quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Descartes: A razão acima de tudo



Descartes: A razão acima de tudo

O filósofo diz: `Penso, logo existo` e lança as bases da grande revolução no conhecimento.
Jaime Klintowitz
O rigoroso inverno de 1619 imobilizou o exército de Maximiliano da Baviera. Um percalço militar irrelevante para o desfecho da Guerra dos Trinta Anos, que ensangüentaria a Europa, mas que teve inesperada e decisiva importância para a Filosofia e a ciência moderna. René Descartes, jovem francês de 23 anos engajado nas tropas bávaras, aproveitou o frio para se isolar em um quarto de estalagem nas cercanias de Ulm, na Alemanha, e - como era de seu gosto - passar dias em febril atividade intelectual. Na madrugada gelada de 11 de novembro, as centelhas de seu cérebro explodiram em sonhos agitados - em um deles, o Espírito da Verdade lhe abria os tesouros da Ciência. Na manhã seguinte, superexcitado, Descartes concluiu estar no limiar de uma “ciência admirável".

"Penso, logo existo", sua máxima mais conhecida e que viria a ser a viga de sustentação do racionalismo moderno começou a nascer naquelas horas. Nas imagens dos sonhos, o jovem pretendeu ver símbolos de iluminação e indicadores da missão a que deveria consagrar sua vida: unificar todos os conhecimentos humanos sobre bases racionais. Foi ali, ao pé de uma estufa a carvão, a espada inútil encostada à parede, que Descartes pela primeira vez teve a idéia de aplicar a álgebra à geometria e a Matemática a todas as coisas. Ele desempenhou com tamanha habilidade a tarefa de dar novos alicerces ao edifício do pensamento que passou à História como o "pai da Filosofia moderna", cuja obra é o ponto de partida obrigatório para se entender as origens do modo de pensar que tornaria possíveis as revoluções científicas dos séculos seguintes.

Mas isso não estava nos cálculos do lar de Descartes, uma próspera família burguesa radicada entre Tours e Poitiers, no coração da França, e tradicionalmente dedicada ao comércio e à Medicina. Graças a uma bem azeitada estratégia matrimonial, no final do século XVI os Descartes tinham-se ligado a famílias ricas e notáveis da província - os Sain e os Brochard -, e estavam em franca ascensão social. Como era de se desejar para um gentil-homem daqueles tempos não de todo esquecidos do passado medieval, o avó Pierre combatera nas guerras religiosas; a mãe, Jeanne, era filha do tenente-general de polícia de Poitiers. E Joachin Descartes, o pai, chegou a conselheiro do rei no Parlamento da Bretanha título com o qual é identificado na ata de batismo de René, nascido em La Haye-Touraine, a 31 de março de 1596, terceiro e último filho do casal.

Jeanne Brochard morreu tuberculosa um ano depois e ninguém dava um vintém pela sobrevivência do filho. Ele herdara da mãe os pulmões fracos e uma tosse crônica que jamais o abandonaria. Mas o menino de aparência delicada tinha a mente ágil, e Joachin viu nele seu sucessor nos negócios e no Parlamento. Decidido a preparar René para um futuro brilhante, enviou-o em 1606 para o colégio jesuíta de La Flèche, às margens do rio Loire. Fundada apenas dois anos antes, graças à generosidade do rei Henrique IV, o fundador da dinastia Bourbon, a dos Luíses, a escola já era considerada uma das melhores da Europa. Em 1610, quando o soberano morreu e seu coração foi transladado para a capela de La Flèche, o menino René Descartes, monarquista convicto como seria por toda a vida, assistiu emocionado às solenidades.

Como sua saúde frágil era notória, Descartes recebeu permissão para ficar na cama quanto quisesse - o privilégio era igualmente um prêmio a seu brilhante desempenho escolar. Adulto, Descartes manteria o hábito de trabalhar no leito e cultivaria a mesma solidão dos tempos do La Flèche, a ponto de ter tomado, ainda jovem, a decisão de não casar. Mas teve lá suas aventuras: em 1635 nasceu Francine, sua filha com Helena, uma criada. Tampouco seria o sucessor do pai, missão assumida pelo filho mais velho, Pierre. Mas a herança paterna permitiu-lhe viver igual a outros gentis-homens de seu tempo: de forma modesta, mas sem trabalhar. Havia outras heranças a considerar, contudo. O século XVI virara de ponta-cabeça a vida do homem ocidental. Navegadores e aventureiros rasgavam mares e continentes, descobrindo terras e povos.

