Criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o baião misturou ingredientes rurais e urbanos para vencer no competitivo mercado de música dos anos 1940.
Braulio Tavares
Quando se fala em música brasileira, o nome de Luiz Gonzaga (1912-1989), o “Gonzagão”, é sempre lembrado como um símbolo da cultura dos nordestinos do interior. Seu forró fala da vida simples do homem rural do Nordeste: a plantação, o gado, os namoros, a seca freqüente, as chuvas difíceis e bem-vindas, as danças, as festas de São João. Todo o universo sertanejo está ali representado.
Gonzagão é tudo isso, sem dúvida. Mas no momento histórico em que surgiu, e dentro do que era a indústria fonográfica brasileira daquela época, a partir de 1940, sua arte ganha um sentido diferente. Não é uma música rural pura, autêntica, trazida intacta para ser mostrada na cidade grande. Pelo contrário: trata-se de uma expressão urbana, criada no Rio de Janeiro, fruto de um projeto cultural deliberado que surgiu antes mesmo da composição das canções propriamente ditas. Voltado para um Brasil que comprava discos em 78 rotações e escutava programas de rádio, o baião pode ser considerado a primeira manifestação pop da música nordestina.
O ritmo é um produto da criatividade e da ambição de dois jovens. Foi criado por Gonzaga em parceria com o advogado e poeta Humberto Teixeira (1915-1979), a quem ele procurou em seu escritório no Rio, em 1945. Nessa época, o sanfoneiro já era conhecido no competitivo meio musical carioca. Na cidade desde 1939, tinha se apresentado em muitos programas de calouros, participara de gravações com grupos musicais e cantores de destaque, tocava com freqüência nas principais casas noturnas do centro do Rio (como o Assírio) e já gravara vários discos como instrumentista. Era um talento que começava a se firmar, mas sentia que precisava criar algo com mais impacto.
Ao procurar Humberto Teixeira, Luiz Gonzaga tinha a idéia de criar um movimento musical com perfil tipicamente nordestino. Na sua mente, estavam bem claros os principais elementos para concretizar o projeto. O primeiro era a sanfona, que ele, exímio instrumentista, iria utilizar para compor e tocar canções baseadas nas melodias do fole de oito baixos – que animava os forrós sertanejos e era o instrumento tocado por seu pai, Januário. Gonzaga adotou a sanfona de 120 baixos. Comparada ao fole, era o que hoje chamaríamos de instrumento de última geração. O contraste entre a moderna sanfona tocada por Gonzaga e o fole, instrumento do seu pai, é comentado com bom humor no xote “Respeita Januário”. A canção descreve o retorno de Luiz ao sertão, depois de ficar famoso. Nos versos de Humberto Teixeira, Januário ironiza a fama do filho e observa que seu fole tem apenas oito baixos, mas ele toca em todos os oito, ao passo que a sanfona de Luiz tem 120, mas ele só toca em dois...
O segundo elemento era a letra. Os forrós sertanejos eram animados quase sempre por música instrumental. As pessoas iam ali para dançar, não para escutar canções. Além dos temas instrumentais, também surgia um grande número de canções folclóricas, que estavam na memória de todos e eram cantadas em conjunto, mas não havia ali – como havia no Rio de Janeiro – a figura do compositor profissional, compondo canções para um público específico. Gonzaga queria se tornar esse compositor, mas como não se considerava fluente na expressão poética, chamou Humberto Teixeira para levar a idéia adiante como seu parceiro.
Até o figurino foi escolhido a dedo. Gonzaga costumava se apresentar nos programas de calouros da época, que aconteciam nos auditórios das rádios. Munido de sua sanfona, vestia roupas comuns: calça e camisa, de vez em quando um terno. Ele percebeu que vestindo o gibão de couro e o chapéu enfeitado dos vaqueiros – que lembravam também a indumentária dos cangaceiros da época, muito difundida nas fotos dos jornais –, atrairia muito mais atenção pelo exótico da sua figura. E estava certo.
Por fim, cuidou de criar um ritmo próprio, de cadência hipnótica, envolvente, ao qual deu o nome de “baião”. O termo era usado pelos cantadores de viola do Nordeste para designar o ponteio que executavam durante os seus improvisos e desafios. Para a marcação desse ritmo, Gonzaga fixou o formato do grupo musical que se consagrou a partir daí: sanfona, zabumba e triângulo. Ele deve ter sido o primeiro a introduzir na música profissional o triângulo de metal, percutido com uma vareta também de metal, muito usado nas ruas do Nordeste pelos vendedores de “cavaco chinês”, uma espécie de biscoito popular em forma de cone, muito fino e quebradiço.
