domingo, 30 de dezembro de 2012

Castelo de Drácula

Na Transilvânia


Paula Vares Valentim

Das ruas estreitas e becos escuros com esquinas vazias durante os dias e extremamente movimentadas à noite, Brasov ganhou notoriedade histórica por servir como morada de Vlad III, o Empalador, principal influência de Bram Stoker no romance de Drácula. “Tudo lá é diferente. Você não sabe se faz parte de uma obra literária ou da própria realidade. Fica mesmo a dúvida, nesse sentido. Mas se não fosse por isso a região seria apenas mais uma, como qualquer outra. Entretanto, a Transilvânia tem o seu mistério, a sua alma, o seu encanto. Isso é o que a faz tão especial”. Relativamente pequena, Brasov possui uma população de aproximadamente 300 mil habitantes e está situada na cordilheira dos Carpatos. “Gosto muito de montanhas. Na América do Sul tive a oportunidade de cruzar por terra toda a extensão da Cordilheira dos Andes desde a Venezuela até o Aconcágua, na Argentina. Na África do Sul estive na Table Mountain. Na Europa, percorri os Carpatos, que se estendem por 1500 km pelas fronteiras da Romênia, Ucrânia, Polônia, Eslováquia e República Tcheca. Coincidência ou não, geograficamente no Planalto da Transilvânia, a cadeia rochosa tem a sua largura máxima com cerca de 500 km de extensão, cujo ápice pode ser visto a 2655 metros de altitude no Monte Gerlachovsky.” Por trás das pegadas que marcam a história, ainda em tempos atuais, o ar sombrio e misterioso do vale do Carpato segue impulsionando o turismo local. “Existe uma preocupação muito grande com o turista. Há um cuidado especial com o que a cidade vai oferecer aos visitantes que procuram o lugar afim de viver um pouco do que Bram Stoker imortalizou em seu livro. Essa é a grande atração da Transilvânia.” Seja em um jantar à luz de velas dentro de um restaurante gótico ou diante do requinte medieval, a sensação que fica é de que na Transilvânia o conto de vampiros está muito além das páginas de Bram Stoker. “Você sai do hotel e de repente dá de cara com as noivas do Conde Drácula. Elas são vistas durante toda a madrugada com seus trajes brancos, decotados e absolutamente sensuais. Fazem da arte, o ganha pão. Se vestem como se fosse a personagem Lucy. Mais ou menos como as estátuas humanas que ficam paradas na Avenida Paulista, em São Paulo. Em Brasov a maneira natural para faturar um trocado é encenar a vida Então, essas mulheres, completamente maquiadas, provocantes, com rostos pálidos, mãos delicadas e vestidos semi transparentes fazem da exploração do turismo uma ótima oportunidade de faturar alguns euros. Elas posam para fotos e vivem literalmente o contexto do livro. Tudo muito bem organizado e adaptado à rotina da cidade.” 

Historicamente, Brasov ficou conhecida como um dos maiores palcos de atrocidade de Vlad Tepes III. Foi lá que o príncipe da Valáquia sacrificou em um dos seus muitos atos de barbárie humana, cerca de 30 mil prisioneiros turcos na noite de São Bartolomeu, em 1459. “Os romenos contam que ele gostava de empalar as pessoas, sobretudo os seus inimigos. Um dos seus grandes atos de covardia aconteceu justamente na noite de São Bartolomeu, coincidentemente, o santo seguidor de Cristo, pintado na Capela Sistina no Juízo Final de Michelangelo, que teve o seu dia associado a outra tragédia, em 23 de agosto de 1572, quando a Casa Real Francesa ordenou o massacre de 30 a 100 mil protestantes em Paris. Mas enquanto na França as questões religiosas se tornaram o motivo principal do ataque dos cristãos, na Romênia, mesmo diante da histórica briga religiosa que influenciou a própria obra de Drácula, conta-se que a crueldade de Vlad Tepes servia como proteção ao povo da Valáquia. Em 1461, por exemplo, Mehmet II, do Império Otomano, desistiu de invadir a Transilvânia depois de ver e sentir o odor de outros 20 mil prisioneiros turcos mortos na floresta de Torgoviste.”

Evidentemente, um dos lugares mais visitados da região, é o Castelo de Bram, descrito pelo escritor irlandês, como a morada de Drácula. Localizado entre a fronteira da Transilvânia e a Valáquia, há poucos quilômetros de Brasov, pela autoestrada 73, o local foi erguido ainda no século XIV e serviu como importante ponto estratégico na luta do exército romeno contra o Império Otomano. “O Castelo de Drácula, como é conhecido mundialmente, pode ser visto de longe através da penugem da sua arquitetura medieval: É o principal ponto turístico da Transilvânia. Um lugar frio, alto e carregado de lendas. Apesar disso, a verdade é que Vlad Tapes III não morou em nenhum de seus aposentos. Apenas esteve lá por um período. As pessoas chamam de Castelo de Drácula porque foi dele que Bram Stoker adaptou o seu livro”.

Do lado de fora, um enorme jardim, interligado aos bosques dos Monte Cárpatos, com algumas passarelas estreitas e pontes antigas, dá as boas vindas aos visitantes. O tom assombroso ganha evidência com o lago profundo encoberto por lodo. Placas de aviso sinalizam aos turistas o perigo de afogamento. Cruzes por todos os lados e em vários ângulos também aumentam a sensação de terror. Mas quem entra no palácio e espera encontrar algo assombroso se depara com um ambiente extremamente luxuoso, com salas grandes, corredores largos e muitas passagens secretas: “Algumas pessoas pensam que o castelo, por ter inspirado o livro de Drácula, é escuro e mofado, com as paredes caindo e mal conservado. Ao contrário disso, o que se pode ver é um lugar muito bem cuidado e luxuoso. Basta dizer que foi a sede da monarca Maria Vitória, rainha da Romênia entre o final do século XIX e início do Século XX. Parte da mobília utilizada pela nobreza ainda permanece intacta. Em seus recintos, que atualmente fazem parte de um museu aberto ao público, são encontradas mesas com madeiramento trabalhado, camas imperiais, lustres de prata e até a famosa coroa utilizada por Drácula. 

A peça de ouro maciço, protegida por uma redoma de vidro, se contrasta com um piano velho encostado na parede. Documentos históricos mostram ainda a árvore genealógica da família de Vlad Tepes e a maneira como ele empalava as pessoas. São desenhos antigos e caricaturas do príncipe que imortalizam o Conde da Valáquia. “Ele matava as pessoas com lanças que transpassavam o corpo inteiro. Por isso o apelido de ‘O Empalador’. A bem da verdade, Vlad Tapes chegou a ser prisioneiro de sua própria obra. Dentro do castelo de Bram, ficou preso por alguns meses. Diferentemente do que Stoker contra em seu livro.”

A visita pela morada de Drácula termina com uma cena curiosa. Do lado de fora, na área de trabalho utilizado pelos escravos e serviçais do castelo, um poço de água, secado pelo tempo, serve para alimentar o mito e a esperança. A exemplo do que acontece na Fontana di Trevi, em Roma, quem vai ao Castelo de Bram não sai sem deixar uma moeda. Uma regra que mantém viva a tradição de umas mais importantes relíquias da Romênia. “Um lugar místico, simplesmente, mágico. Para quem aprecia os livros e gosta da história, o Castelo de Drácula é um local obrigatório. Imperdível. Principalmente pelo que oferece à Transilvânia, uma das regiões mais incríveis que já visitei na Europa.”
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Poder privado, poder público - Partir das palavras


HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA 2

O historiador francês Georges Duby (1919-1996), especialista em história medieval, é autor de diversos livros que contribuíram para disseminar seu amplo conhecimento relacionado à sociologia e antropologia. Seus estudos sobre as mulheres da Idade Média resultaram nos cinco volumes de "História da Mulheres", coleção que dirigiu com Michele Perrot. Duby também foi coordenador do projeto "História da Vida Privada", que apresenta um painel das instituições e dos costumes que ajudam a compreender o surgimento do homem moderno.
Poder privado, poder público - Partir das palavras

O que era a vida privada nos tempos feudais? Para construir uma problemática eficaz - pois, repito-o, é disso que se trata - o melhor método, creio, é partir das palavras, explorar um campo semântico, isto é, o nicho onde se acha refugiado o conceito. Ao tomar este caminho, tenho além disso a impressão de ser fiel ao espírito daqueles eruditos que, à época que escolhi observar, cumpriam uma função análoga à que cumpro, e que em primeiro lugar eram gramáticos, começavam por estudar um vocabulário para aproximar-se do incognoscível, progredindo do mais conhecido ao menos conhecido.

Nos dicionários da língua francesa compostos no século XIX, ou seja, no momento em que a noção de vida privada adquiria seu pleno vigor, descubro de início um verbo, o verbo privar, significando domar, domesticar, e o exemplo dado por Littré, "um pássaro privado", revela o sentido: extrair do domínio selvagem e transportar para o espaço familiar da casa. Descubro em seguida que o adjetivo privado, considerado de maneira mais geral, também conduz à ideia de familiaridade, agrega-se a um conjunto constituído em torno da ideia de família, de casa, de
interior. Entre os exemplos que escolheu, Littré cita a expressão que se impunha em seu tempo: "A vida privada deve ser murada", e propõe esta glosa, em minha opinião bastante expressiva: "Não é permitido procurar e dar a conhecer o que se passa na casa de um particular".