A efervescência cultural da Renascença criara uma vaga que não cessava de afogar as velhas certezas da Filosofia e da ciência baseadas sobretudo nos escritos do grego Aristóteles e na autoridade da Bíblia. O prestígio do Estado e da Igreja estavam igualmente corroídos pela dissidência política e pela Reforma protestante. Um novo mundo nascia. Mesmo em retirada, porém, a velhas instituições permaneciam, no início do século XVII, robustas o suficiente para queimar na fogueira um certo número de pensadores atrevidos.

A Europa sabia então possuir músculos capazes de arrasar e pilhar impérios na América e de saquear as costas africanas e asiáticas. Mas chocava-se com a revelação de que outros povos viviam segundo padrões bem diferentes daqueles que pareciam os únicos legítimos. Natural que os ventos fossem de perturbação e descrença. "Só há opiniões neste mundo incerto", concluía, desanimado, o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), o mais célebre dos céticos.

Quando Descartes vai para a escola, está na ordem do dia a busca de um novo caminho para o conhecimento, uma trilha que escape aos labirintos das discussões estéreis. Em poucas palavras, falta um método para a ciência. Em La Flèche, Descartes ainda não sabe, mas será um dos pensadores responsáveis por uma das duas principais vertentes do pensamento moderno - ao buscar na razão a recuperação da certeza científica, dará origem ao racionalismo; o outro percurso será traçado pelo inglês Francis Bacon (1561-1626), que propõe formular as leis científicas partindo de casos e eventos particulares, raiz do experimentalismo.

La Flèche está, contudo, no contrafluxo da história. A escola, onde o latim é a única língua admitida e Cícero o autor mais lido, é um sólido bastião da herança medieval. Descartes fica profundamente decepcionado com a repetição incessante de antigas verdades, sem lugar para, a dúvida. Está fascinado, porém, com a Matemática e se espanta que, "sendo seus conhecimentos tão firmes e sólidos, nunca tivesse conduzido a algo mais elevado". Em 1614, vai cursar Direito na Universidade de Poitiers, de onde sairá dois anos depois com um diploma de doutor e a mesma opinião sobre a erudição tradicional. Nela, as teses mais contraditórias são "cultivadas pelos melhores espíritos", escreveria mais tarde.

Nos meses seguintes, Descartes vive entre a Bretanha e Paris, onde perambula pelos salões mundanos e começa a ficar, conhecido nos círculos intelectuais. É então que conhece o padre Mersenne, seu confidente e consultor por toda a vida. Em 1618, querendo continuar os estudos, parece-lhe razoável fazê-lo na academia militar que Maurício de Nassau - o mesmo que governou Pernambuco - criara em Breda, na Holanda. Vestir farda estrangeira não era nada de extraordinário, visto que Holanda e França eram aliadas nas guerras religiosas contra a Espanha. Em Breda, conhece o médico Isaac Beekman, oito anos mais velho, com quem faz as primeiras experiências sobre a refração da luz e estuda a obra científica do italiano Galileu. No ano seguinte, Descartes abandona o exército do protestante Nassau e se alista nas tropas que o católico Maximiliano da Baviera reunia contra o rei da Boêmia.

O jovem oficial vive um período místico e, em Ulm, ingressa na Associação Rosa Cruz, uma sociedade semi-secreta que recomenda a seus membros o exercício gratuito da Medicina. Seus manuscritos dessa época estão perdidos, mas os títulos dão idéia do que lhe ia pela mente: Parnassas (a região das musas), Olympica (relativo aos deuses). O rigoroso inverno de 1619 em Ulm, em que a tempestade cerebral definiria seu destino, foi recordado por Descartes como uma temporada de solidão e fértil experiência intelectual: “Não encontrando nenhuma conversação que me divertisse e não tendo, além disso, por felicidade, preocupações ou paixões que me perturbassem, ficava todo o dia fechado sozinho num cômodo aquecido por uma estufa, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com meus pensamentos.

Descartes estava convencido de que daria uma contribuição decisiva à ciência do conhecimento - na verdade, ele era extremamente vaidoso e se considerava um gênio. "Verdadeira generosidade, que faz que um homem se estime no mais alto ponto em que se pode legitimamente estimar" escreve a Mersenne, relatando suas ambições pessoais. Em 1619, dá início às viagens que se prolongariam por uma década. Entre 1623 e 1625, tendo abandonado a vida militar, vive na Itália, onde faz peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Loreto. Católico fervoroso, Descartes pagava uma promessa. Entre 1626 e 1628, fixa residência em Paris, onde se ocupa de Matemática e dióptrica, o ramo da Física que estuda a refração da luz. Só não abandonou a Filosofia porque o cardeal Pedra de Berulle o animou a servir à causa da religião contra os libertinos. Depois de Henrique IV, subiu ao trono francês seu filho, Luís XIII (de 1610 a 1643). Mas quem de fato governava era o cardeal Richelieu.

