A HISTÓRIA POLÍTICA DA TRANSIÇÃO BRASILEIRA
Adriano Nervo Codato
O golpe de 1964 assinalou uma modificação decisiva na função política dos militares no Brasil. A ação final contra a "democracia populista" (1946-1964) ou, como preferem os conservadores, a "Revolução", trouxe duas novidades. Não se tratava mais de uma operação intermitente das Forças Armadas com um objetivo preciso, quase sempre o de combater a "desordem" (a política de massas) ou o "comunismo" (a política social) ou a "corrupção" (i. e., a política propriamente dita), mas de uma intervenção permanente. A garantia política que as Forças Armadas emprestaram aos governos civis, notadamente no pós-1930, convertia-se agora num governo militar. Há, de fato, uma mudança de regime político. Da mesma forma, não mais se tratava de um pronunciamiento, em que um chefe militar de prestígio ou um grupo de oficiais se recusava a obedecer ao governo, mas de um movimento institucional das Forças Armadas (O'DONNELL, 1975; CARDOSO 1982). Foi o aparelho militar, e não um líder político militar, que passou a controlar primeiramente o governo (i. e., o Executivo), depois o Estado (e seus vários aparelhos) e, em seguida, a cena política (i. e., as instituições representativas)7.
Se essa ação está na origem da autonomia do aparelho militar sobre o "mundo civil" depois de 1964, recorde-se que a presença dos oficiais na cena política nacional nunca foi novidade, principalmente depois da Revolução de 1930.
Contudo, as intervenções militares de 1937 (o golpe do Estado Novo) ou de 1945 (o golpe que põe fim ao Estado Novo) nada têm a ver com um suposto "padrão moderador" que as Forças Armadas desempenhariam em todas as crises políticas nacionais, mediando conflitos entre políticos civis desde a República (STEPAN, 1971). Esse hipotético "padrão" corresponde, na verdade, a uma série específica de determinações históricas, que são a fonte da autonomia política e da singularidade ideológica exibidas pelo estabelecimento militar. Elas se devem basicamente: (i) à centralização do poder militar (em dois sentidos: da base para o topo do aparelho burocrático; da periferia para o centro do sistema político); (ii) à oscilação ideológica das cúpulas das Forças Armadas, entre o getulismo em 1937 (i. e., o autoritarismo) e o antigetulismo em 1945 e 1964 (i. e., o anti-populismo); (iii) à aversão dos oficiais à política de massas, representada, no caso, pelo incentivo à mobilização sindical e à exaltação nacionalista (o que explicaria a oscilação anterior); e (iv) à atitude dos militares em relação à democracia ou, mais exatamente, sua recusa não do princípio do sufrágio universal, mas de suas conseqüências práticas: os resultados eleitorais "errados" do período 1945-1964 (QUARTIM DE MORAES, 1985).
São precisamente essas determinações históricas, esse elitismo em sentido amplo, que estão na base da intervenção das cúpulas das Forças Armadas no processo político em 1964. Cúpulas que legitimam, ou melhor, justificam seu papel dirigente em função da crise política na década de 1960, informam a estratégia de modificação do regime ditatorial nos anos 1970, modelam a forma de governo desejada ao final dessa modificação na década de 1980 e preservam sua autonomia política e institucional nos anos 1990.
