sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Uma pequena história do comércio planetário

Há mais de cinco séculos, o mundo tenta abolir restrições ao livre trânsito de mercadorias. Foram vários os momentos de liberalização, mas também muitos os de retrocesso, com potências elaborando discursos e promovendo ideologias ao sabor de suas necessidades de momentopor Christophe Courau


Biblioteca Nacional da França, Paris / (C) Visioars / AKG Images / Latinstock


Aquarela do século XVIII mostra chineses vendendo chá a comerciante europeu


Foi preciso chegar ao século XXI, mais especificamente ao ano de 2001, para que os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) aprovassem a entrada da China, com seu 1,3 bilhão de potenciais consumidores, na instituição que rege as trocas comerciais do planeta.

A OMC não é bem-vista por todos. Alguns movimentos, hoje, atribuem à maior comunidade reguladora mundial de trocas de produtos o nefasto papel de promotora do livre comércio como norma superior àquelas que regem a proteção e a independência cultural, ambiental, científica e política dos países.

De outro lado estão os que acreditam no poder da organização de permitir uma concorrência saudável e a neutralidade das negociações, assim como a elevação do nível de vida dos consumidores graças à queda dos preços de todos os bens de consumo.

Essa peleja não tem, contudo, a atualidade que aparenta. Muito antes de a globalização se tornar assunto, as nações se envolviam em disputas sobre temas comerciais, oscilando entre o liberalismo e o protecionismo, a depender do interesse de momento.

Na Idade Média, o comércio terrestre era difícil, com péssimas estradas, ameaça de roubos e pilhagens e crescente número de pedágios típicos do sistema feudal – por exemplo, chegaram a 70 entre Roanne e Nantes, cidades francesas que distam cerca de 500 km.

Assim, o primeiro grande desenvolvimento do comércio mundial se deu por mar, graças às viagens marítimas dos séculos XV e XVI e à formação dos impérios coloniais, como Espanha e Portugal.
Nessa dinâmica mundial, o mar Mediterrâneo perdeu o protagonismo nas trocas mercantis, enquanto a Inglaterra e os Países Baixos criaram poderosas estruturas comerciais. Os holandeses desenvolveram esse sistema à perfeição com a Companhia das Índias Orientais e a das Índias Ocidentais.

Essa primeira fase é definida como mercantilismo, uma doutrina de “guerra econômica” que concebia o comércio como a maior acumulação possível de metais preciosos. O Estado deveria esforçar-se para aumentar as exportações e limitar o máximo possível suas importações de bens de consumo.


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Operários em Londres no século XIX: pioneiros da Revolução Industrial, os britânicos defenderam o fim das barreiras alfandegárias

A economia colonial foi reduzida à produção de matérias-primas e ao monopólio do transporte marítimo; os países aceitavam apenas embarcações próprias em seus portos; os bens estrangeiros tinham tarifas aduaneiras exorbitantes ou simplesmente eram proibidos.

Foi dessa forma que a Inglaterra atingiu com força o comércio dos Países Baixos com seu Ato de Navegação de 1651, que proibia quase totalmente a circulação de produtos holandeses na França.
“Apenas a força das armas é capaz de romper as barreiras do protecionismo”, assinala o historiador francês Michel Mourre (1928-1977) em seu Dicionário da história. “Como as colônias eram fechadas para outros países, a única solução para ampliar o comércio de um país era conquistar as colônias dos adversários: o primeiro império colonial francês passou às mãos da Inglaterra em 1763, da mesma forma que o Império Português na Indonésia foi anexado pelos holandeses no início do século XVII, e que os britânicos e americanos favoreceram a independência das antigas colônias espanholas na América no início do século XIX”.

A partir de 1750, houve uma reação intelectual contra o mercantilismo. Os fisiocratas, que defendiam a ordem da natureza na filosofia e o livre comércio no plano econômico, lançaram a fórmula “laissez faire, laissez passer”, símbolo do liberalismo: “deixe fazer, deixe passar”. 
Justamente nessa nova etapa da história, a Inglaterra entrava na Revolução Industrial e via o mundo abrir-se para suas manufaturas. Em 1786, foi dado um primeiro passo em direção à livre troca com o tratado de comércio franco-inglês. O acordo igualava as tarifas do vinho francês importado pela Inglaterra às do vinho português.

As taxas sobre os tecidos de algodão e lã inglesa não ultrapassavam os 12% na França, enquanto as de alguns bens de consumo não chegavam a 10%. O comércio entre França e Inglaterra triplicou em três anos, embora milhares de franceses vissem as medidas como a ruína da indústria nacional.

