No Império, a pena capital atingiu majoritariamente negros, pobres, descendentes de escravos e mestiços
João Luiz Ribeiro
Fora as penas de açoites, reservadas aos cativos (aqui no traço da Revista Illustrada), até 1835 o código criminal brasileiro não distinguia homens livres de escravos. (Fundação Biblioteca Nacional)
Compareceu ao tribunal do júri da corte imperial do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1851, o escravo José, crioulo (nascido no Brasil), cozinheiro de profissão. Era acusado do homicídio de seu senhor, o armador e capitão do mar José Augusto Cisneiros, em novembro do mesmo ano. Desconsolado, porque o juiz de direito não lhe permitia contar sua versão dos fatos, suspirou: “no meio das galinhas as baratas não têm razão”. Condenado à morte, José foi enforcado em 13 de janeiro de 1852, segundo o modo habitual de execução, conforme descrito pelo missionário Daniel Kidder (1815-1891): “No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma escada e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte, se pendura nos ombros da vítima”.
A fala de José resume o que é ser escravo diante de homens livres encarregados de julgá-los segundo os termos de uma lei feita com a finalidade de regular a imposição da pena de morte a eles. Uma lei, de 10 de junho de 1835, relacionada à Revolta de Carrancas, em Minas, dois anos antes, que tirava do escravo qualquer chance de ter razão.
Com exceção da pena de açoites, reservada aos cativos, nos pontos essenciais, as normas estabelecidas pelo Código Criminal de 1830 e pelo Código do Processo Criminal de 1832 não distinguiam os homens livres dos escravos. Eram todos julgados da mesma maneira: para a sentença de pena última era preciso a unanimidade dos votos; os réus podiam protestar por um segundo julgamento, podiam apelar para os tribunais superiores e impetrar revista no Supremo Tribunal de Justiça. Com a lei de 10 de junho de 1835, tudo mudou. Homens livres e escravos, até então desiguais em vida, tornaram-se desiguais para a morte.
No Brasil imperial, a pena de morte estava intimamente relacionada à escravidão. Pelo código criminal, três eram os crimes capitais: a insurreição de escravos, o homicídio qualificado e o homicídio com roubo. O artigo 1º da lei incluiu novos crimes que deveriam ser punidos com a morte: “matar por qualquer maneira que seja, propinar veneno, ferir gravemente, ou fazer qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, ao administrador, feitor e às mulheres que com eles viverem”. O artigo 2º enquadrava na nova lei o crime de insurreição e quaisquer outros que merecessem a pena de morte. Para se condenar à morte, bastariam dois terços dos votos dos jurados e a sentença seria executada sem recurso.
Para que a lei de 10 de junho fosse aplicada, era preciso que o réu fosse escravo; não o sendo, aplicava-se o código criminal. Embora deixasse de compartilhar com os homens livres inúmeros direitos, o escravo continuou a apresentar-se diante de um tribunal de “iguais”. De qualquer modo, tornou-se muito mais fácil condenar um escravo à morte, e muito mais rápido executá-lo.
Além dos escravos, argumentaram os partidários da pena capital, existia no Brasil uma casta de homens em tudo semelhante a eles, e que só poderia ser contida pelo terror salutar da pena última. Referiam-se aos homens livres pobres: descendentes de escravos, mestiços, imigrantes, enfim, à maioria da população brasileira. Além da apelação da parte, criou-se uma apelação ex-officio, feita pelojuiz de direito, também em caso de sentença capital ou de galés perpétuas.
Entre as pessoas livres condenadas à morte no Império, encontramos ladrões assassinos, jagunços mandatários de morte encomendada, maridos ciumentos e esposas adúlteras. Mas, ao contrário do que sucedia com os escravos, entre o tribunal e a forca ainda haveria um longo caminho a percorrer. A maioria dos homens livres condenados à morte no Brasil imperial conseguiu, em novos julgamentos, a redução da sentença, geralmente para a de galés perpétuas.
Condenar à morte é uma coisa, executar a sentença, outra muito diferente. A Constituição de 1824 concedera ao imperador o direito de graça – perdoar ou comutar as sentenças criminais. Em 1829 esse direito foi limitado, dele excluindo os escravos que matassem os senhores A circular reservada de 29 de dezembro de 1853, do poder moderador, acabou com a limitação. O direito de graça dera ao imperador a chave para controlar a política da pena de morte, ou mesmo a política criminal do Estado brasileiro. D. Pedro II, a partir de 1854, comutaria cada vez mais as sentenças de morte, paulatinamente abolindo de fato, embora não de direito, a pena de morte no Brasil.