Do ponto de vista cronológico, a história política do regime ditatorial e da transição brasileira da ditadura militar para a democracia liberal pode ser assim descrita:
- Fase 1: constituição do regime político ditatorial-militar (governos Castello Branco e Costa e Silva)
– etapa 1: março de 1964 (golpe de Estado) – outubro de 1965 (extinção dos partidos políticos)8
– etapa 2: outubro de 1965 (tornada indireta a eleição de Presidente da República) – janeiro de 1967 (nova Constituição)
– etapa 3: março de 1967 (posse de Costa e Silva) – novembro de 1967 (início da luta armada9)
– etapa 4: março de 1968 (início dos protestos estudantis) – dezembro de 1968 (aumento da repressão política10)
- Fase 2: consolidação do regime ditatorial-militar (governos Costa e Silva e Médici)
– etapa 5: agosto de 1969 (Costa e Silva adoece; Junta Militar assume o governo) – setembro de 1969 (Médici é escolhido Presidente da República11)
– etapa 6: outubro de 1969 (nova Constituição) – janeiro de 1973 (refluxo da luta armada)
– etapa 7: junho de 1973 (Médici anuncia seu sucessor) – janeiro de 1974 (eleição congressual (indireta) de Geisel)
- Fase 3: transformação do regime ditatorial-militar (governo Geisel)
– etapa 8: março de 1974 (posse de Geisel) – agosto de 1974 (anunciada a política de modificação do regime)
– etapa 9: novembro de 1974 (vitória do MDB nas eleições senatoriais) – abril de 1977 (Geisel fecha o Congresso Nacional)
– etapa 10: outubro de 1977 (demissão do Ministro do Exército) – janeiro de 1979 (revogação do Ato Institucional n. 5)
- Fase 4: desagregação do regime ditatorial-militar (governo Figueiredo)
– etapa 11: março de 1979 (posse de Figueiredo) – novembro de 1979 (extinção dos partidos políticos Arena e MDB)
– etapa 12: abril de 1980 (greves operárias em São Paulo) – agosto de 1981 (Golbery pede demissão do governo)
– etapa 13: novembro de 1982 (eleições diretas para governadores dos estados; maioria oposicionista na Câmara dos Deputados) – abril de 1984 (derrotada a emenda das eleições diretas12)
– etapa 14: janeiro de 1985 (vitória da oposição na eleição para Presidente da República) – março de 1985 (posse de José Sarney)13
- Fase 5: transição, sob tutela militar, para o regime liberal-democrático (governo Sarney)
– etapa 15: abril-maio de 1985 (falece Tancredo Neves; emenda constitucional restabelece eleições diretas para Presidente da República) – fevereiro de 1986 (anunciado o Plano Cruzado contra a inflação)
– etapa 16: novembro de 1986 (vitória do PMDB nas eleições gerais) – outubro de 1988 (promulgada nova Constituição)
– etapa 17: março de 1989 (início da campanha para as eleições presidenciais) – dezembro de 1989 (Collor de Mello vence as eleições presidenciais)
- Fase 6: consolidação do regime liberal-democrático (governos Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso)
– etapa 18: março de 1990 (posse do Presidente eleito, Fernando Collor de Mello; anunciado o Plano Collor I) – janeiro de 1991 (anunciado o Plano Collor II)
– etapa 19: dezembro de 1992 (impedimento do Presidente Collor; o vice-Presidente Itamar Franco assume a Presidência da República) – julho de 1994 (lançado o Plano Real)
– etapa 20: janeiro de 1995 (posse do Presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso) – junho de 1997 (aprovada a emenda que permite a reeleição do Presidente da República e dos titulares dos poderes Executivos municipais e estaduais)
– etapa 21: janeiro de 1999 (posse do Presidente reeleito, Fernando Henrique Cardoso) – outubro-novembro de 2000 (vitória dos partidos de oposição nas eleições municipais)
– etapa 22 : julho de 2002 (início da campanha para as eleições presidenciais) – janeiro de 2003 (posse do Presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva)
Essa periodização simplificada do cenário político assinala os limites temporais do regime ditatorial (1964-1974), do período de transição (1974-1989) e do intervalo da consolidação de um novo regime nacional (1989-2002)14. Ela não indica, contudo, os traços mais significativos da política brasileira contemporânea, nem permite estabelecer inferências causais que expliquem a sucessão de acontecimentos ou a passagem de uma fase a outra. Parece impossível, em todo caso, compreender a transição política e a consolidação democrática independentemente do processo político concreto. Este depende, por sua vez, da trajetória histórica nacional, assim como das condições históricas dadas em função dessa trajetória ou, na falta de um nome melhor, dos "contextos" e da interação entre os "atores": no caso, as Forças Armadas (como agente político), o Estado (como organização institucional) e a sociedade (como o conjunto de agentes sociais).
A interação desses três elementos – Forças Armadas, Estado e sociedade – pode, contudo, tornarse meramente formalista caso não sejam tomados como unidades historicamente determinadas. Já se indicou acima a origem do poder do aparelho militar sobre as demais instituições e sua distância ideológica em relação à democracia "real". Não há espaço aqui para desenvolver os outros tópicos. Sublinhe-se apenas que uma compreensão mais extensa do "Estado" implica tomá-lo como feixe de instituições, organismos, aparelhos e agências burocráticas, cuja configuração não é indiferente, de um lado, à evolução das relações de hierarquia e subordinação entre os diversos centros de decisão e, de outro, às articulações concretas desses aparelhos (e de seus respectivos ocupantes) com as classes e grupos sociais. Da mesma forma, a "sociedade" resulta de um padrão específico de desenvolvimento capitalista ("um modelo de desenvolvimento" a partir de um "modo de produção"), graças à combinação peculiar, no âmbito de uma formação social concreta, entre a estrutura produtiva e a estrutura de classes (ABRANCHES, 1979; MARTINS, 1985).
Matéria completa em
Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia
Revista de Sociologia e Política
Um comentário:
Muito interessante esse post!ótimo blog para pesquisas!
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