O período de prosperidade comercial não durou muito. Com o Bloqueio Continental, Napoleão Bonaparte retomou as políticas protecionistas. Exigiu o fechamento de todos os portos ao comércio inglês. Depois de 1815, os grandes proprietários de terra e indústrias impuseram uma tarifa alfandegária proibitiva à importação de fibras e tecidos de algodão e uma taxa de 50% sobre o ferro.
A Inglaterra, ainda sim, seguiu no caminho da liberalização do comércio. Sob pressão de militantes agrupados em campanhas de barateamento de alimentos, os britânicos aboliram as taxas de importação sobre o trigo. É verdade que em 1850 o Reino Unido respondia por 18% das trocas comerciais do mundo, como observa o estudioso da história econômica Michel Rainelli, em seu livro A organização mundial do comércio: “O país dominante tem todo o interesse no livre comércio com a finalidade de importar produtos por preços baixos e assegurar a exportação de seus produtos à maior fatia do mercado possível”.

Esse contexto perdurou até que, contra os industriais franceses, Napoleão III assinou o acordo de livre comércio com a Inglaterra, em 1860 – o primeiro na história a conter a seguinte cláusula: quando um país faz um novo acordo comercial, este beneficia também as nações que possuíam tratados com esse país. Essa disposição tornou-se uma tendência em poucos anos e regulou acordos entre outros países europeus no século XIX.


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Wall Street, 1929: a quebra da bolsa americana levou a uma retomada do velho protecionismo alfandegário lidderada pelos EUA

Novamente, o livre comércio teve vida curta. Entre 1880 e 1913, houve um retorno geral ao protecionismo, à exceção da Grã-Bretanha, Holanda e Dinamarca. Os Estados Unidos quiseram incentivar o crescimento de suas próprias indústrias, ideia clamada de forma profética pelo presidente americano Ulysses Grant e citada no primeiro volume de A mundialização da economia, de Jacques Adda: “Durante séculos, a Inglaterra pôde beneficiar-se de um regime de proteção. Esse país reconsiderou seu sistema e adotou o livre comércio, pois o protecionismo não lhe servia mais. Então, o que sei sobre meu país me faz deduzir que daqui a dois séculos, quando os Estados Unidos terão aproveitado tudo o que puderem de um sistema de proteção, adotarão o livre comércio”.

As tarifas aduaneiras, semelhantes às que hoje conhecemos, foram instauradas em 1890. Na França, a pressão veio dos agricultores, ameaçados pelas importações provenientes dos Estados Unidos, Canadá e Rússia. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra, 12º parceiro da Alemanha em importações e exportações, permanecia como a maior potência comercial do mundo, mas nos primeiros anos do século XX a Alemanha quase a alcançou nas exportações de produtos manufaturados.

De 1880 a 1913, o comércio britânico aumentou em cerca de 100%, o americano, 189%, e o alemão, 266%, como observa o historiador Michel Mourre. No fim da guerra, não houve armistício aduaneiro. Apesar do terceiro dos 14 pontos do presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, que previa “a suspensão mais completa possível das barreiras econômicas e o estabelecimento de condições de igualdade comercial entre todas as nações”, os países nascidos do desmantelamento dos antigos impérios da Europa central pelo Tratado de Versalhes, como Iugoslávia e Polônia, se protegeram atrás de barreiras aduaneiras.

Uma conferência da Sociedade de Nações de 1927 recomendava a diminuição das tarifas alfandegárias e a abolição de cotas restritivas, mas tudo isso foi abalado pela crise de 1929, quando os americanos, seguidos dos franceses e ingleses, aumentaram os impostos aduaneiros, enquanto o sistema monetário global vinha abaixo.

“Foi preciso esperar o fim da Segunda Guerra Mundial – quando os Estados Unidos se tornaram hegemônicos – para que as nações se preocupassem com o restabelecimento do sistema econômico mundial e a ideia de cooperação internacional ganhasse espaço”, explica Rainelli.



(C) Andy Clarck / Reuters / Latinstock
Protestos em Seatlle contra a reunião da OMC em 1999: instituições hoje criticadas já foram consideradas a salvação para crises do passado

As grandes instituições, hoje criticadas, nasceram naquele momento. Em julho de 1944, em Bretton Woods, um centro de convenções de New Hampshire a alguns quilômetros da fronteira canadense, 44 nações criaram o Fundo Monetário Internacional (FMI), encarregado de zelar pelas moedas. O Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird, atual Banco Mundial) tinha como incumbência financiar as economias devastadas pela guerra.