Todavia, e é isso que marca bem o termo particular, em seu sentido primeiro, mais direto, mais comum, o privado se opõe ao público. Assim, no Littré, estas duas citações, uma de Vauvenargues: "Aqueles que governam cometem mais faltas que os homens privados"; e outra de Massillon: "Nada é privado na vida dos grandes, tudo pertence ao público". Eis-me então remetido à palavra público. Definição, de Littré: "O que pertence a todo um povo, o que concerne a todo um povo, o que emana do povo". Portanto, a autoridade e as instituições que sustentam essa autoridade, o Estado. Esse primeiro sentido evolui para uma significação paralela: diz-se público o que é comum, para o uso de todos, o que, não constituindo objeto de apropriação particular, está aberto, distribuído, resultando a derivação no substantivo o público, que designa o conjunto daqueles que se beneficiam dessa abertura e dessa distribuição. Muito naturalmente, o deslocamento do sentido prossegue: é dito público o ostensivo, o manifesto. Assim, o termo vem opor-se, de um lado, a próprio (o que pertence a tal ou qual), do outro, a oculto, secreto, reservado (o que é subtraído).

Deve-se ficar surpreso de que um nó de significações apareça de tal maneira organizado no seio da língua latina clássica, em torno de duas palavras opostas, publicus e privatus? Na linguagem de Cícero, por exemplo, agir privatim (opondo-se esse advérbio a publice) é agir não enquanto magistratus, investido de um poder emanado do povo, mas como simples particular, em outro território jurídico, e igualmente não é agir fora, aos olhos de todos, no fórum, mas em seu domicílio, no interior de sua casa, isoladamente, separadamente. Quanto ao substantivo
privatum, designa os recursos próprios (novamente, a ideia de propriedade), o uso próprio e, finalmente, ainda, o em-casa (in privato, ex privato: em ou fora da casa).

Quanto a privus, designa também ao mesmo tempo o que é singular e o que é pessoal. Em consequência, no francês do século xix e no latim clássico, a organização do sentido é a mesma; uma raiz, a noção de comunidade popular, da qual procedem dois ramos, um crescendo na direção do que é isento, afastado do uso comum, o outro na direção do que é doméstico, que toca ao indivíduo, mas cercado de seus próximos. Portanto, aquilo que juridicamente escapa, de um lado, a esse poder cuja natureza é especificada pela palavra publicus, poder do povo, e, do outro, à intrusão da multidão.

"História da Vida Privada 2"
Autor: Georges Duby
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 642
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sábado, 29 de dezembro de 2012

Rapidinhas da História ...


A Torre de Londres é um dos principais pontos turísticos da cidade. Ela data do final do século 11, quando era um dos maiores e mais importantes prédios da Londres medieval. No local, foram executados grandes nomes da história britânica, como Ana Bolena (ex-mulher do rei Henrique 8º, fundador da Igreja Anglicana) e o filósofo e escritor Thomas Morus.

Além de guardar as joias da Coroa, o lugar também atrai visitantes que desejam conhecer as salas de tortura, remanescentes da época em que a torre funcionava como prisão.
Folha de S. Paulo

'Será que já houve uma guerra santa que foi puramente sobre religião?'


'Será que já houve uma guerra santa que foi puramente sobre religião?', diz historiador

RICARDO BONALUME NETO


Entrevista com o historiador, biógrafo e crítico britânico Nigel Cliff, formado na Universidade Oxford. Ele é autor de "Guerra Santa - Como as Viagens de Vasco da Gama Transformaram o Mundo", agora publicado no Brasil.

Por que o nome do livro é "Guerra Santa"? Você acredita que Vasco da Gama e os portugueses estavam envolvidos em um verdadeiro choque de civilizações, em vez de simplesmente iniciarem uma guerra comercial?


Nigel Cliff - Essa é uma questão complexa. Para começar, o meu título original era na verdade "A Última Cruzada: As Viagens Épicas de Vasco da Gama". Esse é o título no Reino Unido e também o título do paperback que saiu em [agosto] nos EUA. Eu concordei em chamar a edição de capa dura nos EUA de "Guerra Santa" para diferenciar de outros títulos semelhantes, mas "A Última Cruzada" representa a tese do livro com mais precisão.

Eu certamente não sugiro que houve um estado permanente de conflito entre o islã e o cristianismo nos séculos antes da viagem de Vasco da Gama. Descrevo muitos lugares --al-Andalus, Toledo, Sicília, Veneza-- onde a civilização foi elevada por um espírito de cooperação entre as religiões. O que eu sugiro é que as viagens dos portugueses eram, em muitos aspectos, o produto de quatro séculos de tentativas por parte da Europa ocidental --a maioria das quais foi sob o nome de Cruzadas-- para empurrar de volta o mundo islâmico invasor.

É por isso que eu decidi abrir o livro com os avanços do islã, o nascimento das Cruzadas na reconquista ibérica e a expulsão dos cruzados da Terra Santa. As cruzadas são geralmente descritas como tendo terminado naquele momento. Na verdade, as Cruzadas foram convocadas ao longo dos séculos 14 e 15, com crescente urgência quando os otomanos conquistaram Constantinopla, mas com pouco ou nenhum sucesso.

Acho que faz sentido chamar a missão portuguesa de "A Última Cruzada" porque, ao abrir os oceanos para o comércio e conquista europeias, isso fez pender a balança do poder mundial do islamismo para o cristianismo e marcou o início de cinco séculos de ascendência global ocidental.

É claro que a religião não foi o único fator. Motivos econômicos e políticos claramente desempenharam um grande papel, assim como a ambição pessoal. O mesmo aconteceu com os cruzados anteriores: será que já houve uma guerra santa que foi puramente sobre religião? Espero que eu tenha deixado isso claro no livro.

Dito isso, eu queria destacar o papel da fé, porque eu sinto que, em nossa época cética, fomos longe demais em atribuir motivos puramente seculares aos descobrimentos --no sentido de que alguns historiadores repudiam toda ideia de fé como pouco mais do que hipocrisia. Para mim, isso não faz sentido numa época em que a religião estava intimamente ligada com a saúde do Estado e do seu povo --particularmente nos intensamente católicos Espanha e Portugal.

Mesmo tendo em conta a expressão de devoções necessárias para ganhar o apoio papal --que era muito importante numa época em que o papa era o legislador supremo-- o registro mostra que, desde os monarcas até os marinheiros comuns, muitos portugueses estavam convencidos de que estavam fazendo a obra de Deus. De dom Manuel silenciando os céticos na corte, dizendo-lhes que estava seguindo a vontade divina, aos marinheiros da primeira viagem de Vasco da Gama agradecendo a Deus por protegê-los.

Claro que isso não é verdade para todos: a série de motivos entre os diferentes participantes entra em foco tragicômico na segunda viagem de Gama, com Gama afundando um navio repleto de peregrinos muçulmanos e insistindo que os indianos expulsem todos os muçulmanos.

Ao me focar na fé --ou melhor, na mentalidade dos cruzados-- como um ingrediente vital dos descobrimentos, eu certamente não pretendo voltar para a antiga e acrítica ideia de que as viagens eram nobres esforços missionários. Pelo contrário, essa mentalidade nascida das Cruzadas --uma mentalidade que dividiu o mundo em verdadeiros crentes e infiéis, justificando quase qualquer ato de agressão em nome de uma religião expansionista - significou desastre para os portugueses desde o início.

Quando os portugueses finalmente perceberam que a Índia não estava cheia de cristãos que esperavam para recebê-los de braços abertos, eles foram lançados à deriva em um mundo que não fazia sentido para eles. Foi precisamente porque trouxeram com eles essencialmente uma visão medieval do mundo que eles deixaram de capitalizar totalmente sobre as descobertas e deixaram o caminho aberto para outras nações colherem muitas das recompensas.

Assim, para resumir e responder a sua pergunta: eu acho que a longa disputa entre o islã e o cristianismo foi o fator essencial que deu origem às viagens portuguesas. Longe de querer lançar uma guerra comercial, os portugueses esperavam encontrar aliados cristãos no Oriente, que iriam entregar suas especiarias e ajudá-los em seu caminho, talvez até Jerusalém. Mas quando a realidade se revelou muito diferente, eles se encontraram sem querer arrastados para uma guerra comercial - e, eventualmente, como os ideais originais desapareceram, em uma série de confusas brigas locais por riqueza e poder.

Em 1509, os portugueses derrotaram uma grande invasão marítima da Índia ao largo de Diu por uma frota mameluca-gujarate. Em 1538, um cerco ainda maior pelos turcos otomanos foi derrotado lá. E em 1546 outro grande cerco pelas gujarates, incluindo muitos guerreiros turcos e árabes, foi ali derrotado. Estes episódios ocorreram antes da famosa derrota turca no Mediterrâneo em Lepanto, em 1571, que se pode argumentar que foi menos decisiva.

"Menos glamourosas e menos divulgadas, as vitórias dos portuguesas contra os muçulmanos no oceano Índico durante a primeira metade do século 16 foram historicamente de uma importância muito maior", escreveu o historiador italiano Carlo M. Cipolla. Você concorda?
Bernard Lewis fez uma afirmação semelhante alguns anos atrás, sobre a repulsa do avanço otomano em Viena. "A derrota final e retirada dos exércitos do islã foi, sem dúvida devida, em primeira instância, aos valentes defensores de Viena", escreveu ele, "mas na perspectiva mais ampla foi devido a esses aventureiros cujas viagens através do oceano e ganância por ouro despertaram [a ira de seus rivais europeus]".