O baião tornou-se, assim, uma mescla de elementos rurais e urbanos, tradicionais e contemporâneos. Não era uma forma de música nordestina que ao chegar ao Rio de Janeiro foi transportada integralmente para os discos e os shows. Foi uma criação de nordestinos já radicados havia muitos anos no ambiente carioca. Nordestinos aculturados lutando pela sobrevivência profissional, mas já integrados ao meio. Humberto Teixeira, por exemplo, morava no Rio desde os 15 anos.
Tanto é assim que as canções clássicas de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira (e mais tarde com seu outro grande parceiro, Zé Dantas, 1921-1962) se referem todas ao sertão como um lugar distante. São canções de migrante, nas quais a terra natal é indicada por um “lá”, distante e saudoso. “Lá no meu pé de serra /deixei ficar meu coração” (“No meu pé de serra”). “Hoje longe muitas léguas / na mais triste solidão...” (“Asa Branca”). “Ai ai, eu vou-me embora, vou voltar pro meu sertão” (“A volta da Asa Branca”). “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó... / A maleta era um saco / e o cadeado era um nó...” (“Pau-de-Arara”). “Foi aí que eu vim-me embora, carregando a minha dor.../E hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina...” (“Paraíba”). E muitas e muitas outras. Canções feitas na metrópole para celebrar essa terra do sonho distante.
O baião é nordestino em seu espírito e essência, mas é carioca de nascimento. Com as características que tem, só poderia ter surgido no Rio de Janeiro, que nos anos 1940, ainda capital da República, rivalizava com São Paulo como grande pólo de atração de migrantes em busca de oportunidades. Anos de experiência como músico de cabarés da Lapa e de bares da “zona” do Mangue deram a Luiz Gonzaga uma informação musical variada, inacessível aos sanfoneiros de pé de serra, para não falar no seu aprendizado de diferentes ritmos e recursos técnicos, durante os nove anos em que viajou pelo Brasil servindo no Exército. Ensinaram-lhe também a conhecer a mentalidade e as expectativas do público. Mostraram-lhe como poderia marcar presença num mundo competitivo, em que as oportunidades de aparecer – como no caso dos programas de calouros – eram escassas e ferozmente disputadas. Seu baião, expressão mais autêntica da música nordestina, foi inventado no Rio “para carioca ver”. O que não diminui em nada, é claro, sua riqueza como música e sua verdade como expressão social.
A novidade obteve sucesso imediato no rádio, que se refletiu na quantidade (e na vendagem) dos discos lançados por Gonzaga. A primeira música de grande impacto foi a gravação do grupo Quatro Ases e um Coringa para “Baião”, em 1946. Era a canção que apresentava ao público o novo ritmo: “Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião/e quem quiser aprender é favor prestar atenção...”. No ano seguinte saiu “Asa Branca”, que acabou se tornando a canção-símbolo da obra de Gonzaga e da própria música nordestina. É uma canção típica de migrante saudoso: “Quando o verde dos teus olhos / se espalhar na plantação / eu te asseguro, não chore não, viu? / Que eu voltarei, viu, meu coração...”. Os sucessos vieram em fila: em 1947, “No meu pé de serra”; em 1949, “Juazeiro” e “Mangaratiba”; em 1950, “Paraíba”, “Assum Preto”, “Que nem jiló”, “Baião de Dois”, “Forró de Mané Vito” e “Cintura fina”; em 1951, “Boiadeiro” e “Estrada do Canindé”; em 1952, “Acauã”.
Entre 1945 e 1955, no Brasil inteiro se cantava o baião. Carmélia Alves, Isaura Garcia, Ivon Curi, Marlene, Emilinha Borba, Carmen Miranda, Ademilde Fonseca, Dircinha Batista – os principais intérpretes da época aderiram ao novo ritmo, intensamente divulgado pelo rádio e também pelo cinema brasileiro, que vivia um momento de ascensão com as comédias musicais, ou “chanchadas”.