No período regencial (1831-1840), entre a abdicação de D. Pedro I e a subida ao trono do seu filho, D. Pedro II, foram pouquíssimas as comutações. Durante a regência tivemos o grande tempo das execuções capitais no Brasil, quando ficou mais fácil condenar à morte, e mais rápido executar a sentença. O regente usava o direito de graça com parcimônia para não desagradar as elites que, em última instância, o elegiam. Na província do Rio de Janeiro, por exemplo, carrascos transitavam de uma vila à outra, com a ordem de “execute-se” alcançando-os no caminho de volta à corte. Dois carrascos não foram suficientes. Entre 1833 e junho de 1841, puderam ser constatadas 90 execuções de escravos e 78 ordens de execução, cujo cumprimento ainda não pôde ser comprovado pela pesquisa. Quanto aos homens livres, tivemos, no mesmo período, 14 execuções e 13 ordens de execução a serem comprovadas. Apenas 16 escravos tiveram suas sentenças comutadas.
De 1841 a 1853, o panorama mudou. Os casos menos problemáticos continuaram a ser examinados pelo procurador da coroa, antes de seguirem, por intermédio do ministro da Justiça, para exame do jovem imperador. Os processos que suscitavam controvérsias jurídicas passaram a ser também examinados pela seção de Justiça do Conselho de Estado. Encontramos a execução de 82 escravos e outras 48 ordens de execução. São conhecidas 13 execuções de homens livres e três ordens de execução. De 1842 a fevereiro de 1854, tivemos a comutação das sentenças de morte de 58 escravos e de 27 homens livres.
Foi a partir de meados dos anos 1850 que Pedro II começou a praticar sua política de abolição gradual da pena de morte, em consonância com a política de abolição gradual da escravidão. Primeiramente, em parceria com o ministro da Justiça Eusébio de Queirós, à frente da pasta entre 1848 e 1852, depois, com Nabuco de Araújo, que ocupou o cargo entre 1853 e 1857. Política cautelosa. Ao mesmo tempo em que se tomavam medidas em prol dos escravos condenados à morte, havia um endurecimento em relação aos homens livres, com vistas a combater a impunidade. É na década de 1850 que encontramos o maior número de execuções de homens livres: 23, e mais oito ordens de execução. Quanto aos escravos, 45 foram enforcados e ordenadas outras 12 execuções. Cinquenta e oito cativos e 27 homens livres tiveram a pena de morte comutada em galés perpétuas.
A partir do início dos anos 1860 a pena de morte fica reservada aos escravos. A última execução de um homem livre condenado à morte pela Justiça civil foi a de José Pereira de Souza, no termo de Santa Luzia, no atual estado de Goiás, em 30 de outubro de 1861. Embora nos anos 60 e 70 se continuasse excepcionalmente a mandar enforcar escravos, a orientação de Pedro II era para que os conselheiros de Estado da seção de Justiça buscassem a todo custo argumentos que justificassem a comutação da sentença. Quando não encontrava motivos para comutar, o imperador engavetava o processo por anos a fio. O último enforcamento no Brasil foi o do escravo Francisco, em Pilar das Alagoas, em 28 de abril de 1876. É importante mencionar que Francisco não matara o próprio senhor, mas fora cúmplice de dois outros escravos no homicídio do senhor destes. O número de comutações supera de longe o de execuções: 150 na década de 1860 (131 escravos e 19 homens livres); 183 na década de 1870 (158 escravos e 25 homens livres) e 108 na última década do império (82 escravos e 26 homens livres).
Naquele ano de 1876, Pedro II partiu para a Europa, e lá se encontrou com o escritor francês Victor Hugo (1802-1885), incansável defensor da abolição da escravatura e da pena de morte. Depois que voltou ao Brasil, o imperador passou a comutar todas as sentenças de morte, de homens livres e de escravos.
Pedro II, apesar dos protestos dos escravocratas, não voltou atrás. Nunca mais mandou executar uma sentença de morte, abolindo de fato a pena capital, embora tivéssemos que esperar a República para que de direito ela fosse abolida para crimes civis.