Você poderia estender esse argumento para incluir Lepanto. As vitórias portuguesas que você menciona são tanto psicológicas quanto físicas: elas permitiram que a Europa acreditasse que poderia flanquear o Império Otomano, que era então, é claro, a única superpotência do mundo. Elas também garantiram o acesso contínuo para navios europeus às águas da Ásia e da riqueza a ser adquirida lá. Ao remover a maior ameaça para a projeção global do poder europeu, concordo que elas foram pelo menos tão decisivas como a vitória sobre os otomanos no Mediterrâneo.

Em nosso tempo politicamente mais correto, os portugueses não poderiam comemorar a viagem de Vasco da Gama 500 anos atrás como o prelúdio para a conquista, por isso eles a nomearam um "encontro de civilizações", em 1997. Mesmo assim, os indianos não engoliram a coisa. Como é que essas polêmicas ainda podem acontecer depois de meio milênio?
Um jornalista indiano me lembrou recentemente da indignação --talvez até mesmo descrença-- com a qual a Índia respondeu ao convite de Portugal para comemorar a chegada de Vasco da Gama em suas praias.

Para mim, esta é mais uma prova do argumento que faço no livro: que a chegada de Vasco da Gama na Índia foi um ponto de viragem nas relações Leste-Oeste, abrindo o caminho para quase meio milênio de ascendência ocidental global e imperialismo --e é lembrada como tal por muitos em toda a Ásia.

Uma razão pela qual eu queria escrever este livro era resgatar Vasco da Gama da sombra de Colombo. Em um momento de islamismo redivivo e de China e Índia ressurgentes, senti que era hora de restaurar esta história na sua devida importância e compreender seu impacto na história mundial.

Seu livro cita fontes quase que exclusivamente em inglês. Foi um problema para fazer a pesquisa, sem consultar fontes em português?
Esta pergunta não faz muito sentido para mim, porque eu consultei uma grande variedade de fontes, portuguesas e em outras línguas europeias (lembrando que muitas das melhores fontes para a segunda viagem de Vasco da Gama, bem como a anterior e aos eventos que se seguiram, não estão em português).

Ao longo do caminho eu fiz ou encomendei substanciais novas traduções --em alguns casos, as primeiras traduções em inglês. Algumas das traduções dadas no meu texto são de minha autoria; em alguns lugares, eu silenciosamente corrigi traduções existentes.

No entanto, o livro foi escrito principalmente para um leitor não especialista de língua inglesa, e eu não via necessidade de retraduzir cada palavra de sua fonte original, quando perfeitamente boas versões em inglês já existem e muitas vezes têm outros méritos, como dar um sabor de época ao texto.

Quanto às referências, me pareceu muito mais útil enviar os leitores ingleses a um texto em inglês --mesmo imperfeito-- do que a uma fonte em português que provavelmente seriam incapazes de encontrar ou ler.

GUERRA SANTA
AUTOR Nigel Cliff
EDITORA Globo Livros
TRADUÇÃO Renato Rezende
Folha de S. Paulo

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Decadência cultural na Idade Média


Livro traça decadência cultural na Idade Média

MARCELO COELHO

O tema deste livro é dos mais restritos. Trata-se da descoberta, em 1417, da cópia de um poema filosófico escrito pelo romano Lucrécio, por volta de 50 a. C.

Com um talento jornalístico raro entre pesquisadores acadêmicos, Stephen Greenblatt transformou esse acontecimento num passeio apaixonante pelos palácios de Florença e pelas paredes salpicadas de sangue dos conventos medievais.

O poema de Lucrécio intitulava-se "De Rerum Natura" ("Sobre a Natureza das Coisas", ou "Da Natureza", como prefere a atual edição). Considerado "sublime" na Antiguidade, dele só restavam alguns poucos fragmentos quando Poggio Bracciolini, alto burocrata do Vaticano, encontrou-o nas prateleiras de um convento alemão.

Greenblatt aproveita a deixa para traçar, em páginas arrepiantes, o relato da decadência cultural na Idade Média. A sabedoria da Antiguidade tinha a fragilidade do material de que era feita. Papiros se desfizeram enquanto desaparecia o público interessado em novas cópias.

Restaram os mosteiros, onde o trabalho de reproduzir manuscritos era uma alternativa à atividade mais rude de lavrar a terra. Mesmo assim, as ideias sinistras que temos da Idade Média são confirmadas por Greenblatt.

Não era permitido aos monges perguntar pelo sentido do que copiavam. Santos eruditos como são Jerônimo (347-420) e são Bento (480-547) renegaram seu gosto pelos clássicos, identificando-os ao pecado.

Outra passagem da vida de são Bento é mencionada. Certa vez, o santo percebeu que estava se lembrando, com desejo, de uma mulher. Atirou-se então numa moita de espinhos e urtigas, rolando nela até ficar coberto de sangue.

Elogio da dor, anti-intelectualismo, fervor religioso: os tempos não eram propícios para as teorias de Lucrécio. O poeta defendia a busca do prazer terreno, e descreve o mundo e os astros como produtos acidentais do encontro de átomos à deriva.

"Deriva" ou mesmo "declinação" dos átomos seriam termos mais exatos para traduzir o "clinamen" de Lucrécio, em vez dessa "Virada", que dá o título ao livro de Greenblatt na edição brasileira. É que importa transformar um fato específico numa espécie de evento fundacional. A descoberta do manuscrito de Lucrécio é identificada como "o nascimento do mundo moderno".

Por mais importante que tenha sido a leitura de Lucrécio para Montaigne, o fato é que o mundo medieval já estava em crise antes da descoberta de Bracciolini. Aliás, o florentino só foi parar num convento da Alemanha porque seu empregador, o papa, havia sido deposto e preso numa rebelião eclesiástica.

O entusiasmo de Greenblatt, de todo modo, contagia o leitor; escrevendo num país tomado pela hipocrisia religiosa e pelo declínio da cultura letrada, pode-se entender o ímpeto com que narra essa história de prazer pelo conhecimento erudito.


AUTOR Stephen Greenblatt
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Caetano Waldrigues Galindo (304 págs.)

Folha de S. Paulo

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Pequena história da infância


Emiliano Urbim
Como era a infância na Antiguidade: Houve um embrião de infância na Antiguidade clássica: gregos e romanos ricos colocavam seus filhos mais espertos na escola. Ainda assim, eles tinham acesso a todas as informações e atividades do mundo adulto, podendo casar ou morrer em batalha muito cedo.

Como era a infância na Idade Média: Sobreviver a pestes e invasões bárbaras não permite distrações como escolas e alfabetização. Numa cultura quase que 100% oral, o mundo é o mesmo para humanos de todas as idades. Meninos e meninas são apenas adultos em miniatura e fim de papo.

Invenção da Imprensa: Em 1429, um alemão chamado Gutemberg inventa a imprensa. Os livros não precisam mais ser copiados à mão e se multiplicam. O efeito colateral disso é o ressurgimento e a expansão das escolas. Para se tornar adulto, é preciso aprender algumas coisas antes.

Como era a infância na Idade Moderna: Entre a nobreza começa a surgir a preocupação de poupar as crianças dos males do mundo, ainda que eles viessem com tudo quando o dever chamasse. Mas, entre a plebe, a infância ainda é apenas um sonho. 

Como era a infância na Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade se estendem às crianças. Ir à escola se torna obrigatório e aparecem os direitos da criança. A partir daí elas são vistas como seres diferentes, que precisam de proteção e carinho dos pais até virarem adultos. 

Como era a infância na Revolução Industrial: Quando surgem as fábricas, a primeira tentação em todos os países industrializados é colocar as crianças para trabalharem junto com suas mães por horas e horas. Mas logo a sociedade reage e o trabalho infantil é proibido. 

Como era a infância na Era de Ouro: A partir de 1850, tem início o auge do conceito da infância. As crianças têm roupas, brincadeiras, linguagem e até uma psicologia feita sob medida. São idealizadas como um tesouro que devia ser preservado ao máximo. 

Como era a infância na década de 50 Com o sucesso da TV, na década de 50, tem início o esvaziamento do conceito de infância. A partir daí, as crianças voltam partilhar de informações destinadas aos adultos, deixando a proteção do mundo infantil.

Como é a infância hoje: A queda que começou em 1950 tem sinais muito claros hoje: as crianças estão se tornando adolescentes cada vez mais cedo, o trabalho infantil, se der muito dinheiro, está sendo valorizado, e até a Turma da Mônica precisou ficar adolescente para voltar a vender.
Revista Educar Para Crescer

Como era a infância na Antiguidade?


Aos 13 anos, o príncipe Alexandre, que ainda não era o Grande, começou a ter aulas com Aristóteles. Aos 16, já comandava exércitos da Macedônia. A transição brusca do banco da escola para a cela do cavalo é um bom exemplo de como os gregos e romanos viam seus jovens abastados: se vivessem o suficiente, poderiam adquirir alguns conhecimentos úteis e, assim que possível, deveriam estar aptos para todas as demandas do mundo adulto. 

Na Idade Média, a vida das crianças piorou. As que chegavam até a idade de conseguir segurar um instrumento de trabalho quase sempre aprendiam a profissão de seus pais. O acesso à educação ficou muito restrito: os mosteiros detinham o monopólio do conhecimento, e não tinham interesse em disseminá-lo para além de suas paredes. (Fãs de O Nome da Rosa talvez se lembrem dos monges que morreram tentando ler um livro proibido.)
Revista Educar Para Crescer

Dieta da fome


Em contraste com o variado cardápio dos ricos, escravos e pobres não tinham acesso à carne no Brasil Colônia.

