quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Chama incontida - Clarice Lispector


Por Teresa Montero, doutora em Literatura Brasileira pela PUC-RJ

Foi na redação da Agência Nacional que a jovem jornalista Clarice Lispector entrou no mundo literário, pelas mãos de seu colega, o romancista e poeta Lúico Cardoso, dotado de uma personalidade enigmática e sedutora.

Clarice não resistiu aos seus encantos e percebeu que Lúcio era um mundo no qual ela gostaria de viver. "Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de 'vida apaixonante'. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado."

A parceria amorosa não se concretizou, mas os laços de amizade possibilitaram a descoberta de inúmeras afinidades. Lúcio e Clarice eram daqueles tipos de autores que escreviam movidos por uma exigência íntima, da qual não podiam escapar. Para eles, viver e criar eram sinônimos.

Após a publicação de seu primeiro livro, Perto do coração, Clarice, recém-casada, mudou-se para a Europa com o marido diplomata. Nessa fase, a amizade sobreviveu por meio das cartas. Clarice falava do seu trabalho e pedia conselhos. Sempre atenta à publicação dos livros de Lúcio, gostava de comentar as suas impressões, mostrava-se uma leitora voraz e interessada.

Difícil precisar quem exerceu o papel de discípulo e quem o de mestre, e até que ponto as influências dessa relação repercutiram em seus trabalhos. Em todos os seus depoimentos, Clarice assumiu o papel de discípula, mas o que fica é a impressão de que a relação marcou o encontro de duas pessoas que se descobriram muito próximas no ver, no sentir e no viver.

Tanto que, ao falarem o que pensavam um do outro, os dois escolhiam a imagem do fogo. Dizia Lúcio: "em toda obra dessa grande escritora, alguma coisa íntima está sempre queimando: suas luzes nos chegam variadas e exatas, mas são luzes de um incêndio que está sendo continuamente elaborado por trás de sua contensão. Esse fogo é o segredo íntimo e derradeiro de Clarice."

Já Clarice, ao lembrar-se do amigo, depois de sua morte, escreveu numa crônica: "Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era sem limite para o seu galope." Essa busca incessante e ilimitada do sentido da vida, a coragem de colocarem toda a sua alma naquilo que escreveram, os uniu para sempre.


Revista Cult

Ela judia; ele, nazista

Por Fabiano Curi, jornalista e professor universitário

Uma das relações emocionalmente mais controversas entre intelectuais definitivos para o pensamento e a história do século passado foi a dos filósofos Martin Heidegger e Hannah Arendt. Os dois se conheceram na Universidade de Marburg, em 1924, quando ela era uma jovem estudante de 18 anos, e ele, um professor de destaque.

Um dos pensadores mais influentes do século 20, Heidegger ficou marcado também por sua ligação com o regime nazista, enquanto Arendt, judia, dedicou boa parte de sua importante obra ao estudo de regimes totalitários.

O engajamento político de Heidegger provocou reflexões muito sérias em Arendt, sobretudo no que diz respeito à tensão entre filosofia e política que orienta a tradição da filosofia política ocidental desde sua origem, com Platão. Por outro lado, e dado que ela nunca considerou o pensamento de Heidegger como intrinsecamente nazista, isso não lhe impediu de buscar inspiração em certos conceitos de Heidegger a fim de repensar as possibilidades da própria teoria política após a ruptura do fio da tradição.

O choque e a decepção com o engajamento de Heidegger foram importantes na definição da trajetória de seu pensamento. Até 1933, ela não tinha preocupações intelectuais a respeito da política. A partir de então, se posicionou por meio da total recusa do meio intelectual e do engajamento na ação direta de resistência ao nazismo.

Somente em 1946 ela voltaria a discutir questões estritamente filosóficas, ao publicar, já nos EUA, um texto introdutório sobe o pensamento existencial alemão. Nela, criticou o pensamento de Heidegger em Ser e tempo, acusando o conceito de autenticidade de solipsista e romântico. Em 1949 ela mudou sua avaliação, chegando a referir-se aos conceitos de Ser e tempo como contribuições decisivas para a renovação do pensamento político. A mudança certamente teve a ver com o reencontro e o reatar de laços entre os dois.

