domingo, 4 de novembro de 2012

O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte

Sueli do Rocio de Lara
Mestre em Filosofia pela Universidade Gama Filho

MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 20061.

Escrito entre dezembro de 1851 e março de 1852, publicado originalmente na revista Die Revolution, a obra em questão parte da análise concreta dos acontecimentos revolucionários na França, entre 1848 e 1851, acontecimentos esses que levaram ao golpe de estado em que Napoleão III se nomeou imperador, à semelhança de seu tio Napoleão I. Brumário é a data que corresponde ao calendário estabelecido pela Revolução Francesa e equivale a 9 de novembro do calendário gregoriano; é o mês do calendário republicano francês.

O livro é uma das obras mais importantes do marxismo, no qual se abordam teses fundamentais do materialismo histórico: teoria da luta de classes e a da revolução proletária, a doutrina do Estado e da ditadura do proletariado. É de suma importância a conclusão de Marx sobre a atitude do proletariado em relação ao Estado burguês. Também nesta obra foi desenvolvida a questão do campesinato como aliado da classe operária na revolução iminente. Explica, ainda, o papel dos partidos políticos na vida social e formula uma caracterização profunda da essência do bonapartismo.

Marx demonstra, nesse texto, o enfoque conjuntural acerca do Estado francês, assim como entrevê algumas contribuições desta importante obra para a análise do político. Observa-se que Marx aponta nela uma das características do Estado centralizado moderno: a constituição de um aparelho militar e civil (exército, burocracia). Além disso, discute como a república parlamentar se constitui como um espaço político - uma forma pura de dominação ou forma pela qual a burguesia exercia seu poder sem mediações - do qual a burguesia teve que se desfazer, tendo em vista que se constituía num momento em que as maiorias poderiam usurpar este poder. 

O método adotado por Marx ao se propor entender o Estado francês na época do 18 Brumário de Luís Bonapartese faz a partir da análise histórico-sociológica do momento vivido. Se, por um lado, o Estado pode ser visto enquanto categoria abstrata, ou seja, pela análise de uma ou de algumas determinações do fenômeno, por outro a maior quantidade de determinações se aproxima de uma construção mais concreta do mesmo Estado.

No prefácio da terceira edição, de 1885, Engels afirma:


... a grande lei da marcha da história, lei segundo a qual todas as lutas históricas que se desenvolvem quer no domínio político, religioso, filosófico, quer em outro qualquer campo ideológico são, na realidade, apenas a expressão mais ou menos clara de lutas entre classes sociais, e que a existência e, portanto, também os conflitos entre essas classes são, por sua vez, condicionados pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de produção e de troca, que é determinado pelo precedente (MARX, 2006, p. 13).

Uma análise que coloca no centro da discussão o conflito de classes é operada pelo autor. Há de se observar a descrição de como a burguesia exerce poder sobre o proletariado e o campesinato:


A fração republicano-burguesa, que há muito se considerava a herdeira legítima da Monarquia de Julho, viu assim excedidas suas mais caras esperanças; alcançou o poder, não, porém, como sonhara, sob o governo de Louis Philippe, através de uma revolta liberal da burguesia contra o trono, e sim através de um levante do proletariado contra o capital, levante esse que foi sufocado a tiros de canhão (MARX, 2006).

Podemos dizer que temos dois segmentos dentro de uma mesma sociedade exercendo poder através de relações que servem para sustentar a dominação: o Estado, na figura de Luís Bonaparte, que faz suas artimanhas e, prevalecendo-se do seu parentesco com Napoleão Bonaparte, dá o golpe e conquista o poder sobre o povo, e a burguesia que mantém poder sobre as demais classes.

Enquanto o proletariado de Paris deleitava-se ainda ante a visão das amplas perspectivas que se abriam diante de si e se entregava a discussões sérias sobre os problemas sociais, as velhas forças da sociedade se haviam agrupado, reunido e encontrado o apoio inesperado da massa da nação: os camponeses e a pequena burguesia. As reivindicações do proletariado de Paris são consideradas devaneios utópicos, a que se deve por um paradeiro. A essa declaração da Assembléia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a Insurreição de junho, segundo o autor o acontecimento de maior envergadura na história das guerras civis da Europa. A república burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe média, a pequena burguesia, o exército, o lúmpen proletariado organizado em Guarda Móvel, os intelectuais de prestígio, o clero e a população rural. Do lado do proletariado de Paris não havia senão ele próprio. Mais de três mil insurretos foram massacrados depois da vitória e quinze mil foram deportados sem julgamento. Com essa derrota o proletariado passa para o fundo da cena revolucionária.

A história da Assembléia Nacional Constituinte a partir das jornadas de junho é a história do domínio e da desagregação da fração republicana da burguesia, da fração conhecida pelos nomes de republicanos tricolores, republicanos puros, republicanos políticos, republicanos formalistas etc.

A derrota dos insurretos de junho preparara e aplainara, indubitavelmente, o terreno sobre a qual a república burguesa podia ser fundada e edificada, mas demonstrara, ao mesmo tempo, que na Europa as questões em foco não eram apenas de "república ou monarquia". Revelara que aqui república burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras.