Pedro Henrique Campos

Frutas, verduras e grãos. À primeira vista, uma boa dieta, típica de quem quer manter-se “em forma”, como se diz. O termo que deveria estar entre aspas, contudo, é “quer”, pois ele faz toda a diferença. No Rio de Janeiro de D. João VI, escravos mantinham uma dieta muito próxima à dos vegetarianos – mas eram obrigados a isso, por não terem acesso a quase nenhuma proteína animal. 

Desde o tempo da colônia, muitos historiadores notaram que os hábitos alimentares simbolizavam com perfeição nossa desigualdade social. As pessoas mais ricas preferiam consumir alimentos estrangeiros, especialmente os portugueses, como vinho, pão de trigo, azeite, vinagre, azeitona e queijo. Já os escravos e homens livres pobres se viam obrigados a comer produtos nacionais, como mandioca, feijão, milho, peixe e frutas. Estava materializada na alimentação a distância que separava os proprietários de terra e grandes comerciantes dos demais grupos sociais.

No início do século XIX, o Rio era o principal centro urbano do Brasil. Tinha o comércio mais movimentado e era o principal porto do mercado de escravos. Além da sujeira das ruas, das vias estreitas e barulhentas, era a quantidade de escravos o que mais saltava aos olhos de quem visitava a cidade. A vinda da corte portuguesa, em 1808, aumentou enormemente a demanda por cativos para servir à família real, aos funcionários da Coroa e aos cortesãos. Os escravos chegaram a cerca de 60 mil, quase a metade da população urbana.

Com mais homens livres e escravos nas ruas, criaram-se dois grandes problemas para os governantes. Em primeiro lugar, temia-se uma “haitização” da capital, ou seja, uma grande rebelião nos moldes da que dominou a colônia francesa do Haiti em 1791, levando à proclamação da sua independência em 1804. O segundo medo era o do desabastecimento de bens. Principalmente os alimentos.

O item mais escasso era também um dos mais elementares: a carne. O produto era transportado para a capital na forma de animais vivos – principalmente boiadas vindas das províncias de Minas Gerais e Rio Grande do Sul (os gaúchos tinham o maior rebanho bovino do país) – ou como carne-seca, em navios que costeavam o litoral, no chamado comércio de cabotagem.

Com os bois vivos, preparava-se um tipo especial de carne, diferente da carne-seca, que era mais salgada e durava mais. Os bois eram abatidos em matadouro público (na Rua Santa Luzia, no bairro da Glória) e encaminhados aos diversos açougues da cidade. Ali, as pessoas compravam a carne e preparavam-na no mesmo dia, para que não apodrecesse. Era a chamada “carne verde”: mais cara e consumida pelos grupos privilegiados da sociedade: grandes comerciantes, fazendeiros e altos funcionários do governo.

Além de escravos, a vinda de D. João VI ao Brasil atraiu também – principalmente a partir de 1815, com o fim das guerras napoleônicas – muitos cientistas, artistas e comerciantes europeus, que mantiveram cartas e diários de viagem. Estes registros revelam que a questão dos hábitos alimentares no Brasil causava grande estranhamento nos viajantes. Eles criticavam o comportamento dos colonos à mesa, a não utilização de talheres e a falta de respeito a etiquetas, inclusive entre os mais ricos. Relatavam, enojados, que era um costume muito comum comer com as mãos, usando apenas uma faca para auxiliar no corte de algum pedaço de carne.

Os estrangeiros também notaram muitas diferenças entre a alimentação das pessoas ricas, dos pobres e dos escravos. Segundo relato do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), o horário das refeições variava conforme a condição social. Enquanto os empregados e escravos jantavam por volta das 14 horas, os proprietários e grandes comerciantes faziam a refeição apenas às 18 horas. A sesta após a janta era comum, mas também variava entre as classes: enquanto os ricos cochilavam de duas a três horas, os mais pobres – justamente aqueles que trabalhavam – dispunham de menos tempo para o descanso.

Alguns viajantes puderam presenciar as refeições de vários grupos sociais, encontrando grande diferença no cardápio. Debret esteve na casa de um rico comerciante e participou de um banquete, que era ali um hábito usual. Ao descrever o evento, o pintor conta que na mesa havia um “enorme pedaço de carne de vaca, salsichas, tomates, toucinho”. Depois vinham “galinha com arroz” e “uma resplendente pirâmide de laranjas” – tudo acompanhado de frutas e taças com água e vinho Porto e Madeira, mantidas sempre cheias pelos escravos domésticos.

Os mais abastados comiam não apenas muita carne, mas em grande variedade – boi, porco e ave. Já os homens pobres livres tinham dificuldades para consumir proteínas animais. Debret nota que um pequeno comerciante carioca comia apenas “um miserável pedaço de carne-seca” com farinha e feijões. Robert Walsh, viajante inglês, relata que “o alimento do pobre é o feijão-preto e a farinha de mandioca. O primeiro é sempre preparado com toucinho e a mandioca é servida também com carne-seca”.

A situação dos escravos era ainda pior, tendo que lutar para conseguir comer qualquer espécie de carne. Segundo Debret, viviam “disputando aos animais domésticos os restos de comida”. Em regiões rurais, médicos encontraram escravos que não comiam alimento animal havia anos. Eram verdadeiros vegetarianos à força. Em busca de carne, alguns escravos ficavam próximos ao matadouro, aguardando o momento em que as sobras eram jogadas ao mar. Eles então mergulhavam nas águas da Baía de Guanabara e coletavam os miúdos de boi, para fazer lingüiças e comer junto com feijões. 

Quando os senhores concediam carne a seus escravos, esta vinha em tão pouca quantidade que muitas vezes era necessário transformá-la em sopa, para que todos pudessem comer. Os cativos também buscavam outros tipos de animais para completar sua dieta, atesta o inglês John Luccock: “tudo quanto tem vida, exceto, talvez, alguns répteis, [...] e todas as criaturas pareciam igualmente bem-vindas pelas classes baixas dos nativos e pretos”.

Alguns escravos lançavam mão do roubo para conseguir pedaços de bife. Quando os quartos de bois eram transportados do matadouro para os açougues em carrinhos de mão, assaltavam o transportador para conseguir sua pequena porção diária de alimentação animal. Quem mais recorria aos assaltos eram os chamados escravos de ganho, que podiam se dedicar a diferentes ofícios urbanos por conta própria, devendo pagar boa parte de seu rendimento aos senhores. Não à toa, em 1808, D. João criou a Intendência de Polícia da Corte, que, entre outras funções, tinha que manter a “ordem” na cidade, evitando furtos e toda forma de organização e preparação de uma rebelião escrava na nova capital do Império.

No livro Geografia da fome, escrito logo após a Segunda Guerra Mundial, o médico e intelectual Josué de Castro (1908-1973) afirmou que era possível dividir a humanidade entre os que não comem e os que não dormem com medo dos que não comem. Assim vivia a população do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX: em parte faminta, em parte amedrontada.

Pedro Henrique Pedreira Campos é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor da dissertação Nos caminhos da acumulação: negócios e poder no abastecimento de carnes verdes para a cidade do Rio de Janeiro, 1808-1835 (UFF, 2007).

Saiba Mais - Bibliografia:

FRAGOSO, João Luiz Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6ª. ed. São Paulo: Ática, 2001.

LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão (1530-1918). Brasília: Binagri, 1979.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Tradições alimentares e culinárias. In: Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa: Estampa, 1993.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Saiba como surgiu a profecia do fim do mundo

Segundo interpretações de símbolos em monumentos maias, o mundo acabaria na próxima sexta-feira, dia 21 de dezembro. Entenda por quê



Segundo interpretações da "profecia maia", o fim do mundo está previsto para a próxima sexta-feira, dia 21 de dezembro. A ideia de que uma hecatombe mundial de grandes proporções se abateria sobre a raça humana na entrada do equinócio de inverno, que ocorre na mesma data, vem sendo alimentada pelo menos há quatro décadas.

Mas foi nos últimos três anos que a previsão ganhou força, polarizando aqueles que acreditam piamente no fim dos tempos e os mais céticos. A BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, decidiu investigar a polêmica. Confira.

De onde vem as profecias? 

As interpretações de que o fim do mundo ocorreria no dia 21 de dezembro de 2012 partiram de dois monumentos maias: a Estela 6 (uma espécie de totem), do antigo assentamento de Tortuguero (no Estado de Tabasco, no sul do México) e a Estela 1 de Cobá, em Quintana Roo.

Além disso, a próxima sexta-feira é o último dia do calendário criado pelos maias. Ou seja, não há registro do que viria depois disso.

Na antiga civilização maia, as chamadas 'Estelas' são colunas nas quais se marcavam as datas de eventos importantes.

Os monumentos também serviam como método de propaganda da elite política e religiosa.

No caso da Estela 6 e da Estela 1, o objetivo era associar datas "míticas" aos sucessos e governos da época para criar coesão e controle social.

Monumento 6 de Tortuguero 

O monumento Estela 6 foi descoberto em 1957-58. Também é conhecido popularmente como "a Estela do fim de uma era", e registra o nascimento e entronização de Apho Bahlam, governador da cidade maia no século VII.

Há também referência à data "baktún 13 4 Ahau 3 Kankin" que, traduzida para o calendário gregoriano, seria equivalente ao dia 21 de Dezembro de 2012 e corresponde ao fim de um ciclo de 5.126 anos registrados na "longa contagem" do calendário maia.

"Isso não significa que o mundo vai acabar nesta data, a única coisa é que esta data vai significar o fim do ciclo baktún 13 do calendário maia", disse à BBC Mundo o arqueólogo Daniel Juárez Cossío, responsável pela ala dedicada à civilização maia no Museu Nacional de Antropologia do México.

