'Será que já houve uma guerra santa que foi puramente sobre religião?', diz historiador
RICARDO BONALUME NETO
Entrevista com o historiador, biógrafo e crítico britânico Nigel Cliff, formado na Universidade Oxford. Ele é autor de "Guerra Santa - Como as Viagens de Vasco da Gama Transformaram o Mundo", agora publicado no Brasil.
Por que o nome do livro é "Guerra Santa"? Você acredita que Vasco da Gama e os portugueses estavam envolvidos em um verdadeiro choque de civilizações, em vez de simplesmente iniciarem uma guerra comercial?
Nigel Cliff - Essa é uma questão complexa. Para começar, o meu título original era na verdade "A Última Cruzada: As Viagens Épicas de Vasco da Gama". Esse é o título no Reino Unido e também o título do paperback que saiu em [agosto] nos EUA. Eu concordei em chamar a edição de capa dura nos EUA de "Guerra Santa" para diferenciar de outros títulos semelhantes, mas "A Última Cruzada" representa a tese do livro com mais precisão.
Eu certamente não sugiro que houve um estado permanente de conflito entre o islã e o cristianismo nos séculos antes da viagem de Vasco da Gama. Descrevo muitos lugares --al-Andalus, Toledo, Sicília, Veneza-- onde a civilização foi elevada por um espírito de cooperação entre as religiões. O que eu sugiro é que as viagens dos portugueses eram, em muitos aspectos, o produto de quatro séculos de tentativas por parte da Europa ocidental --a maioria das quais foi sob o nome de Cruzadas-- para empurrar de volta o mundo islâmico invasor.
É por isso que eu decidi abrir o livro com os avanços do islã, o nascimento das Cruzadas na reconquista ibérica e a expulsão dos cruzados da Terra Santa. As cruzadas são geralmente descritas como tendo terminado naquele momento. Na verdade, as Cruzadas foram convocadas ao longo dos séculos 14 e 15, com crescente urgência quando os otomanos conquistaram Constantinopla, mas com pouco ou nenhum sucesso.
Acho que faz sentido chamar a missão portuguesa de "A Última Cruzada" porque, ao abrir os oceanos para o comércio e conquista europeias, isso fez pender a balança do poder mundial do islamismo para o cristianismo e marcou o início de cinco séculos de ascendência global ocidental.
É claro que a religião não foi o único fator. Motivos econômicos e políticos claramente desempenharam um grande papel, assim como a ambição pessoal. O mesmo aconteceu com os cruzados anteriores: será que já houve uma guerra santa que foi puramente sobre religião? Espero que eu tenha deixado isso claro no livro.
Dito isso, eu queria destacar o papel da fé, porque eu sinto que, em nossa época cética, fomos longe demais em atribuir motivos puramente seculares aos descobrimentos --no sentido de que alguns historiadores repudiam toda ideia de fé como pouco mais do que hipocrisia. Para mim, isso não faz sentido numa época em que a religião estava intimamente ligada com a saúde do Estado e do seu povo --particularmente nos intensamente católicos Espanha e Portugal.
Mesmo tendo em conta a expressão de devoções necessárias para ganhar o apoio papal --que era muito importante numa época em que o papa era o legislador supremo-- o registro mostra que, desde os monarcas até os marinheiros comuns, muitos portugueses estavam convencidos de que estavam fazendo a obra de Deus. De dom Manuel silenciando os céticos na corte, dizendo-lhes que estava seguindo a vontade divina, aos marinheiros da primeira viagem de Vasco da Gama agradecendo a Deus por protegê-los.
Claro que isso não é verdade para todos: a série de motivos entre os diferentes participantes entra em foco tragicômico na segunda viagem de Gama, com Gama afundando um navio repleto de peregrinos muçulmanos e insistindo que os indianos expulsem todos os muçulmanos.
Ao me focar na fé --ou melhor, na mentalidade dos cruzados-- como um ingrediente vital dos descobrimentos, eu certamente não pretendo voltar para a antiga e acrítica ideia de que as viagens eram nobres esforços missionários. Pelo contrário, essa mentalidade nascida das Cruzadas --uma mentalidade que dividiu o mundo em verdadeiros crentes e infiéis, justificando quase qualquer ato de agressão em nome de uma religião expansionista - significou desastre para os portugueses desde o início.
Quando os portugueses finalmente perceberam que a Índia não estava cheia de cristãos que esperavam para recebê-los de braços abertos, eles foram lançados à deriva em um mundo que não fazia sentido para eles. Foi precisamente porque trouxeram com eles essencialmente uma visão medieval do mundo que eles deixaram de capitalizar totalmente sobre as descobertas e deixaram o caminho aberto para outras nações colherem muitas das recompensas.