Durante dezoito anos, a partir de 1624, Richelieu administrou uma espécie de política desenvolvimentista à moda do século XVII, fomentando o comércio e a indústria. Os engenhos mecânicos proliferavam e estava na ordem do dia ser cientista. Nas ruas de Paris, é possível que Descartes tenha cruzado com Isaac de Portau, Henry d’Aramitz ou mesmo Armand de Sillégue d’Athos, os espadachins famosos da Guarda do Rei que inspiraram os três mosqueteiros de Alexandre Dumas. Ao contrário daqueles contemporâneos sempre às voltas com duelos, porém, Descartes foi um guerreiro relutante - por exemplo, mais um observador do que um combatente na Guerra dos Trinta Anos.

Em 1628, Descartes decide mudar-se para a Holanda, uma terra de tolerância religiosa e, por isso mesmo, de efervescência intelectual, onde viverá quase todo o resto de sua vida. Nessa época, ele era já autor de um certo número de textos sobre Matemática, Física e Filosofia, mas ainda não entregara a obra capaz de revelar a “ciência admirável” que, presunçoso, prometera publicamente. Em 1633, está pronto, enfim, o Tratado do mundo, contendo uma explicação ordenada de todos os fenômenos naturais, da formação dos planetas e da gravidade. até chegar ao homem e ao corpo humano. Mas, justamente nesse ano, Galileu foi condenado pela Inquisição por dizer que a Terra se move ao redor do Sol. Precavido, Descartes engaveta seu livro e resolve dali por diante ser discreto e evitar qualquer confronto com a religião.

"Ando tão assustado", escreveu a Mersenne em 22 de julho de 1633, que estou quase resolvido a queimar todos os meus papéis ou, pelo menos, não deixá-los a ninguém. Confesso que, se isso (o movimento da Terra) é falso, todos os fundamentos de minha filosofia também o são." O Tratado ficou entre os papéis de Descartes e só foi publicado em 1677. Ele não abandonou, porém, a idéia de divulgar suas teses científicas, partindo da Filosofia para criar uma nova Matemática e, sobre ela, edificar uma nova ciência. Assim, em 1637, precede seus três ensaios - Meteoros, Dióptrica e Geometria - de um Discurso do método.

Nessa sua mais famosa obra, expõe por inteiro a metodologia da dúvida, começando por destruir tudo: sua crença na existência do mundo, dos objetos, de seu próprio corpo, de Deus, Tudo pode ser pura ilusão, sonho. Mas resta uma certeza: “ Penso logo existo" (Cogito, ergo sum, em latim). Descartes reconstrói o Universo, demonstra sua própria natureza, reafirma a existência de Deus, das coisas materiais e, por fim, distingue corpo e alma no homem. O mais importante - e que constitui a metodologia básica do cartesianismo - é considerar como verdadeiro somente o que for possível intuir com clareza e evidência.

Descartes estava seguro de ter chegado à mais sólida filosofia jamais pensada. Mas nem por isso ficou livre da polêmica. Para evitar dissabores (não esqueceu Galileu nas mãos do Santo Ofício), costuma submeter seus trabalhos à crítica dos teólogos e os publica, junto com as eventuais objeções. Mas, mesmo na tolerante Holanda, os ministros e acadêmicos se irritam com a repercussão de sua filosofia e vão à luta em defesa de Aristóteles.

A 17 de março de 1642, o Parlamento de Utrecht proíbe que as idéias de Descartes sejam ensinadas na cidade, “ primeiro, porque são novas; depois, porque desviam a juventude da velha e sã filosofia". Com isso, Descartes encheu-se de brios e passa a se defender dos ataques pessoais. Em 1645, a Universidade de Groningen o perdoa, mas a Justiça de Utrecht considera difamatória sua réplica. Dois anos depois, um teólogo da Universidade de Leyden, ainda na Holanda, o acusa de blasfemo, crime punido pela lei. Descartes precisa pedir socorro ao embaixador francês.