"Ou seja, simplesmente, estamos falando do final do baktún 13 para que se comece uma nova etapa. Trata-se, no fim das contas, de um caminho novo".

O sítio arqueológico de Tortuguero foi roubado ao longo do tempo, o que dificultou seu estudo e a interpretação completa e contextualizada da Estela 6.

O Calendário Maia 

Trata-se de uma combinação de datas e fatos de batalhas míticas e desastres naturais que marcaram o desenvolvimento da cultura, com base em ciclos agrícolas e movimentos de estrelas como o Sol e Vênus.

O calendário não determina apenas a ordem dos dias. Em torno dele foram organizados feriados religiosos, períodos de cultivo e colheita, a escolha de nomes para recém-nascidos, sacrifícios humanos e outros aspectos importantes da cultura maia.

Cossío diz que o fim da "contagem de tempo" é simplesmente "o fim de um ciclo de pouco mais de 5 mil anos".

"Mas os maias não têm uma visão linear da história, onde há um fim irrefutável. Sua visão é cíclica, ou seja, algo termina para o início de outra coisa."

Estela 1 Cobá 

Estela 1 é localizada em Cobá, uma cidade no norte de Quintana Roo, no México, que já foi uma próspera cidade maia. Este monumento, com inscrições em todos os quatro cantos, conta a história de seus governantes.

Nesta pedra, há quatro referências ao Calendário de Contagem. Uma delas é uma inscrição mencionando o dia de 21 de dezembro de 2012. No entanto, o monumento está bastante danificado, o que impede a observação de quaisquer fatos que teriam ocorrido depois dessa data.

Quando começou a profecia?

Interpretações das "profecias maias" começaram a se tornar populares nos anos 70 entre pequenos grupos europeus e americanos, que, no calor do movimento nascente da Nova Era, se aproveitaram das recentes descobertas na zona maia da península de Yucatán para criar uma filosofia de vida e, em muitos casos, um negócio lucrativo.

De um lado da moeda, vários grupos dizem que o dia 21 de dezembro vai registrar um movimento especial de planetas, mudanças na forma em que o homem se relaciona com o seu ambiente e uma transformação mental e espiritual da raça humana, que vai alcançar seu auge nesse dia.

No outro extremo, estão aqueles que dizem que, na data, desastres naturais, crises políticas e econômicas e as guerras travadas ao redor do globo causarão a derrocada da civilização moderna. Para eles, os maias teriam deixado suas marcas para nos alertar sobre tais eventos.

Grupos como o Ascensión Nueva Terra e Cambio Nueva Consciencia asseguraram que os maias previram que um raio de luz do centro da galáxia irá impactar o sol no dia 20 de dezembro de 2012, mudando sua polaridade, o que terá efeitos devastadores sobre a Terra.

Os entusiastas do fim do mundo sugerem, ainda, uma série de medidas para se preparar para "enfrentar o caminho final para a nova luz".

Essa série de previsões levou muitas pessoas ao redor do mundo a estocar alimentos, construir refúgios e dirigir-se a terras que pertenceram à civilização mesoamericana.

O que dizem os especialistas? 

Segundo arqueólogos e cientistas que trabalham no estudo de civilizações antigas, os maias não faziam profecias e muito menos queriam deixar previsões para gerações futuras.

Os maias apenas determinavam o destino de uma pessoa ou de uma cidade com base no seu calendário e em suas crenças religiosas.

Nesse sentido, Cossío acredita que o dia 21 de dezembro de 2012 "não é uma profecia". "É completamente e totalmente falsa essa tese de que o mundo vai acabar com base em algo que estaria disponível. Não há nenhuma base científica e epigráfica que diz que o mundo vai acabar nesta data."

O que aconteceu com os maias? 

Outra parte importante desta lenda é que, quando os exploradores europeus e conquistadores chegaram ao território dos maias, encontraram muitos assentamentos e cidades antigas abandonados.

Isso criou uma falsa visão de que o povo maia desapareceu sem deixar vestígio, aumentando o mistério e especulação sobre essa civilização.

A verdade é que os herdeiros diretos da cultura maia ainda existem, vivendo na mesma terra que os seus antepassados.

Muitas vezes, vivem em condições de marginalização e pobreza no sul do México, Guatemala, Honduras e Belize.
Jornal O Estadão

Notícias História Viva

Faraó Ramsés 3º morreu com golpe na garganta, afirma pesquisa

REINALDO JOSÉ LOPES

Um crime que prescreveu há mais de 3.000 anos finalmente foi elucidado: o faraó Ramsés 3º foi mandado para o Outro Mundo por meio de uma facada na garganta, afirmam pesquisadores.

A conclusão vem de uma detalhada análise forense da múmia do monarca egípcio, despachado para o reino dos mortos no ano 1155 a.C., provavelmente. O estudo, que incluiu tomografias computadorizadas e análises de DNA, está na revista médica "BMJ".
France Presse 
Múmia do faraó Ramsés 3º

A partir da leitura de um antigo texto egípcio, o chamado Papiro Judicial de Turim, já se sabia que Ramsés 3º tinha sofrido um atentado em seu harém. Os responsáveis parecem ter sido uma das esposas dele, a rainha Tiy, e o filho do casal, Pentawere.

O papiro, porém, dava a entender que o faraó havia conduzido o julgamento dos traidores -o que a tomografia indica ter sido impossível.

É que o golpe de faca cortou a traqueia, o esôfago e uma série de vasos sanguíneos grandes, chegando até a raspar uma das vértebras do pescoço. A morte do rei deve ter sido instantânea.

A análise de DNA do estudo comparou, além disso, o cromossomo Y (a marca genética da masculinidade) do faraó com a múmia de um homem misterioso, achada no mesmo complexo real onde Ramsés 3º foi enterrado.

Resultado: o mesmo cromossomo. Juntando isso ao fato de que o homem não identificado morreu por volta dos 20 anos de idade, os cientistas especulam que se trate de Pentawere, o príncipe traidor de seu pai.

A equipe do estudo foi liderada por Zahi Hawass, ex-czar de antiguidades do Egito, e pelo paleopatologista Albert Zink, da Academia Europeia em Bolzano, Itália.
Jornal Folha de S. Paulo

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O baião de Luiz Gonzaga na sala de aula

No centenário do nascimento de Luiz Gonzaga, faça a turma dançar e se encantar com o ritmo nordestino que ganhou o País e há mais de 60 anos influencia a MPB

Elisângela Fernandes (novaescola@atleitor.com.br)



Engana-se quem pensa que o Baião é coisa do passado. Muito pelo contrário, ele segue vivo e influenciando a Música Popular Brasileira até hoje. E como o próprio criador do gênero cantou "Luiz Gonzaga não morreu / Nem a sanfona dele desapareceu". Isso porque desde que foi criado em 1946, sua batida está presente, direta ou indiretamente, em todos os movimentos musicais que surgiram em seguida.

Nascido em 1912, o filho mais ilustre da cidade de Exu, no sertão pernambucano, ganhou o Brasil após conhecer um dos seus mais importantes parceiros: o advogado cearense Humberto Teixeira. É deles a música Baião, que marca o nascimento do gênero: "Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/ E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção". Depois desse manifesto, Gonzaga estourou, vendeu milhares de discos e colocou o nordeste no cenário da MPB.

O Rio de Janeiro era um terreno fértil para a divulgação da música nordestina e do forró nas suas mais diferentes variações como baião, chamego, xaxado, xote e o coco. Nas décadas de 1940 e 1950 o rádio era o meio de comunicação mais popular no País. Além disso, a intensificação do processo de migração que trouxe milhares de nordestinos ao sul e sudeste do país.

Não há dúvidas de que Lua, como Gonzaga também ficou conhecido, é um dos construtores da MPB. "Ele não foi só um instrumentista ou um compositor. Gonzaga definiu um gênero musical e sintetizou como ninguém a cultura nordestina" exalta o jornalista e historiador, Paulo César de Araújo, autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não. Antes dele, outros nordestinos tentaram, mas nenhum conseguiu a projeção nacional de Gonzagão.

Para o sociólogo alemão Norbert Elias, o êxito alcançado por um artista não pode ser atribuído apenas à sua suposta genialidade. O resultado depende de inúmeras variáveis, articuladas entre si, em um determinado contexto social. "O rei do Baião estava no lugar certo, na hora certa", afirma Maria Sulamita de Almeida Vieira, professora da Universidade Federal do Ceará e autora de Luiz Gonzaga, o Sertão em Movimento
Revista Nova  Escola

Luiz Gonzaga



Ilustração: Werner Schulz

No ano do centenário de Luiz Gonzaga, o baião, gênero que consagrou o sanfoneiro, mantém destaque no cenário musical e mostra que permanece vivo na MPB

“Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/ E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção”. Depois desse manifesto lançado na canção Baião, ninguém ficou alheio ao novo gênero que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira acabavam de apresentar em 1946. O ritmo estourou, conquistou multidões, colocou o Nordeste no cenário da música popular brasileira e ainda hoje influencia gerações.

A canção foi gravada pela primeira vez pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa, da gravadora Odeon. A participação de Gonzaga, ou Lua, como era conhecido, restringiu-se a acompanhar o grupo com sua sanfona. A música estourou e, em 1950, Lua gravava a sua versão. Assim, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira consagravam-se o rei e o doutor do baião, respectivamente.

Apesar do sucesso, Lua não foi o primeiro a levar a música nordestina para o sul do país. Antes dele, outros tentaram. Exemplo disso é o sucesso Luar do Sertão, consagrada composição de João Pernambuco com letra de Catulo da Paixão Cearense. Além de Lauro Maia, maestro e compositor cearense, que introduziu o balanceio, ritmo produzido pelos conjuntos de zabumba, sanfona, pífaro e triângulos do Nordeste. Mas nenhum deles alcançou a mesma projeção de Luiz Gonzaga.