A trajetória do baião foi desde os sítios humildes do interior de Pernambuco até as rádios cariocas e as paradas de sucesso estrangeiras. O novo ritmo foi assimilado também por compositores sem origem nordestina, mas com musicalidade bastante para sentir-lhe as possibilidades rítmicas e melódicas. Surgiram canções como “Delicado”, de Valdir Azevedo (1951), e “Baião Caçula”, de Mário Gennari Filho (1952), e na Itália, o “Baião de Anna” (também conhecida como “El Negro Zumbón”), de Roman Vatro e Franco Giordano, cantado por Flo Sandons e dublada por Silvana Mangano no filme “Anna” (1951). Essa trajetória reproduz um fenômeno muito freqüente na música feita no Brasil. É o encontro da criatividade do mundo rural com a produtividade do mundo urbano. Até meados do século XX, a população brasileira era mais rural do que urbana; desde então, essa proporção se inverteu. A predominância do urbano se deu em grande parte devido à migração maciça de pessoas que saem do interior para viver nas cidades. O resultado é que, mesmo no meio urbano, a cultura de boa parte de seus habitantes tem origens rurais. Isto pode ser visto com clareza na proporção de nordestinos que habitam a periferia de São Paulo e os morros do Rio de Janeiro.
A música viaja junto com os migrantes. Em seu lugar de origem, cantar e tocar são atividades de lazer, e a remuneração do músico é precária. Na cidade, esses artistas entram em contato com o mercado. O disco e o rádio – hoje em dia, também a televisão e os espaços para shows – transformam sua música, que antes era feita por mera inspiração e para mera diversão, em música profissional. A Música Popular Brasileira vira Música Fonográfica Brasileira.
Foi o que ocorreu com o baião. Seus criadores receberam um banho de cultura urbana e tiveram o talento e a ousadia de intervir criativamente em tudo com que se deparavam. Foram Luiz Gonzaga e Zé Dantas, possivelmente, os primeiros a usar o nome “Coca-Cola” numa letra de música popular brasileira, em “Siri jogando bola”, de 1956 (“Vi um jumento tomar vinte Coca-Cola / ficar cheio que nem bola / e dar um arroto de lascar – lá no mar...”). Um dos muitos motivos de orgulho dos nordestinos com relação ao baião e à carreira de Luiz Gonzaga é que eles provam que o homem da terra pode “vencer na cidade grande”. Gonzaga é, aos olhos da gente mais simples, um sertanejo cujo talento interferiu na vida da capital do país, modificou-lhe os hábitos, introduziu uma nova forma de cantar e de dançar, e, principalmente, chamou a atenção de todo o país para a cultura do sertão.
As circunstâncias da invenção e do sucesso do baião constituíram um modelo que seria repetido, com variantes, até hoje. Repetiu-se com Jackson do Pandeiro e sua fusão entre o coco paraibano e o samba carioca na década de 1950, tão bem-sucedida que muitos sambistas ainda hoje o consideram um dos seus. Repetiu-se com o sucesso dos nordestinos de classe média e formação universitária dos anos 1970: Alceu Valença, Fagner, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Ednardo, Belchior... Voltou a ocorrer mais recentemente com o fenômeno do Mangue Beat, criado em Recife por Chico Science e Fred Zeroquatro nos anos 1990, desta vez um movimento criado a partir do próprio Nordeste, mas com repercussão nacional.
Atualmente, abrem-se inúmeras possibilidades criativas para essa música. Ocorrem fusões dos ritmos rurais com a eletrônica e a informática. Juntam-se, mais uma vez, a matéria-prima da cultura rural e a tecnologia transformadora das grandes cidades. Pode não parecer, mas é a mesma receita posta em prática há mais de meio século por um sanfoneiro pernambucano e um advogado cearense, aos trinta e poucos anos de idade.
Braulio Tavares é escritor, compositor e autor do livro Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular no Brasil (Editora 34, 2005).
Saiba Mais - Bibliografia:
ÂNGELO, Assis. Dicionário Gonzagueano de A a Z. São Paulo: edição do autor, 2006.
DREYFUS, Dominique. “A vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga”. São Paulo: Editora 34, 1996.
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras (2 vols.) São Paulo: Editora 34, 1997.
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000.
Saiba Mais - Gravações:
GONZAGA, Luiz. “Luiz Gonzaga: 50 Anos de Chão”. Coletânea com três CDs lançada em 1996, extraída da edição original, em caixa de cinco LPs, de 1988. (Sony/BMG).
Saiba Mais - Site:
http://www.luizluagonzaga.com.br/
Revista de História da Biblioteca Nacional
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