Então, começou-se a projetar o que seria a Organização Internacional do Comércio, integrada às Nações Unidas: 23 países se reuniram em Genebra em outubro de 1947 e estabeleceram um acordo geral sobre as tarifas aduaneiras e o comércio mundial (o Gatt, na sigla em inglês). Em 38 artigos, o documento reduziu os obstáculos às trocas internacionais.

Regras de “boa conduta” foram então decretadas. O dumping e as cotas de exportação foram condenados. As subvenções, regulamentadas. Os serviços e os produtos agrícolas e têxteis, entre outros, ganharam regimes especiais. Em casos de desacordo, especialistas passaram a propor arbitragens, em geral acatadas.

O Gatt organizou ciclos de negociações. O primeiro round, em Genebra, em 1947, resultou em 45 mil reduções tarifárias. Em Annecy, entre abril e agosto de 1949, 13 países chegaram a um novo acordo com outras 5 mil reduções. Em Torquay, Inglaterra, de setembro de 1950 a abril de 1951, 38 nações reduziram os impostos alfandegários em 25% se comparados aos de 1948.

E assim se seguiram novas liberações, com um número cada vez maior de países. Até que no dia 1o de janeiro de 1995, o Gatt foi substituído pela OMC.

Bretton Woods e a engenharia da crise

Fundo Monetário Internacional, Washington
O encontro: as potências ocidentais lançaram as bases de órgãos como o FMI e o Banco Mundial

Um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial, em julho de 1944, a aliança de países em guerra contra Alemanha, Itália e Japão se reuniu na pequena cidade de Bretton Woods, nos Estados Unidos, para tentar dar novo rumo às suas economias, desorganizadas pela sucessão de conflitos e crises da primeira metade do século XX.

Até então, os países trabalhavam com o padrão-ouro, já mitigado desde a Primeira Guerra, mas ainda válido para as instituições financeiras, em associação com políticas cambiais. Em Bretton Woods, o desafio era criar instituições internacionais que regulassem esses sistemas, com regras comuns aos 44 países participantes do encontro, todas negociadas.

Um dos muitos aspectos diferenciados dos acordos firmados foi justamente restringir, na prática, a soberania das nações envolvidas – nunca antes tantas diferentes nacionalidades haviam se mostrado dispostas a sofrer, voluntariamente, alguma forma de controle.

Sob a inspiração das ideias do economista John Maynard Keynes, a conferência teve uma segunda marca: a liderança dos Estados Unidos, já muito clara em todo o mundo, como resultado dos negócios gerados pela guerra e do senso de oportunidade dos americanos, enquanto a Europa era destroçada nos confrontos com o nazismo.

Bretton Woods não teve resultados práticos tão ambiciosos quanto as ideias lá apresentadas, que influenciariam toda a economia do século XX e uma parte do século XXI – a busca de pleno emprego, de crescimento contínuo, de reconstrução e de relações internacionais orquestradas por órgãos multilaterais, visando objetivos comuns. Tudo por medo da repetição do quadro de depressão pós-crise de 1929.

Mas desse colóquio resultaram organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) e um esboço da futura Organização Mundial do Comércio (OMC), depois de apenas três semanas de debates – embora muitas negociações tenham se travado nos meses anteriores, preparatórios da conferência.

A genialidade de Keynes se deve, entre muitas outras coisas, a seu senso de oportunidade. Ele se dedicou a formular um conjunto de medidas de reconstrução no pós-guerra ainda durante o conflito, vinculando políticas e reformas institucionais internas dos países que lutavam contra o eixo nazifascista a organismos reguladores globais, capazes de direcionar o desenvolvimento a um conjunto de objetivos ao qual nação alguma do bloco capitalista poderia se opor, sob risco de perder oportunidades de negócios e cair no isolamento em termos de comércio e transações financeiras – ou ficar sem apoio e ajuda em caso de crises de liquidez e outras relacionadas ao delicado momento vivido pelo mundo na década de 1940.

Seu plano original sofreu transformações e reduções, como fruto da delicada negociação. E o cenário político de desigualdade de força dos países envolvidos – os Estados Unidos foram líderes absolutos nesse processo – deixou cicatrizes e desigualdades. De tempos em tempos, como nos atuais, o mundo questiona estatutos, prescrições, dinâmicas, legitimidade, representatividade e interesses das instituições mundiais, que carecem de independência, políticas claras e capacidade de formulação para além dos receituários do século XX, em geral contracionistas.

Christophe Courau é historiador e jornalista.

Revista História Viva

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