João Luiz Ribeiro
Fora as penas de açoites, reservadas aos cativos (aqui no traço da Revista Illustrada), até 1835 o código criminal brasileiro não distinguia homens livres de escravos. (Fundação Biblioteca Nacional)
Compareceu ao tribunal do júri da corte imperial do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1851, o escravo José, crioulo (nascido no Brasil), cozinheiro de profissão. Era acusado do homicídio de seu senhor, o armador e capitão do mar José Augusto Cisneiros, em novembro do mesmo ano. Desconsolado, porque o juiz de direito não lhe permitia contar sua versão dos fatos, suspirou: “no meio das galinhas as baratas não têm razão”. Condenado à morte, José foi enforcado em 13 de janeiro de 1852, segundo o modo habitual de execução, conforme descrito pelo missionário Daniel Kidder (1815-1891): “No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma escada e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte, se pendura nos ombros da vítima”.
A fala de José resume o que é ser escravo diante de homens livres encarregados de julgá-los segundo os termos de uma lei feita com a finalidade de regular a imposição da pena de morte a eles. Uma lei, de 10 de junho de 1835, relacionada à Revolta de Carrancas, em Minas, dois anos antes, que tirava do escravo qualquer chance de ter razão.
Com exceção da pena de açoites, reservada aos cativos, nos pontos essenciais, as normas estabelecidas pelo Código Criminal de 1830 e pelo Código do Processo Criminal de 1832 não distinguiam os homens livres dos escravos. Eram todos julgados da mesma maneira: para a sentença de pena última era preciso a unanimidade dos votos; os réus podiam protestar por um segundo julgamento, podiam apelar para os tribunais superiores e impetrar revista no Supremo Tribunal de Justiça. Com a lei de 10 de junho de 1835, tudo mudou. Homens livres e escravos, até então desiguais em vida, tornaram-se desiguais para a morte.
No Brasil imperial, a pena de morte estava intimamente relacionada à escravidão. Pelo código criminal, três eram os crimes capitais: a insurreição de escravos, o homicídio qualificado e o homicídio com roubo. O artigo 1º da lei incluiu novos crimes que deveriam ser punidos com a morte: “matar por qualquer maneira que seja, propinar veneno, ferir gravemente, ou fazer qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, ao administrador, feitor e às mulheres que com eles viverem”. O artigo 2º enquadrava na nova lei o crime de insurreição e quaisquer outros que merecessem a pena de morte. Para se condenar à morte, bastariam dois terços dos votos dos jurados e a sentença seria executada sem recurso.
Para que a lei de 10 de junho fosse aplicada, era preciso que o réu fosse escravo; não o sendo, aplicava-se o código criminal. Embora deixasse de compartilhar com os homens livres inúmeros direitos, o escravo continuou a apresentar-se diante de um tribunal de “iguais”. De qualquer modo, tornou-se muito mais fácil condenar um escravo à morte, e muito mais rápido executá-lo.
Além dos escravos, argumentaram os partidários da pena capital, existia no Brasil uma casta de homens em tudo semelhante a eles, e que só poderia ser contida pelo terror salutar da pena última. Referiam-se aos homens livres pobres: descendentes de escravos, mestiços, imigrantes, enfim, à maioria da população brasileira. Além da apelação da parte, criou-se uma apelação ex-officio, feita pelojuiz de direito, também em caso de sentença capital ou de galés perpétuas.
Entre as pessoas livres condenadas à morte no Império, encontramos ladrões assassinos, jagunços mandatários de morte encomendada, maridos ciumentos e esposas adúlteras. Mas, ao contrário do que sucedia com os escravos, entre o tribunal e a forca ainda haveria um longo caminho a percorrer. A maioria dos homens livres condenados à morte no Brasil imperial conseguiu, em novos julgamentos, a redução da sentença, geralmente para a de galés perpétuas.
Condenar à morte é uma coisa, executar a sentença, outra muito diferente. A Constituição de 1824 concedera ao imperador o direito de graça – perdoar ou comutar as sentenças criminais. Em 1829 esse direito foi limitado, dele excluindo os escravos que matassem os senhores A circular reservada de 29 de dezembro de 1853, do poder moderador, acabou com a limitação. O direito de graça dera ao imperador a chave para controlar a política da pena de morte, ou mesmo a política criminal do Estado brasileiro. D. Pedro II, a partir de 1854, comutaria cada vez mais as sentenças de morte, paulatinamente abolindo de fato, embora não de direito, a pena de morte no Brasil.