O rojão, como também é chamado o gênero criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, nasceu da tradição popular, de um pequeno trecho musical executado pelas violas dos repentistas durante os intervalos entre um e outro desafio ou à espera da inspiração, como explica o historiador José Ramos Tinhorão no livro Pequena História da Música Popular – Da Modinha ao Tropicalismo (Art Editora, 1986). 

“Quando eu toquei o baião para ele (Humberto Teixeira), saiu a ideia de um novo gênero. Mas o baião já existia como coisa do folclore... O que não existia era uma música que caracterizasse o baião como ritmo”, declarou Lua à revista Veja, em 1972, sobre o processo de estilização do novo tipo de canção popular e, principalmente, como ritmo de dança. 

Momento certo
A partir da década de 1950, o processo de migração crescia de forma acelerada e, duas décadas depois, o Brasil era um país urbano. Nesse contexto, Gonzaga encontrou o momento e contexto favoráveis à divulgação da música nordestina: o baião, o xaxado, o coco, o xote... 

“Ele trouxe um novo modo de olhar para o sertão, o Nordeste, a cidade, a migração e a condição do migrante”, explica a professora da Universidade Federal do Ceará e autora de ?Luiz Gonzaga, o Sertão em Movimento (Editora Annablume, 2000), Maria Sulamita de Almeida Vieira. A música Lá no Meu Pé de Serra, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, demonstra como a dupla falava diretamente aos milhares de nordestinos que deixavam a sua terra natal. Lá no meu pé de serra/ deixei ficar meu coração / Ai, que saudades tenho/ Eu vou voltar pro meu sertão...

Não foram poucos os músicos que contribuíram para levar o forró nordestino ao grande público. Armados com a santa trindade do baião: sanfona, zabumba e triângulo, inúmeros trios surgiram e seguiram o exemplo de Luiz Gonzaga. E o seu reinado só cresceu. A cantora Carmélia Alves foi aclamada como a “rainha do baião”. Claudete Soares tornou-se a princesa e Luiz Vieira, o príncipe do baião.


Foto: Arquivo Dominique Dreyfus/Editora 34/Divulgação

Repercussão internacional
O baião também rompeu fronteiras nos anos de 1950, em especial por conta de O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953), que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes como melhor filme de aventura e também menção honrosa pela trilha sonora, que entre outras trazia a toada Muié Rendera, música de Zé do Norte, interpretada por Vanja Orico. 

Na mesma década, o compositor norte-americano Burt Bacharach veio ao Brasil acompanhando a atriz alemã Marlene Dietrich. “Ele ouviu o baião e se encantou. Entre suas canções de sucesso dos anos de 1960 está Do You Know The Way to San Jose. É muito forte a presença do baião. Só falta o triângulo”, comenta o jornalista e historiador, Paulo César de Araújo, autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não (Editora Record, 2005). 

O baião instrumental de Waldir Azevedo, Delicado, teve cinco versões gravadas em Buenos Aires, vendendo mais de 130 mil cópias em toda a Argentina, segundo Tinhorão. A música também passou a fazer parte do repertório dos maestros norte-americanos Stan Kenton e Percy Faith. 

Considerado um grande divulgador do novo gênero, Humberto Teixeira buscou promovê-lo no exterior, levando à Europa caravanas de músicos brasileiros, mas sem grandes resultados. Como analisa Tinhorão, o ritmo estilizado por Luiz Gonzaga (assim como ocorreu com a Bossa Nova) não tinha condições de competir com a indústria norte-americana de discos e com a novidade do rock, que tinha em Elvis Presley seu maior ícone. Somente na década de 1980, Gonzaga, já consagrado pelo público e pela crítica, iria apresentar sua obra nas grandes casas de espetáculo de Paris.


Pra onde tu vai, baião?


Depois de rodar o país e fazer muito sucesso, o fim dos anos de 1960 não trouxe bons ventos ao baião. O rádio já estava em declínio. Começava a era da televisão. E, no Brasil desenvolvido, urbano, propagado por Juscelino Kubistchek, a música nordestina perdeu espaço.

Outro nordestino, esse de Juazeiro, na Bahia, entrava em cena e já anunciava que algo novo estava por vir. Era João Gilberto, que em 1959 lançou Chega de Saudade, seu primeiro disco com duas músicas: a que dá nome ao álbum e Bim Bom: “É só isso o meu baião / E não tem mais nada não / O meu coração pediu assim, só...”.

Além da Bossa Nova, que chegava com força, havia ainda os cabeludos da Jovem Guarda. Sem espaço na TV, nos jornais e nas rádios das capitais, Luiz Gonzaga se refugiou no interior do país, onde sua música ainda era valorizada. Gravou, vendeu disco, tocava em circos, comícios e ganhou menos dinheiro, mas não sem reclamar: “Pra onde tu vai, Baião? / Eu vou sair por aí / Tu vais por que, Baião? / Ninguém me quer mais aqui”, canção de Sebastião Rodrigues e de João do Vale. 


Foto: Divulgação

Este último já havia sido parceiro de Lua em 1957, com O Cheiro de Carolina e mais tarde seria reconhecido com suas músicas de protesto, em especial por Carcará, que teve interpretação brilhante de Maria Bethânia no teatro Opinião, ao abordar o tema da migração dos nordestinos.

Outro exemplo de resistência foi o Xote dos Cabeludos, de Gonzaga e José Clementino: “Atenção senhores cabeludos / Aqui vai o desabafo de um quadradão / Cabra do cabelo grande
Cinturinha de pilão / Calça justa bem cintada / Costeleta bem fechada Salto alto, fivelão / Cabra que usa pulseira / No pescoço medalhão / Cabra com esse jeitinho / No sertão de meu padrinho / Cabra assim não tem vez não...”.

O baião demorou a ser valorizado. Na avaliação de Paulo César de Araújo, Gonzaga alcançou grande sucesso popular, ficou na memória afetiva das pessoas, vendeu muitos discos, mas o reconhecimento por uma elite intelectual veio quando ele já era sexagenário. “O bom era a Época de Ouro da MPB, que vai de 1930 a 1945, com nomes como Noel Rosa, Wilson Batista, Cartola e Nelson Cavaquinho. Quando surge a Bossa Nova, em 1959, o baião ficou no meio, entre a tradição e a modernidade. Com isso passou a ser tratado como um momento menor da nossa música”, lamenta o jornalista. 


A volta da Asa Branca

Mas, se o próprio João Gilberto citou o baião ao lançar a sua bossa, talvez nem tudo estivesse perdido para Luiz. No final da década de 1960, os festivais traziam novos nomes, muitos deles do Nordeste, que foram influenciados pelo furacão Luiz Gonzaga. 

“Ele foi para o Brasil o que Elvis foi para os americanos. Sem dúvida, ele é um dos gigantes da nossa música. Está no mesmo patamar que João Gilberto e Pixinguinha”, compara Paulo César. Em 1968, os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil já traziam Luiz Gonzaga em sua memória afetiva e o declararam em diversas entrevistas. Com isso, o baião ganhou o aval de dois jovens expoentes da MPB. 

Além disso, um boato do jornalista Carlos Imperial contribuiu para que o velho Lua voltasse à mídia. Circulava a notícia de que os Beatles haviam regravado Asa Branca. Mas quem retomou o clássico foi Caetano Veloso, ao lançar na Inglaterra o seu primeiro disco concebido e gravado no exílio. No repertório, seis canções em inglês, com exceção de Asa branca, na qual Caetano exprime profunda tristeza por estar longe do Brasil. Luiz Gonzaga e o baião voltam ao cenário da MPB. 

A semente já havia sido plantada. Isso porque a geração de músicos que surge na década de 1970 cresceu ouvindo o gênero perpetuado por Gonzaga. Na lista, destacam-se Fagner, Belchior, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Morais Moreira, Alceu Valença, Milton Nascimento, Dominguinhos, entre outros. 

Até no rock, Gonzaga vai deixar sua marca. O baiano Raul Seixas apresenta em sua música uma mistura de rock com baião, deixando clara a influência de Elvis e Gonzaga em sua obra: “Tenho 48 quilo certo 48 quilo de baião / Num vou cantar como a cigarra canta / Mas desse meu canto eu não lhe abro mão / Num vou cantar como a cigarra canta / Mas desse meu canto eu não lhe abro mão / Let me sing, let me sing / Let me sing my rock’n’roll...”.

Desde que surgiu, o baião esteve presente nos mais diferentes momentos da MPB, como na Bossa Nova, no Tropicalismo e no Pop Rock Nacional. “A música de Gonzaga continua aí, influenciando direta ou indiretamente as novas gerações”, defende Paulo César de Araújo. As músicas do rei influenciaram o movimento Manguebeat na década de 1990, com Chico Science e a Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Mestre Ambrósio, Lenine, Zeca Baleiro, Paralamas do Sucesso, Marisa Monte, Marcelo Jeneci e tantos outros. 


Homenagem ao Nordeste
Programação celebra diversidade da cultura da região de origem do rei do baião


O ano de 2012 vem coroar o centenário do nascimento de Luiz Gonzaga. Nas unidades do Sesc as comemorações já começaram com shows, culinária, espetáculos de dança, filmes e literatura. O Nordeste, que tantas vezes serviu de inspiração para Luiz Gonzaga, foi homenageado no mês de maio. 