Isso não significa que Arendt dependesse intelectual e afetivamente de Heidegger. Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva do casal esteja contida em uma pequena nota que Arendt pretendia entregar a Heidegger como dedicatória ao volume de A condição humana, mas não o fez, em que ela dizia que havia "permanecido fiel e infiel" a ele, "ambas as coisas com amor".


Revista Cult

Caminhos da liberdade - Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir

Por Luís Antônio Contatori Romano, doutor em Teoria Literária pela Unicamp

Década de 1920, estudos de filosofia em Paris, Simone de Beauvoir, de formação católica, preservava relações de amizade com um grupo de estudantes certinho enquanto dirigia olhares a um estranho e hermético trio que encontrava por corredores e bibliotecas, composto por Jean-Paul Sartre, Paul Nizan e René Maheu - alunos irreverentes, de má reputação.

A amizade com Maheu foi a ponte para a futura união com Sartre. Um belo dia, Maheu entregou a Simone um desenho que Sartre lhe dedicara: "Leibniz no banho com as mônadas"; era um convite para a aproximação. Tempos depois, a jovem, cujo desejo de fuga do lar paterno era premente, entra no enevoado quarto de Sartre para estudar Leibniz com o trio de aspirantes a intelectuais. Findos os últimos exames, em 1928, Maheu retorna à província da casa paterna, Chega a vez de Sartre, que diz à Simone: "a partir de agora, tomo conta de você." Depois disso, ela passou a achar que todo o tempo que não passasse na companhia da brilhante inteligência de Sartre era tempo perdido.

Enquanto Simone se debatia com o que ainda lhe restava de formação espiritualista, Sartre buscava, por meio da literatura, uma outra forma de salvação: a sobrevida por meio da existência para o outro, seus leitores. O sentido de sobrevivência literária era para ele uma espécie de decalque da religião cristã. Assim, em seus conflitos íntimo, Simone e Sartre estavam mais próximos do que a aparência de moça bem-comportada e de rapaz iconoclasta poderia deixar transparecer.

A viagem é um traço marcante na vida de constantes descobertas que esse casal de intelectuais faz a respeito de si, a respeito do mundo, a respeito da função da escritura no mundo. Além de companheira de passeios de bicicleta pela França, Simone converteu-se em leitora crítica e interlocutora indispensável para a produção de toda a obra literária e filosófica de Sartre, enquanto este foi incansável incentivador, conselheiro técnico e temático da também extensa obra de Simone.

Embora nunca tenham vivido na mesma casa, e embora alguns de seus casos paralelos tenham durado anos, como de Simone com o escritor norte-americano Nelson Algren e o de Sartre com Dolores Vanetti, nenhum deles chegou a perturbar a estabilidade da união central. Apenas a morte do companheiro, em 1980, segundo Simone, marcaria a ruptura definitiva da união de 52 anos; diz ela no prefácio de A cerimônia do adeus: "você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma passagem.
Revista Cult

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A trajetória política de Mahatma Gandhi e a Independência da Índia


Tarsila Mancebo, Shirley Vieira, Renata Moraes, Paula Gioia, e Aline Pinto Pereira

