domingo, 23 de fevereiro de 2014

Renascer para a morte

Nem só de luzes viveu a arte renascentista: temas macabros faziam lembrar a fragilidade da vida e condenavam a vaidade

Maria Berbara


Imagem: Museu do Prado
 
A ideia de representar a morte através de um esqueleto segurando uma ampulheta não é, como se poderia pensar, medieval. Essa imagem, assim como a de cadáveres decompostos assombrando vivos, surge no século XIV europeu e se torna frequente nas primeiras décadas do século XVI – na mesma época, portanto, em que Michelangelo realiza as espetaculares pinturas no teto da Capela Sistina, Rafael recria a claridade serena da Escola de Atenas e Leonardo Da Vinci sonha com o protótipo de máquinas voadoras e submarinas.

Um dos maiores mitos construídos em torno do Renascimento é o de que foi um período otimista, alegre e solar, em oposição às “trevas” medievais. Longe disso. A percepção aguda da passagem do tempo herdada da tradição clássica, somada a uma consciência histórica particularmente sensível, povoou a literatura e as artes visuais de imagens tristes, mórbidas ou melancólicas, nas quais a morte e a velhice obscurecem a alegria de uma juventude breve demais.

Em 1527, o imperador Carlos V de Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico, comanda o saque de Roma. Durante três dias a cidade eterna é atacada, pilhada e selvagemente destruída: edifícios são queimados, obras de arte e livros são extraviados, a guarda suíça é praticamente dizimada. Entre a população civil, calcula-se que se tenham perdido ao menos 6 mil vidas somente nos primeiros dias. Mesmo quando Carlos V ordena o fim do saque, Roma permanece ocupada por soldados por mais oito meses. A abundância de corpos insepultos favorece a erupção de uma epidemia de peste. Alimentos e água limpa tornam-se bens escassos. Desde o surgimento dos primeiros discursos sobre o Renascimento, Roma vinha personificando no imaginário humanista a grandeza da urbe imperial rediviva e o renovado poder vaticano. O saque colocou à prova essas associações, acentuando um sentimento de profunda melancolia. Após 1527, a imagem das ruínas antigas já não evoca tanto o passado clássico, mas sim exprime um sentimento de desolação ante a percepção da vitória definitiva do tempo sobre o homem e todas as suas realizações.

Entre 1538 e 1540, o pintor e humanista português Francisco de Holanda (ca. 1517-1585), então residente em Roma, faz desenhos que reproduzem pinturas, esculturas, monumentos e fortalezas da cidade, compondo o chamado Álbum dos Desenhos das Antigualhas (também conhecido como Álbum do Escorial). Entre esses desenhos, porém, Francisco incluiu o que parece ser uma alegoria da Roma decaída. Concebida como a quintessência alegórica do mundo clássico, a cidade é representada como uma jovem mulher parcialmente nua, usando uma coroa sobre a qual descansa um cenário de ruínas. Seus braços pendem inermes e a mão direita segura um espelho. Ao fundo, aparecem os esplendores de outrora: o coliseu, a coluna trajana, o obelisco vaticano. Na parte inferior do desenho lê-se a frase Non similis sum mihi, isto é, “Não me pareço comigo mesma”, que contrasta dolorosamente a glória do passado com a miséria do presente.

Mesmo antes do saque, a presença da morte já permeava a arte europeia. Uma forte veia de arte macabra percorre diversas regiões até ao menos os anos 1550, vinculada à difusão de estampas anatômicas, nas quais a beleza plástica do cânone antigo e da teoria das proporções está associada à evidência moral da morte. Talvez o livro anatômico mais influente do século XVI tenha sido De humani corporis fabrica (ou simplesmente Fabrica), publicado pela primeira vez em 1543. Obra do médico belga Andrea Vesalius (1514-1564), é composto por uma série de estampas – realizadas, provavelmente, por Stephen van Calcar, discípulo de Ticiano – representando os diferentes sistemas de funcionamento do corpo humano, como o esquelético, o nervoso e o vascular. Naquela que é, talvez, a imagem mais célebre do livro, um magnífico esqueleto apoia melancolicamente o próprio crânio em uma das mãos enquanto, ao modo de um Hamlet, parece monologar pousando a outra mão em um crânio sobre uma tumba onde se lê a inscrição latina: Vivitur ingenio, caetera mortis erunt, ou seja, “O engenho vive, todo o resto é mortal”. Se a morte de todas as coisas é certa, a estampa parece indicar como possível via de superação a realização intelectual, o “engenho”.