Assim, para resumir e responder a sua pergunta: eu acho que a longa disputa entre o islã e o cristianismo foi o fator essencial que deu origem às viagens portuguesas. Longe de querer lançar uma guerra comercial, os portugueses esperavam encontrar aliados cristãos no Oriente, que iriam entregar suas especiarias e ajudá-los em seu caminho, talvez até Jerusalém. Mas quando a realidade se revelou muito diferente, eles se encontraram sem querer arrastados para uma guerra comercial - e, eventualmente, como os ideais originais desapareceram, em uma série de confusas brigas locais por riqueza e poder.
Em 1509, os portugueses derrotaram uma grande invasão marítima da Índia ao largo de Diu por uma frota mameluca-gujarate. Em 1538, um cerco ainda maior pelos turcos otomanos foi derrotado lá. E em 1546 outro grande cerco pelas gujarates, incluindo muitos guerreiros turcos e árabes, foi ali derrotado. Estes episódios ocorreram antes da famosa derrota turca no Mediterrâneo em Lepanto, em 1571, que se pode argumentar que foi menos decisiva.
"Menos glamourosas e menos divulgadas, as vitórias dos portuguesas contra os muçulmanos no oceano Índico durante a primeira metade do século 16 foram historicamente de uma importância muito maior", escreveu o historiador italiano Carlo M. Cipolla. Você concorda?
Bernard Lewis fez uma afirmação semelhante alguns anos atrás, sobre a repulsa do avanço otomano em Viena. "A derrota final e retirada dos exércitos do islã foi, sem dúvida devida, em primeira instância, aos valentes defensores de Viena", escreveu ele, "mas na perspectiva mais ampla foi devido a esses aventureiros cujas viagens através do oceano e ganância por ouro despertaram [a ira de seus rivais europeus]".
Você poderia estender esse argumento para incluir Lepanto. As vitórias portuguesas que você menciona são tanto psicológicas quanto físicas: elas permitiram que a Europa acreditasse que poderia flanquear o Império Otomano, que era então, é claro, a única superpotência do mundo. Elas também garantiram o acesso contínuo para navios europeus às águas da Ásia e da riqueza a ser adquirida lá. Ao remover a maior ameaça para a projeção global do poder europeu, concordo que elas foram pelo menos tão decisivas como a vitória sobre os otomanos no Mediterrâneo.
Em nosso tempo politicamente mais correto, os portugueses não poderiam comemorar a viagem de Vasco da Gama 500 anos atrás como o prelúdio para a conquista, por isso eles a nomearam um "encontro de civilizações", em 1997. Mesmo assim, os indianos não engoliram a coisa. Como é que essas polêmicas ainda podem acontecer depois de meio milênio?
Um jornalista indiano me lembrou recentemente da indignação --talvez até mesmo descrença-- com a qual a Índia respondeu ao convite de Portugal para comemorar a chegada de Vasco da Gama em suas praias.
Para mim, esta é mais uma prova do argumento que faço no livro: que a chegada de Vasco da Gama na Índia foi um ponto de viragem nas relações Leste-Oeste, abrindo o caminho para quase meio milênio de ascendência ocidental global e imperialismo --e é lembrada como tal por muitos em toda a Ásia.
Uma razão pela qual eu queria escrever este livro era resgatar Vasco da Gama da sombra de Colombo. Em um momento de islamismo redivivo e de China e Índia ressurgentes, senti que era hora de restaurar esta história na sua devida importância e compreender seu impacto na história mundial.
Seu livro cita fontes quase que exclusivamente em inglês. Foi um problema para fazer a pesquisa, sem consultar fontes em português?
Esta pergunta não faz muito sentido para mim, porque eu consultei uma grande variedade de fontes, portuguesas e em outras línguas europeias (lembrando que muitas das melhores fontes para a segunda viagem de Vasco da Gama, bem como a anterior e aos eventos que se seguiram, não estão em português).
Ao longo do caminho eu fiz ou encomendei substanciais novas traduções --em alguns casos, as primeiras traduções em inglês. Algumas das traduções dadas no meu texto são de minha autoria; em alguns lugares, eu silenciosamente corrigi traduções existentes.
No entanto, o livro foi escrito principalmente para um leitor não especialista de língua inglesa, e eu não via necessidade de retraduzir cada palavra de sua fonte original, quando perfeitamente boas versões em inglês já existem e muitas vezes têm outros méritos, como dar um sabor de época ao texto.
Quanto às referências, me pareceu muito mais útil enviar os leitores ingleses a um texto em inglês --mesmo imperfeito-- do que a uma fonte em português que provavelmente seriam incapazes de encontrar ou ler.
AUTOR Nigel Cliff
EDITORA Globo Livros
TRADUÇÃO Renato Rezende
Folha de S. Paulo
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