A busca pela verdade e a não-violência foram fundamentais para a emancipação política da Índia. Mahatma Gandhi, precursor de tais idéias, foi o grande articulador deste processo. Como um homem tão franzino e tão humilde pode alcançar tamanha proeza? Conforme demonstra em Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade e em A roca e o calmo pensar, Gandhi acreditava que Deus o guiara de forma que praticasse o bem. Os caminhos percorridos foram tortuosos, mas essenciais para que ele se sensibilizasse com a situação política indiana e mobilizasse o povo a lutar pela libertação do país.
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em Porbandar, em 02 de outubro de 1869. A família pertencia à casta bania (formada por mercadores e comerciantes) e não possuía muitos bens. O avô e o pai participaram ativamente da vida política do país, exercendo cargos ministeriais. Segundo relata, o pai, Kaba Gandhi, era um homem incorruptível e tornou-se conhecido pela imparcialidade. A mãe tinha grande influência sobre seus atos, era muito inteligente e observava as leis hindus com grande fervor. O pequeno Gandhi nutria por eles muita estima e respeito, o que lhe proporcionou um caráter exemplar, assim como a abominação pela mentira. Gandhi também reteve a Bíblia como a base doutrinal de suas ações. As influências intelectuais vieram principalmente dos mestres John Ruskin – glorificação do trabalho; Henry Thoreau – dever da desobediência cívica e, principalmente, Leon Tolstoi – sabedoria cristã. Tolstoi amadureceu seu espírito, contribuindo para esclarecer pensamentos ainda confusos.
O desejo de estudar Direito na Inglaterra tornou-se uma decisão familiar, que resultou na expulsão da casta, medida que Gandhi aceitou. Na Inglaterra, sofreu grande choque cultural e sentiu vergonha de se assumir como hindu. Acreditava que, para se tornar um advogado, teria de se transformar em um verdadeiro lord inglês. Neste país, a principal experiência foi o contato com diferentes religiões – esteve aberto para qualquer uma que o convencesse – o que só fortaleceu sua credulidade no hinduismo.

O retorno à Índia mostrou-se frustrante, pois sua extrema timidez, aliada ao desconhecimento das leis indianas, o deixou inseguro. Assim, não recusou a proposta de trabalho na África do Sul – onde sofreu na pele a discriminação vivida por indianos e negros, assim como as limitações impostas pela hierarquia social daquele país. Ao perceber que o problema racial sul-africano estava muito mais entranhado naquele cotidiano do que poderia imaginar, prolongou a estada na África do Sul, a fim de combater pacificamente o racismo e defender os direitos dos indianos. Foi neste contexto que percebeu a importância de se assumir enquanto indiano. Organizou a comunidade indiana local e implementou trabalhos comunitários que melhorassem as condições de vida daquele povo. Com estas ações “Deus plantou os alicerces da minha vida na África do Sul e lançou a semente da luta pela dignidade dos indianos” (Gandhi: 1999, p.133). Várias conquistas sociais e politicas foram alcançadas. Como conseqüência, fundou-se em 1894 um partido político, o Congresso Indiano de Natal.
Com o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Gandhi apoiou a participação indiana na guerra, como já o fizera em conflitos anteriores travados pelo Império Britânico – mesmo contrariando alguns companheiros. Acreditava, na época, “que o Império existia para o bem-estar do mundo” (Gandhi: 1999, p.273) e que “o erro era mais de cada funcionário britânico do que do sistema inglês” (Gandhi: 1999, p.300). Esta participação ocorreu, no entanto, no quadro dos servicos de saúde (unidades de ambulância), e ainda assim, muitos a contestaram, pois qualquer envolvimento em atividades de guerra não é condizente com o ahimsa (não-violência). Gandhi reconhecia a imoralidade da guerra, mas rebatia dizendo que a violência é inerente à vida humana. Portanto, o adepto da não-violência respeitará seu voto com fidelidade, pois a mola propulsora de suas ações, argumentava, fora a compaixão (Gandhi: 1999, p. 302). Assim, interromper a guerra ou libertar os demais da dor era uma obrigação daqueles que prezavam a não-violência.
A filosofia pacifista somada às experiências de vida no exterior contribuíram para que ele desenvolvesse um novo olhar sobre a Índia. O retorno à terra natal ocorreu ainda durante a Primeira Grande Guerra, quando sua saúde esteve fragilizada. Mesmo abatido fisicamente, Gandhi dispôs-se a conhecer os problemas dos indianos e a solucioná-los da forma mais justa possível. Atuou em prol de diversos segmentos sociais explorados no seu país, e muitas vezes empregou o jejum como um instrumento de luta, sem abster-se do diálogo e da argumentação, a fim de alcançar os objetivos propostos. Suas ações baseavam-se também na ideologia do satyagrha, que engloba os princípios da não-violência e o fim da acomodação diante da dominação sofrida pelo povo.
Desta forma, as idéias de “desobediência civil” e “não-cooperação” – pilares com os quais desafiou os colonizadores – tornaram-se perceptíveis na Índia, e também difundidas mundialmente pelos meios de comunicação. Um exemplo dessa desobediência civil está na organização do boicote aos produtos ingleses. Com ele a população indiana voltou a confeccionar suas próprias roupas, rejeitando os tecidos britânicos. O ápice de sua atuação, no entanto, se deu em 1930, quando, acompanhado por adeptos, Gandhi marchou cerca de 300 quilômetros em direção ao mar para obter sal pelo poder colonialista e que, portanto, só poderia ser obtido pelas vias britânicas. Conhecido como a Marcha do Sal, o ato simbólico também atraiu e mobilizou a atenção da imprensa internacional. Gandhi foi preso, mas a Inglaterra, pressionada pela opinião pública, o libertou e também revogou a lei do monopólio do sal.