Isso não foi suficiente, porém, para melhorar suas relações com a terra natal. Em 1647, em Paris, onde o cardeal Mazarino, sucessor de Richelieu, lhe concede uma pensão, que por sinal jamais será paga, Descartes encontra o jovem Blaise Pascal (1623-l662), a quem sugere experiências sobre o vácuo usando o mercúrio. No ano seguinte, novamente em Paris, encontra a cidade em ebulição política e tomada por barricadas. "O ar de Paris me predispõe a conceber quimeras em lugar de pensamentos filosóficos. Vejo ali tantas pessoas que se enganam em suas opiniões e cálculos que isso me parece uma enfermidade universal", comenta, azedo. Descartes prefere mais que nunca evitar os assuntos polêmicos, ocupando-se sobretudo de questões morais. É o que mostra sua correspondência com a princesa Isabel, filha de Frederico, rei destronado da centro-européia Boêmia, exilado na Holanda.

A última obra do filósofo, As paixões da alma, de 1649, procura entender os sentimentos e tirar conclusões éticas. Nesse ano, ainda que relutante, Descartes aceita um convite para viver na corte sueca. A realeza européia está ávida de brilho intelectual, mas a rainha Cristina, da Suécia, tinha excêntrica noção de como utilizar os serviços do filósofo - ela o chamava para conversar três vezes por semana, às 5 horas da manhã. Visitar o castelo em plena madrugada, no severo inverno nórdico, foi demais para os pulmões delicados de Descartes. A 11 de fevereiro de 1650, ele morreu de tuberculose, em Estocolmo, aos 54 anos de idade. O corpo foi enviado para ser enterrado na terra natal. Mas a cabeça só voltou à França em 1809 - em macabra homenagem à sua inteligência, os suecos conservaram seu crânio por mais de um século e meio.

O homem que calculava

Qualquer ginasiano conhece uma das mais populares contribuições de René Descartes à Matemática: os a, b, x, e y da álgebra. Foi Descartes, de fato, quem primeiro usou as letras iniciais do alfabeto para representar as constantes e as últimas letras para as variáveis de uma equação. Ele também introduziu o uso de expoentes e o símbolo da raiz quadrada. Mas sua grande proeza foi combinar álgebra e geometria, tornando mais fácil a solução de problemas bastante complexos isoladamente - o resultado da fusão ganhou o nome de geometria analítica. Descartes foi responsável, igualmente, pela primeira classificação sistemática das curvas e de seu cálculo - as coordenadas cartesianas.

São conhecidos seus avançados estudos sobre a refração da luz e a confecção de eficientes lunetas. Ele imaginou ainda a gravidade como uma espécie de turbilhão gerado pelo movimento da Terra no fluido que tudo preenche (Descartes não acreditava na existência do vazio). O planeta giraria em torno do Sol obedecendo ao mesmo princípio: um vórtice criado pelo movimento de um sólido no fluido. Tais conceitos hoje parecem pueris, mas deram origem ao mecanicismo nas ciências naturais. Aos olhos do século XX, porém, é na anatomia que Descartes comete seus piores vexames. Ele supunha, por exemplo, que a glândula pineal era uma característica do ser humano e a descreveu como a conexão entre corpo e alma. Poucas décadas mais tarde, já se sabia que répteis primitivos também tinham essa glândula - e ainda mais desenvolvida que no homem.

Em latim, só o nome

Como era praxe em seu tempo, René Descartes assinou suas obras com uma versão latinizada de seu nome: Renatus Cartesius. Daí seu sistema filosófico ser chamado cartesiano. No início do século XVII, na verdade, o latim já estava em declínio como língua universal da cultura e o próprio Descartes preferia escrever em francês. A publicação em língua vulgar do Discurso do método, em 1637, é uma espécie de atestado de maturidade intelectual do idioma francês, convertido por Descartes em respeitável veículo para a erudição. Além disso, o abandono do latim - que Descartes reservou apenas para o público acadêmico - permitiu ampla divulgação de seu trabalho, abrindo as portas do conhecimento aos burgueses semiletrados.

Se não foi o primeiro a filosofar na França, Descartes foi o primeiro a filosofar em francês. E isso teve tamanho impacto na terra natal que o pensamento cartesiano se tornou um símbolo de identidade nacional, uma espécie de brasão da inteligentsia francesa. Mas, para além de qualquer fronteira, Descartes legou à humanidade uma nova maneira de raciocinar, capaz de ser usada para provar até mesmo que boa parte de sua própria filosofia está errada. Da mesma forma que na álgebra as equações de grau superior são convertidas em equações mais fáceis de resolver, o método cartesiano propõe-se a dividir as questões em idéias cada vez mais básicas e simples, até obter um conhecimento legítimo: a verdade. Para o professor Carlos Alberto Ribeiro de Moura, da Universidade de São Paulo, não pode haver dúvida sobre a decisiva contribuição do filósofo do século XVII ao pensamento moderno. Diz ele: "Devemos a Descartes a teoria da verdade como problema filosófico".
Revista Superinteressante

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