No Sesc Santos, o chef Francisco Rebelo promoveu a degustação do pudim de tapioca e do baião de dois. “Nosso objetivo é promover a vivência da cultura nordestina e, ao mesmo tempo, homenagear o rei do Baião”, comenta a nutricionista do programa Mesa Brasil no Sesc Santos, Fabíola Freire.

Em junho, grandes músicos vão animar as noites do Sesc Pinheiros, nomes como Alceu Valença, Trio Virgulino, Anastácia e Vanessa da Mata prestarão sua homenagem ao rei do baião. Outro destaque da programação é a conversa com o escritor e pesquisador Onaldo Quiroga sobre a vida e obra do cantor e compositor Luiz Gonzaga. 

Quem gosta de dançar não pode perder Os Ritmos de Gonzagão. No repertório uma diversidade de ritmos: baião, forró, choro, maracatu nação, coco, xaxado, marcha, frevo, ciranda, boi, xote, caboclinhos e quadrilha.
Para os cinéfilos, o Sesc Santo André exibe no mês de julho Labirinto do Brasil (2004), documentário sobre a vida de Glauber Rocha; Pan-cinema Permanente (2008), sobre as composições de Waly Salomão, com os tropicalistas Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia; e O Homem que Engarrafava Nuvens (2008), documentário musical que conta a vida de Humberto Teixeira. 

A trajetória do rei

Luiz Gonzaga foi responsável por difundir o baião e a cultura nordestina pelo Brasil afora

O caminho do futuro rei do baião, Luiz Gonzaga – nascido em Exu, sertão de Pernambuco em 1912, e conhecido como Lua –, começou a ser traçado quando ele deixou de servir o exército depois de nove anos e passou a ganhar a vida com a sanfona. Em 1939, nos bares do Mangue, bairro mais “quente” do Rio de Janeiro, tocava de tudo, de blues a fox trot.

Um dia, um grupo de cearenses pediu que apresentasse alguma coisa lá do seu pé de serra. O sanfoneiro atendeu aos pedidos e fez grande sucesso. Daí em diante, voltou às suas origens nordestinas e passou a incluir no repertório tudo o que aprendeu com seu pai, Januário – o sanfoneiro mais famoso de Exu.

Em 1941, gravou o primeiro disco pela RCA Victor e quatro anos depois já tinha seu próprio programa na Rádio Nacional. Apesar do sucesso, seus discos ainda eram todos instrumentais. Somente em 1946, após simular um contrato com a Odeon, conseguiu o aval de sua gravadora para também cantar.

Lua já fazia sucesso com Dezessete e Setecentos e Dança Mariquinha, feita com a parceria de Miguel Lima. Mas o que ele queria mesmo era encontrar um parceiro ideal para dar cabo de um objetivo: cantar as coisas do Nordeste. E, apesar do talento, Miguel não era essa pessoa.

Para seguir com seus planos, Gonzaga propôs uma parceria com Lauro Maia. Ele não aceitou, mas recomendou que procurasse seu cunhado, o advogado cearense Humberto Teixeira. Quando se encontraram, em apenas dez minutos, os dois compuseram No Meu Pé de Serra. “Eu senti que estava nas mãos do autor que sempre sonhara”, disse Luiz à jornalista francesa Dominique Dreyfus, autora de Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga (Editora 34, 1996).

A parceria rendeu muitos sucessos, como Assum Preto, Juazeiro e Asa Branca. Lançada em 1947, esta última, sem dúvida, tornou-se a música mais famosa de Gonzaga, reconhecida por sintetizar o drama da seca e a saudade do migrante nordestino, e rendeu ao rei do baião a participação no filme Este Mundo é um Pandeiro (1947), de Watson Macedo.

Depois do sucesso de Asa Branca, no final da década de 1940, Luiz Gonzaga seguiu para Exu, sua terra natal. De passagem no Recife, um futuro médico o procurou. Era Zé Dantas com a música Vem Morena, que deixou o rei do baião encantado. Com medo de perder a mesada do pai, que pagava a faculdade de medicina, ele pediu que seu nome fosse ocultado pelo sanfoneiro. Anos mais tarde, já no Rio de Janeiro e trabalhando no Hospital do Servidor, Zédantas – como assinava suas músicas – não largou a medicina nem a música.

Enquanto isso, a parceria de Gonzaga com Humberto Teixeira já não era a mesma. Este assumia, em 1952, o cargo de deputado. Nessa época era lançado o último disco assinado pelos dois, com as músicas Respeita Januário e Légua Tirana. Era a hora e a vez de Zédantas. O trabalho em conjunto resultou em muitos sucessos, como O Xote das Meninas, Sabiá, Riacho do Navio.

“Essa parceria trouxe elementos de crítica social e do protesto”, avalia o jornalista e historiador Paulo César de Araújo, ao citar A Volta da Asa Branca e Vozes da Seca: “Seu doutô os nordestinos / Têm muita gratidão / Pelo auxílio dos sulistas / Nesta seca no sertão / Mas doutô uma esmola / A um home qui é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão...”.

Depois de passar um período quase esquecido, o rei foi reconhecido por grandes nomes da MPB, recebeu homenagens e gravou muitos duetos com seus discípulos, como Carmélia Alves, Dominguinhos, Elba Ramalho, Fagner e Milton Nascimento. Apresentou-se em Paris no Zénith, Olympia e na Grande Halle de La Villette. Em 1984, recebeu o Prêmio Shell, com o qual, antes dele, somente Pixinguinha, Dorival Caymmi e Tom Jobim haviam sido agraciados.

E voltou a gravar músicas inéditas e fazer sucesso com elas, em especial com os discos Tá Danado de Bom e Forró de Cabo a Rabo. O rei do baião faleceu em 1989. Mas como ele mesmo cantou: “Luiz Gonzaga não morreu / Nem a sanfona dele desapareceu...”.

Em 2012, em homenagem ao seu centenário, deve ser lançado, no segundo semestre, Gonzaga – de Pai para Filho, novo longa de Breno Silveira, mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco (2005). O filme pretende retratar a relação entre o sanfoneiro Luiz Gonzaga e seu filho, o cantor e compositor Gonzaguinha (1945-1991).
Revista Problemas Brasileiros

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Luiz Gonzaga - Regional e pop


Criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o baião misturou ingredientes rurais e urbanos para vencer no competitivo mercado de música dos anos 1940.

Braulio Tavares

Quando se fala em música brasileira, o nome de Luiz Gonzaga (1912-1989), o “Gonzagão”, é sempre lembrado como um símbolo da cultura dos nordestinos do interior. Seu forró fala da vida simples do homem rural do Nordeste: a plantação, o gado, os namoros, a seca freqüente, as chuvas difíceis e bem-vindas, as danças, as festas de São João. Todo o universo sertanejo está ali representado.

Gonzagão é tudo isso, sem dúvida. Mas no momento histórico em que surgiu, e dentro do que era a indústria fonográfica brasileira daquela época, a partir de 1940, sua arte ganha um sentido diferente. Não é uma música rural pura, autêntica, trazida intacta para ser mostrada na cidade grande. Pelo contrário: trata-se de uma expressão urbana, criada no Rio de Janeiro, fruto de um projeto cultural deliberado que surgiu antes mesmo da composição das canções propriamente ditas. Voltado para um Brasil que comprava discos em 78 rotações e escutava programas de rádio, o baião pode ser considerado a primeira manifestação pop da música nordestina.

O ritmo é um produto da criatividade e da ambição de dois jovens. Foi criado por Gonzaga em parceria com o advogado e poeta Humberto Teixeira (1915-1979), a quem ele procurou em seu escritório no Rio, em 1945. Nessa época, o sanfoneiro já era conhecido no competitivo meio musical carioca. Na cidade desde 1939, tinha se apresentado em muitos programas de calouros, participara de gravações com grupos musicais e cantores de destaque, tocava com freqüência nas principais casas noturnas do centro do Rio (como o Assírio) e já gravara vários discos como instrumentista. Era um talento que começava a se firmar, mas sentia que precisava criar algo com mais impacto.

Ao procurar Humberto Teixeira, Luiz Gonzaga tinha a idéia de criar um movimento musical com perfil tipicamente nordestino. Na sua mente, estavam bem claros os principais elementos para concretizar o projeto. O primeiro era a sanfona, que ele, exímio instrumentista, iria utilizar para compor e tocar canções baseadas nas melodias do fole de oito baixos – que animava os forrós sertanejos e era o instrumento tocado por seu pai, Januário. Gonzaga adotou a sanfona de 120 baixos. Comparada ao fole, era o que hoje chamaríamos de instrumento de última geração. O contraste entre a moderna sanfona tocada por Gonzaga e o fole, instrumento do seu pai, é comentado com bom humor no xote “Respeita Januário”. A canção descreve o retorno de Luiz ao sertão, depois de ficar famoso. Nos versos de Humberto Teixeira, Januário ironiza a fama do filho e observa que seu fole tem apenas oito baixos, mas ele toca em todos os oito, ao passo que a sanfona de Luiz tem 120, mas ele só toca em dois...

O segundo elemento era a letra. Os forrós sertanejos eram animados quase sempre por música instrumental. As pessoas iam ali para dançar, não para escutar canções. Além dos temas instrumentais, também surgia um grande número de canções folclóricas, que estavam na memória de todos e eram cantadas em conjunto, mas não havia ali – como havia no Rio de Janeiro – a figura do compositor profissional, compondo canções para um público específico. Gonzaga queria se tornar esse compositor, mas como não se considerava fluente na expressão poética, chamou Humberto Teixeira para levar a idéia adiante como seu parceiro.

