sistema. É o corte populista", define.

É na construção desse conceito que se desenrola o livro "A Razão Populista", publicado originalmente na Grã-Bretanha em 2005. Na apresentação da edição brasileira, os professores Alice Casimiro Lopes e Daniel de Mendonça frisam que o populismo "não é uma anomalia ou mesmo um subdesenvolvimento irracional da democracia representativa".

Eles ressaltam que o populismo, na concepção de Laclau, não pode ser resumido apenas à relação entre liderança política e população, ao seu carisma. Mas representa uma articulação política muito mais profunda, uma "construção do povo contra o seu inimigo" -pobres versus ricos, nacionais versus estrangeiros. O povo não é uma categoria estática, mas sempre uma construção discursiva, com as mais diversas experiências e tendências ideológicas.

Licenciado em história pela Universidade de Buenos Aires, Laclau foi para a Inglaterra nos anos 1970. Dirigiu o Centro de Estudos Teóricos em Humanidades e Ciências Sociais em Essex. Escreveu "Política e Ideologia na Teoria Marxista" (Paz e Terra, 1978) e "Emancipação e Diferença" (Eduerj, 2011).

Por telefone, desde Londres, o historiador afirma que na República Velha brasileira os canais para as demandas ocorriam por meio do coronelismo e outras formas de poder.

"Em certo momento, as demandas das massas começaram a ser mais amplas do que os canais institucionais tradicionais podiam absorver. Então começam a ser produzidos momentos de ruptura: a Coluna Prestes, a Revolução de 1930, o Estado Novo. É um processo de rompimento com os canais tradicionais de absorção das demandas e de formulação das demandas."
Como comparar Getúlio Vargas com Juan Domingo Perón?

"Perón encarnava um populismo mais radical", avalia Laclau. A Argentina naquela época tinha núcleos industriais bem definidos (Buenos Aires, Rosario, Córdoba) e uma sociedade mais homogênea. "Vargas encontrou uma base social muito mais heterogênea. O Brasil é mais regionalizado do que a Argentina. Getúlio foi um líder populista impuro, mas um articulador de interesses muito visíveis."

Laclau lembra que o processo de construção da democracia na América Latina tem características específicas. Na Europa, o Legislativo assumiu um papel de protagonista, ao levar as reivindicações populares ao poder monárquico centralizador. Aqui, aconteceu o contrário.

"O poder parlamentar era o poder das oligarquias locais, de proprietários de terras, de interesses agrários que se organizavam em torno do Estado. Na América Latina, o Poder Executivo tem sido mais democrático que o Legislativo e segue sendo central na democracia de hoje", analisa.

ORIENTAÇÃO

Segundo Laclau, o populismo pode ser de direita ou de esquerda -é indeterminado do ponto de vista de sua orientação ideológica.

"O fascismo italiano e o maoísmo na China foram populismos", defende. Se atualmente, na América Latina, "o populismo está ligado à ascensão de regimes de esquerda e se fundamenta na construção de uma ordem nacional e popular que rompa com os ditames do Consenso de Washington", na Europa é diferente.

Lá, aponta o sociólogo, "temos um populismo étnico em países do Leste, após a desintegração do sistema soviético; um populismo também de direita na Europa Ocidental, baseado na xenofobia e no repúdio aos imigrantes".

São casos de um populismo "conservador e reacionário, que não é progressivo em nenhum aspecto". Ao contrário do que ocorre na América Latina, aí o populismo é negativo na classificação de Laclau.

Na história brasileira, ele inclui Adhemar de Barros entre os populistas, comparando-o com Mao Tse-tung. São dois exemplos extremos. Na Grande Marcha chinesa, há a tentativa de constituir "o 'povo' como ator histórico a partir de uma pluralidade de situações antagônicas". O contexto é de guerra civil, invasão japonesa. Existe a intenção de romper com a ordem institucional e construir outra.

Já em Adhemar, do lema "rouba, mas faz", Laclau enxerga um clientelismo e um sistema de corrupção que, à primeira vista, pouco têm a ver com o projeto emancipatório de Mao. Mas ele define os dois como populistas. "O elemento comum é fornecido pela presença de uma dimensão anti-institucional, de certo desafio a uma normalização política, à 'ordem habitual das coisas'. Em ambos os casos ocorre um chamado aos despossuídos", argumenta.

Há a atração popular pelo criminoso de alto coturno, por alguém que está fora do sistema legal e o desafia, diz Laclau, acrescentando que "o clientelismo não é necessariamente populista".

O que acha o sociólogo sobre o "lulismo"? "É um fenômeno altamente positivo na sociedade brasileira", responde, especialmente porque elabora um equilíbrio entre uma nova participação de massas e a transformação do Estado.

E Lula é um populista? Parcialmente, diz. "Lula foi um construtor de uma sociedade civil nova", declara. Para ele, o ex-presidente foi muito importante para "valorizar a integração latino-americana", estruturando o Mercosul e rechaçando a implantação da Alca, almejada pelos EUA.

Apesar das muitas nuances e diferenças, Laclau avalia que, "no essencial, o Brasil acompanhou o processo de afirmação nacional e popular no continente". Os protestos recentes mostram que não há ligação direta entre a melhoria das condições econômicas e as manifestações por mudança.

Pelo mundo, ele identifica um elo entre as várias revoltas que eclodiram a partir da crise de 2008: a menor capacidade das instituições tradicionais de absorver as demandas das massas. "As pessoas não se reconhecem no sistema político e começam a se mobilizar fora dele", advoga.

Na visão de Laclau, "uma das coisas boas dos regimes populares da América Latina é que conseguiram combinar bastante bem as mobilizações dos 'de baixo' com uma tentativa de mudar a estrutura do Estado. Isso funcionou na região muito melhor do que na Europa, que é mais impermeável a modificações. Lá as pessoas percebem que há poucas possibilidades de mudanças dentro do sistema".

Esse fato, segundo ele, ajuda a explicar os problemas que a esquerda enfrenta no velho continente. De um lado, há burocratização de regimes distanciados das massas; de outro, massas que protestam sem almejar o Estado e sem maior organização.

"Não creio no discurso que diz não se importar com o poder estatal. A mobilização das massas, se não é acompanhada de um projeto de transformação política, tende à dispersão", alerta. Para ele, os movimentos precisam buscar autonomia e "transformar o Estado". 
Folha de S. Paulo