No período regencial (1831-1840), entre a abdicação de D. Pedro I e a subida ao trono do seu filho, D. Pedro II, foram pouquíssimas as comutações. Durante a regência tivemos o grande tempo das execuções capitais no Brasil, quando ficou mais fácil condenar à morte, e mais rápido executar a sentença. O regente usava o direito de graça com parcimônia para não desagradar as elites que, em última instância, o elegiam. Na província do Rio de Janeiro, por exemplo, carrascos transitavam de uma vila à outra, com a ordem de “execute-se” alcançando-os no caminho de volta à corte. Dois carrascos não foram suficientes. Entre 1833 e junho de 1841, puderam ser constatadas 90 execuções de escravos e 78 ordens de execução, cujo cumprimento ainda não pôde ser comprovado pela pesquisa. Quanto aos homens livres, tivemos, no mesmo período, 14 execuções e 13 ordens de execução a serem comprovadas. Apenas 16 escravos tiveram suas sentenças comutadas.
De 1841 a 1853, o panorama mudou. Os casos menos problemáticos continuaram a ser examinados pelo procurador da coroa, antes de seguirem, por intermédio do ministro da Justiça, para exame do jovem imperador. Os processos que suscitavam controvérsias jurídicas passaram a ser também examinados pela seção de Justiça do Conselho de Estado. Encontramos a execução de 82 escravos e outras 48 ordens de execução. São conhecidas 13 execuções de homens livres e três ordens de execução. De 1842 a fevereiro de 1854, tivemos a comutação das sentenças de morte de 58 escravos e de 27 homens livres.
Foi a partir de meados dos anos 1850 que Pedro II começou a praticar sua política de abolição gradual da pena de morte, em consonância com a política de abolição gradual da escravidão. Primeiramente, em parceria com o ministro da Justiça Eusébio de Queirós, à frente da pasta entre 1848 e 1852, depois, com Nabuco de Araújo, que ocupou o cargo entre 1853 e 1857. Política cautelosa. Ao mesmo tempo em que se tomavam medidas em prol dos escravos condenados à morte, havia um endurecimento em relação aos homens livres, com vistas a combater a impunidade. É na década de 1850 que encontramos o maior número de execuções de homens livres: 23, e mais oito ordens de execução. Quanto aos escravos, 45 foram enforcados e ordenadas outras 12 execuções. Cinquenta e oito cativos e 27 homens livres tiveram a pena de morte comutada em galés perpétuas.
A partir do início dos anos 1860 a pena de morte fica reservada aos escravos. A última execução de um homem livre condenado à morte pela Justiça civil foi a de José Pereira de Souza, no termo de Santa Luzia, no atual estado de Goiás, em 30 de outubro de 1861. Embora nos anos 60 e 70 se continuasse excepcionalmente a mandar enforcar escravos, a orientação de Pedro II era para que os conselheiros de Estado da seção de Justiça buscassem a todo custo argumentos que justificassem a comutação da sentença. Quando não encontrava motivos para comutar, o imperador engavetava o processo por anos a fio. O último enforcamento no Brasil foi o do escravo Francisco, em Pilar das Alagoas, em 28 de abril de 1876. É importante mencionar que Francisco não matara o próprio senhor, mas fora cúmplice de dois outros escravos no homicídio do senhor destes. O número de comutações supera de longe o de execuções: 150 na década de 1860 (131 escravos e 19 homens livres); 183 na década de 1870 (158 escravos e 25 homens livres) e 108 na última década do império (82 escravos e 26 homens livres).
Naquele ano de 1876, Pedro II partiu para a Europa, e lá se encontrou com o escritor francês Victor Hugo (1802-1885), incansável defensor da abolição da escravatura e da pena de morte. Depois que voltou ao Brasil, o imperador passou a comutar todas as sentenças de morte, de homens livres e de escravos.
Pedro II, apesar dos protestos dos escravocratas, não voltou atrás. Nunca mais mandou executar uma sentença de morte, abolindo de fato a pena capital, embora tivéssemos que esperar a República para que de direito ela fosse abolida para crimes civis.
SAIBA MAIS - Bibliografia
ANDRADE, Marcos Ferreira. O outro 13 de maio. Revista de História, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Ano 1, n. 2, agosto de 2005.
CARVALHO FILHO, Luis Francisco. “Impunidade no Brasil – Colônia e Império”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, USP, 2004.
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade em um ambiente rural, 1830-1888. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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