Contra a burguesia coligada fora formada uma coalizão de pequenos burgueses e operários, o chamado partido social democrata. A pequena burguesia percebeu que tinha sido mal recompensada depois da jornada de junho de 1848. A Montanha, posta à margem durante a ditadura dos republicanos burgueses, reconquistara, na segunda metade do período da Assembléia Constituinte, sua popularidade perdida com a luta contra Bonaparte e os ministros monarquistas.

Em meados de outubro de 1849 a Assembléia Nacional reuniu-se uma vez mais. Em primeiro de novembro Bonaparte surpreendeu-a com uma mensagem em que anunciava a demissão do ministério Barrot-Falloux e a formação de um novo ministério. Jamais alguém demitiu lacaios com tanta sem-cerimônia como Bonaparte a seus ministros, afirmou Marx.

A burguesia francesa rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lúmpen proletariado tendo à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. A burguesia conservava a França resfolegando de pavor ante os futuros terrores da anarquia vermelha; Bonaparte descontou para ela esse futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o exército da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse em suas janelas os eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar des Italiens.

Revendo a história, percebe-se que o povo não aceitava a condição de dominado, ele lutou com suas possíveis armas pelos seus direitos de cidadão, no entanto foi vencido pela astúcia de Luís Bonaparte. Por outro lado, o isolamento dos proletários deveu-se às ações de cooptação do campesinato pelos interesses da burguesia. "A dinastia de Bonaparte representa não o camponês revolucionário, mas o conservador" (MARX, 2006, p. 133). A cooptação deu-se não pelos camponeses que queriam consolidar sua propriedade e luta para escapar às condições de sua existência social, a pequena propriedade; ou queriam derrubar a velha ordem de coisas por meio de seus próprios esforços. Antes, foram aqueles que queriam ver a si próprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Império. "Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado" (MARX, 2006, p. 134). Os camponeses mostraram-se presos por uma velha ordem, em um isolamento embrutecedor e, devido a tal, aliaram-se ao discurso de Bonaparte.

Este livro, que completa 133 anos, mostra o esforço teórico dos revolucionários em identificar os interesses de classes em disputa no âmbito político. Tenta compreender disputas entre partidos, tendências, personalidades políticas burguesas e pequeno-burguesas e o proletariado. Disputas que se expressam no jogo das aparências e cumprem o papel de esconder, diluir, os reais interesses de grupos sociais. Esses interesses fazem parte e interferem na conjuntura, no desenvolvimento do poder e se põe a serviço dos objetivos de grupos dominantes.

O fluxo dos acontecimentos teve um grau de determinação importante na tradição, no fato de Louis Bonaparte conseguir apresentar-se aos camponeses envolto no manto do passado, mobilizando sentidos pelos quais "a tradição histórica originou nos camponeses a crença no milagre de que um homem chamado Napoleão restituiria a eles toda a glória passada" (MARX, 2006, p. 133).

Um interesse específico que apontamos na obra é sobre a importância do plano simbólico para o desenrolar de fenômenos sociais e em específico para os processos de dominação. A meta-análise das proposições sobre o conceito de ideologia na obra de Marx e em específico nesse texto, realizada por Thompson (2002), aponta como no livro observa-se uma "concepção latente de ideologia" (2002, p. 58) que se refere a um conjunto de fenômenos apresentados não como meros epifenômenos das condições econômicas e das relações de classe, mas como "construções simbólicas que têm certo grau de autonomia e eficácia. Eles se constituem em símbolos e 'slogans', costumes e tradições que mobilizam as pessoas" (THOMPSON, 2002, p. 58) ou as prendem, empurrando-as "para frente ou constrangem-nas, de tal modo que não podemos pensar estas construções simbólicas unicamente como determinadas, ou totalmente explicadas, em termos de condições econômicas de produção". Tais fenômenos como "concepção latente de ideologia demonstram a persistência de símbolos e valores tradicionais, deste séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo". Na concepção latente, Ideologia é um sistema de representações que serve para sustentar relações existentes de dominação de classes através da orientação das pessoas para o passado ao invés de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem as relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social (THOMPSON, 2002, p. 58). Tal definição traz que as relações sociais podem ser sustentadas e, assim, impedir as mudanças sociais pela difusão de construções simbólicas. Thompson chama a atenção para o que poderia ser descrito como um "processo de conservação social" dentro da sociedade de O Dezoito Brumário que pode também ser transferido para outras épocas e outras sociedades, sendo suficiente ler nas entrelinhas para entender que o discurso não é só reprodutor de desigualdades sociais, mas também produtor das mesmas.

O golpe de estado de Luís Bonaparte em dezembro de 1851 é descrito por Marx como condicionado pelo desenvolvimento das forças e relações de produção durante a monarquia burguesa. Marx não só retrata os acontecimentos como resultado de processos derivados da economia, mas também como acontecimentos ligados a imagens do passado, presos a tradições que persistem apesar da transformação contínua das condições materiais de vida. A análise de Marx, do evento de 1848 a 51, mostra o papel central das formas simbólicas que incluem a tradição, o que levou o povo de volta ao passado e impediu que eles agissem para transformar a ordem que os oprimia.

Uma tradição pode aparecer e aprisionar um povo, pode levá-lo a acreditar que o passado é seu futuro, e que o senhor é seu servo, e pode, por isso, manter uma ordem social em que a vasta maioria da população estaria sujeita às condições de exploração e dominação (THOMPSON, 2002, p. 61).

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis - Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
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