Com o passar do tempo, o movimento de descolonização se tornou ainda mais forte, principalmente no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A Inglaterra voltava as atenções para a Europa – palco dos principais combates – e Gandhi, de acordo com seus ideais, não se aproveitou da fraqueza britânica durante este período, mesmo quando as pressões internas se tornaram cada vez maiores para que a Índia conquistasse a liberdade.
Gandhi não conseguira, entretanto, solucionar divergências entre hindus e mulçumanos. Embora quisesse unir no mesmo país os seguidores das duas religiões, ao perceber a possibilidade de uma guerra civil emergente, concordou com a criação de duas nações soberanas, que, de fato, emergiram no final da década de 1940. Os hindus concentravam-se na Índia, e seus antagonistas no Paquistão. Visando uma aproximação com os muçulmanos, Gandhi dispôs-se a visitar o Paquistão, a fim de demonstrar que todos eram filhos do mesmo Deus. Entretanto, um extremista hindu, contrariado pelas atitudes inclusivas do já então Mahatma (grande alma), assassinou o líder da Índia, em 1948.
As idéias de Gandhi, entretanto, não morreram. Estão perpetuadas, entre outras obras, em Autobiografia: Minha vida e minhas experiências com a verdade e nos pensamentos de A roca e o calmo pensar. Embora ambos os livros não analisem a independência da Índia em si, por terem sido escritos antes de sua efetivação, a partir dos registros do Mahatma Gandhi é possível perceber como a filosofia da não-violência tornou-se sua principal bandeira política. Ao demonstrar como dirigiu a vida em busca do engrandecimento espiritual, destacou-se, sobretudo, como um grande homem e não como uma figura mitológica. Ao refazer este percurso, o leitor constata que a independência da Índia, assim como também a força e o carisma de Gandhi, são conseqüências de um processo no qual o que está em curso é a conquista da tão sonhada liberdade.

Cronologia

• 1869 – Nascimetno de Gandhi e em Porbandar
• 1888-1891 – Estudos de Direito em Londres
• 1893-1914 – Período em que vive na África do Sul
• 1920 – Luta pelo boicote aos produtos ingleses
• 1930 – Campanhas de desobediência civil
• 1947 – Independência da Índia
• 1948 – Gandhi é assassinado por um extremista hindu

Glossário

Ahimsa: não-violência
Satyagrha: resistência pacífica

Bibliografia

• GANDHI, Mohandas K.. Autobiografia: Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade. São Paulo: Palas Atenas, 1999.
• ____________________. A Roca e o Calmo Pensar. São Paulo: Palas Atenas, 1991.
• MARCHETTI-LECA, Pascal. “Mahatma Gandhi” In: História Viva. São Paulo: Ediouro e Segmento-Duetto, nov/2003. ano 1, nº1, pp. 22-27.
• MARTINS, Maria. Ásia Maior: Brama, Gandhi e Nehru. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1961.
• PANIKKAR, K.M. A dominação ocidental na Ásia. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1969. pp.145-167; 262-265; 317-335; 440-443.