Até o figurino foi escolhido a dedo. Gonzaga costumava se apresentar nos programas de calouros da época, que aconteciam nos auditórios das rádios. Munido de sua sanfona, vestia roupas comuns: calça e camisa, de vez em quando um terno. Ele percebeu que vestindo o gibão de couro e o chapéu enfeitado dos vaqueiros – que lembravam também a indumentária dos cangaceiros da época, muito difundida nas fotos dos jornais –, atrairia muito mais atenção pelo exótico da sua figura. E estava certo.

Por fim, cuidou de criar um ritmo próprio, de cadência hipnótica, envolvente, ao qual deu o nome de “baião”. O termo era usado pelos cantadores de viola do Nordeste para designar o ponteio que executavam durante os seus improvisos e desafios. Para a marcação desse ritmo, Gonzaga fixou o formato do grupo musical que se consagrou a partir daí: sanfona, zabumba e triângulo. Ele deve ter sido o primeiro a introduzir na música profissional o triângulo de metal, percutido com uma vareta também de metal, muito usado nas ruas do Nordeste pelos vendedores de “cavaco chinês”, uma espécie de biscoito popular em forma de cone, muito fino e quebradiço.

O baião tornou-se, assim, uma mescla de elementos rurais e urbanos, tradicionais e contemporâneos. Não era uma forma de música nordestina que ao chegar ao Rio de Janeiro foi transportada integralmente para os discos e os shows. Foi uma criação de nordestinos já radicados havia muitos anos no ambiente carioca. Nordestinos aculturados lutando pela sobrevivência profissional, mas já integrados ao meio. Humberto Teixeira, por exemplo, morava no Rio desde os 15 anos. 

Tanto é assim que as canções clássicas de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira (e mais tarde com seu outro grande parceiro, Zé Dantas, 1921-1962) se referem todas ao sertão como um lugar distante. São canções de migrante, nas quais a terra natal é indicada por um “lá”, distante e saudoso. “Lá no meu pé de serra /deixei ficar meu coração” (“No meu pé de serra”). “Hoje longe muitas léguas / na mais triste solidão...” (“Asa Branca”). “Ai ai, eu vou-me embora, vou voltar pro meu sertão” (“A volta da Asa Branca”). “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó... / A maleta era um saco / e o cadeado era um nó...” (“Pau-de-Arara”). “Foi aí que eu vim-me embora, carregando a minha dor.../E hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina...” (“Paraíba”). E muitas e muitas outras. Canções feitas na metrópole para celebrar essa terra do sonho distante. 

O baião é nordestino em seu espírito e essência, mas é carioca de nascimento. Com as características que tem, só poderia ter surgido no Rio de Janeiro, que nos anos 1940, ainda capital da República, rivalizava com São Paulo como grande pólo de atração de migrantes em busca de oportunidades. Anos de experiência como músico de cabarés da Lapa e de bares da “zona” do Mangue deram a Luiz Gonzaga uma informação musical variada, inacessível aos sanfoneiros de pé de serra, para não falar no seu aprendizado de diferentes ritmos e recursos técnicos, durante os nove anos em que viajou pelo Brasil servindo no Exército. Ensinaram-lhe também a conhecer a mentalidade e as expectativas do público. Mostraram-lhe como poderia marcar presença num mundo competitivo, em que as oportunidades de aparecer – como no caso dos programas de calouros – eram escassas e ferozmente disputadas. Seu baião, expressão mais autêntica da música nordestina, foi inventado no Rio “para carioca ver”. O que não diminui em nada, é claro, sua riqueza como música e sua verdade como expressão social. 

A novidade obteve sucesso imediato no rádio, que se refletiu na quantidade (e na vendagem) dos discos lançados por Gonzaga. A primeira música de grande impacto foi a gravação do grupo Quatro Ases e um Coringa para “Baião”, em 1946. Era a canção que apresentava ao público o novo ritmo: “Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião/e quem quiser aprender é favor prestar atenção...”. No ano seguinte saiu “Asa Branca”, que acabou se tornando a canção-símbolo da obra de Gonzaga e da própria música nordestina. É uma canção típica de migrante saudoso: “Quando o verde dos teus olhos / se espalhar na plantação / eu te asseguro, não chore não, viu? / Que eu voltarei, viu, meu coração...”. Os sucessos vieram em fila: em 1947, “No meu pé de serra”; em 1949, “Juazeiro” e “Mangaratiba”; em 1950, “Paraíba”, “Assum Preto”, “Que nem jiló”, “Baião de Dois”, “Forró de Mané Vito” e “Cintura fina”; em 1951, “Boiadeiro” e “Estrada do Canindé”; em 1952, “Acauã”.

Entre 1945 e 1955, no Brasil inteiro se cantava o baião. Carmélia Alves, Isaura Garcia, Ivon Curi, Marlene, Emilinha Borba, Carmen Miranda, Ademilde Fonseca, Dircinha Batista – os principais intérpretes da época aderiram ao novo ritmo, intensamente divulgado pelo rádio e também pelo cinema brasileiro, que vivia um momento de ascensão com as comédias musicais, ou “chanchadas”. 

A trajetória do baião foi desde os sítios humildes do interior de Pernambuco até as rádios cariocas e as paradas de sucesso estrangeiras. O novo ritmo foi assimilado também por compositores sem origem nordestina, mas com musicalidade bastante para sentir-lhe as possibilidades rítmicas e melódicas. Surgiram canções como “Delicado”, de Valdir Azevedo (1951), e “Baião Caçula”, de Mário Gennari Filho (1952), e na Itália, o “Baião de Anna” (também conhecida como “El Negro Zumbón”), de Roman Vatro e Franco Giordano, cantado por Flo Sandons e dublada por Silvana Mangano no filme “Anna” (1951). Essa trajetória reproduz um fenômeno muito freqüente na música feita no Brasil. É o encontro da criatividade do mundo rural com a produtividade do mundo urbano. Até meados do século XX, a população brasileira era mais rural do que urbana; desde então, essa proporção se inverteu. A predominância do urbano se deu em grande parte devido à migração maciça de pessoas que saem do interior para viver nas cidades. O resultado é que, mesmo no meio urbano, a cultura de boa parte de seus habitantes tem origens rurais. Isto pode ser visto com clareza na proporção de nordestinos que habitam a periferia de São Paulo e os morros do Rio de Janeiro. 

A música viaja junto com os migrantes. Em seu lugar de origem, cantar e tocar são atividades de lazer, e a remuneração do músico é precária. Na cidade, esses artistas entram em contato com o mercado. O disco e o rádio – hoje em dia, também a televisão e os espaços para shows – transformam sua música, que antes era feita por mera inspiração e para mera diversão, em música profissional. A Música Popular Brasileira vira Música Fonográfica Brasileira. 

Foi o que ocorreu com o baião. Seus criadores receberam um banho de cultura urbana e tiveram o talento e a ousadia de intervir criativamente em tudo com que se deparavam. Foram Luiz Gonzaga e Zé Dantas, possivelmente, os primeiros a usar o nome “Coca-Cola” numa letra de música popular brasileira, em “Siri jogando bola”, de 1956 (“Vi um jumento tomar vinte Coca-Cola / ficar cheio que nem bola / e dar um arroto de lascar – lá no mar...”). Um dos muitos motivos de orgulho dos nordestinos com relação ao baião e à carreira de Luiz Gonzaga é que eles provam que o homem da terra pode “vencer na cidade grande”. Gonzaga é, aos olhos da gente mais simples, um sertanejo cujo talento interferiu na vida da capital do país, modificou-lhe os hábitos, introduziu uma nova forma de cantar e de dançar, e, principalmente, chamou a atenção de todo o país para a cultura do sertão.

As circunstâncias da invenção e do sucesso do baião constituíram um modelo que seria repetido, com variantes, até hoje. Repetiu-se com Jackson do Pandeiro e sua fusão entre o coco paraibano e o samba carioca na década de 1950, tão bem-sucedida que muitos sambistas ainda hoje o consideram um dos seus. Repetiu-se com o sucesso dos nordestinos de classe média e formação universitária dos anos 1970: Alceu Valença, Fagner, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Ednardo, Belchior... Voltou a ocorrer mais recentemente com o fenômeno do Mangue Beat, criado em Recife por Chico Science e Fred Zeroquatro nos anos 1990, desta vez um movimento criado a partir do próprio Nordeste, mas com repercussão nacional. 

Atualmente, abrem-se inúmeras possibilidades criativas para essa música. Ocorrem fusões dos ritmos rurais com a eletrônica e a informática. Juntam-se, mais uma vez, a matéria-prima da cultura rural e a tecnologia transformadora das grandes cidades. Pode não parecer, mas é a mesma receita posta em prática há mais de meio século por um sanfoneiro pernambucano e um advogado cearense, aos trinta e poucos anos de idade.

Braulio Tavares é escritor, compositor e autor do livro Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular no Brasil (Editora 34, 2005).

Saiba Mais - Bibliografia:
ÂNGELO, Assis. Dicionário Gonzagueano de A a Z. São Paulo: edição do autor, 2006.
DREYFUS, Dominique. “A vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga”. São Paulo: Editora 34, 1996. 
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras (2 vols.) São Paulo: Editora 34, 1997. 
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000. 

Saiba Mais - Gravações:
GONZAGA, Luiz. “Luiz Gonzaga: 50 Anos de Chão”. Coletânea com três CDs lançada em 1996, extraída da edição original, em caixa de cinco LPs, de 1988. (Sony/BMG). 

Saiba Mais - Site:
http://www.luizluagonzaga.com.br/
Revista de História da Biblioteca Nacional