Com conotação muito mais sombria, o esqueleto-morte é representado em diversas estampas do mestre alemão Albrecht Dürer (1471-1528). Em uma delas, um jovem casal, belo e bem vestido, conversa serenamente em primeiro plano, enquanto, ao longe, escondida atrás de uma árvore, espreita a morte – representada por um esqueleto erguendo uma ampulheta. O sentido da representação não poderia ser mais claro: memento mori, “lembra-te da morte”. A mensagem funciona como uma advertência moralizante: enquanto nos deleitamos com os prazeres mundanos, a morte se aproxima, e haveremos de ser julgados pelo que fizemos ou deixamos de fazer enquanto tivemos a oportunidade de nos dedicarmos à vida espiritual e à reflexão sobre a morte, em vez das delícias dos sentidos.

Na mesma tradição do memento mori trabalha o discípulo de Dürer, Baldung Grien (ca. 1484-1545), acrescentando, porém, o elemento erótico: em uma de suas mais famosas telas, a morte abraça uma jovem que, coberta apenas por uma leve túnica, chora enquanto se sabe arrastada para o túmulo. Baldung Grien retoma aqui o motivo de A Morte e a Donzela, isto é, o contraste brutal entre o momento de maior florescimento da vida e o aspecto mais repulsivo da morte, representado por um cadáver em avançado estado de putrefação. O fato de, na língua alemã, a morte ser um substantivo masculino – der Tod – sem dúvida contribuiu para a criação dessas obras extraordinárias nas quais o amor, o sexo, o tempo e a morte soam como notas dissonantes, mas complementares, na dramática sinfonia da existência.

A fusão entre o erótico e o necrótico aparece em diversos outros artistas renascentistas, muitas vezes sob a forma da vanitas. Para o historiador de arte Jan Bialostocki, uma das ideias filosóficas mais difundidas universalmente é a de que todos os bens, inclusive (ou sobretudo) a vida, são transitórios. Esta ideia está presente em distintas culturas visuais, e de modo muito forte no Renascimento. Vanitas vanitatum omnia vanitas, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, lê-se no Eclesiastes. A expressão deu origem ao gênero iconográfico vanitas, caracterizado justamente por contrastar a vida e a morte de modo a evidenciar a fragilidade da primeira. Com frequência, a vanitas é uma natureza-morta que reúne, por exemplo, frutas, livros ou objetos científicos e símbolos da transitoriedade da vida, como a vela, a bolha de sabão ou a própria caveira. Em outros casos representa-se uma jovem segurando um espelho, ou então uma pessoa jovem, um velho e uma criança – aludindo às três idades do ser humano, como fizeram, além de Baldung Grien, Ticiano e Giorgione.

O Renascimento, portanto, está longe de ter sido um período de explosivo otimismo, como muitas vezes somos levados a crer por uma construção histórica enraizada no século XIX. Ele não foi uma “nova era” totalmente desvinculada do passado medieval. Nenhum momento histórico está perdido no tempo e no espaço, mas se relaciona de modo orgânico com aquele que o precede. A passagem do tempo, a fragilidade da vida, a inexorabilidade da morte, o fim de todas as coisas e o temor do que nos aguarda quando toda a matéria se tiver convertido ao pó geraram sentimentos que em poucos momentos históricos estiveram mais presentes do que durante o que se convencionou chamar de Renascimento.

Maria Berbara é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e organizadora de Renascimento italiano, ensaios e traduções (Nau Editora, 2010).
Revista de História da Biblioteca Nacional

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