Filmografia

• DVD ou VHS
Gandhi, de Ben Kingsley, KINGSLEYdirigido por RICHARD ATTENBOROUGH
Tempo: 191 minutos
Cor: Colorido
Recomendação: 14 anos

Links

http://www.timeforkids.com/TFK/magazines/story/0,6277,193501,00.html
http://www.sahistory.org.za/pages/chronology/special-chrono/gandhi.htm
web.mahatma.org.in

http://www.historia.uff.br/nec

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA


O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA:
DA SOCIEDADE COLONIAL AOS DIAS ATUAIS


Professora Mestra Miriam Munhoz Fernandes

É importante ressaltar que nós sempre nos enxergamos através do olhar masculino: foram os homens que durante milênios determinaram nossa forma de ser e agir, nos fazendo acreditar que sempre havia sido assim e, na sua fala nos transmitiram mentiras e preconceitos que se perpetuam até hoje. Um exemplo é o de nos fazer acreditar que mulher não é amiga de mulher. Esta é uma forma bastante sutil de dominação que , se as mães não percebem passam para suas filhas como sendo uma verdade absoluta. Ora, somos amigas daquelas pessoas com as quais temos alguma forma de identificação, independente do sexo que ela possua.

Durante muito tempo não questionamos, não agimos, não exigimos, não nos consideramos seres capazes porque nos foi incutido que éramos inferiores por não termos as mesmas condições mentais dos homens, sem a mínima capacidade de sobrevivência, se não tivéssemos ao nosso lado o pai, o irmão, o marido, o filho ou qualquer outro elemento do sexo
masculino para nos sustentar. Isso é tão forte em nossa sociedade que provavelmente, neste momento se alguma mulher esboçar o desejo de viver só, sempre haverá alguém que lamente esta opção ou que se questionará como ela irá viver sem o marido ou companheiro para ajudar no seu sustento e de seus filhos?

O interessante é que esta cultura preconceituosa e machista atravessou os séculos sem que a mulher percebesse que isto era uma retumbante mentira já que é ela quem dava a unidade familiar. Foi ela que, sustentou a família enquanto o homem se ausentava temporária ou definitivamente. Mas a fala disseminada ao longo dos séculos foi de que a mulher era frágil, sem condições de pensar, criar ou sobreviver sem o homem, servindo apenas como um grande útero.

Historicamente é um erro fazer este tipo de afirmação. Se remontarmos à Pré- História veremos que o papel representado pela mulher era tão ou mais importante que o do homem, já que cabia a ela a tarefa da coleta dos alimentos. Foi a mulher a responsável pela Revolução Agrícola; e, portanto, do fim da dependência total do Homem da
natureza.

No Brasil, logo após Portugal ter tomado posse destas terras, a mulher européia que para cá veio, teve uma liberdade invejável frente à opressão em que viviam as mulheres na Europa. Isso porque estavam em número bastante reduzido; e portanto, valorizado. As mulheres da classe mais baixa, ou seja, aquelas que não estavam destinadas a se casarem com os homens com algum tipo de posse ou riquezas, aquelas que tinham que trabalhar para viverem, poderiam ir e vir a hora que bem entendessem, poderiam escolher seus parceiros, o pai de seus filhos, se queriam ou não continuarem vivendo com quem estavam. Não havia ainda a presença da Igreja ; portanto, a sociedade era bastante flexível.

As mulheres, neste período, criavam seus filhos, os filhos trazidos pelos companheiros, os filhos dos vizinhos quando estes perdiam as mãe se os filhos que os antigos companheiros deixavam para trás quando saiam em busca de ouro. Nossa sociedade estava engatinhando, os homens que para cá vieram estavam em busca de um enriquecimento rápido. Eram verdadeiros andarilhos e, em cada local por onde passavam, deixavam a mulher que os havia recebido de braços abertos e que sabia que, mais dia ou menos dia, seria abandonada. Atualmente, na Bahia, grande parte das famílias estão compostas exclusivamente de mulheres que vivem juntas em uma mesma casa onde criam seus filhos.

Quando Portugal resolveu colonizar definitivamente o Brasil trouxe a Igreja para organizar e regrar a sociedade e para a mulher foi Imposta uma nova conduta para que fosse aceita na sociedade que surgia. Aos poucos, ela foi perdendo sua liberdade porque perdia sua autonomia econômica. Foi-lhe imposto o confinamento caseiro, como deveria se comportar em público, como deveria andar e para onde olhar (chão). Isso porque chegavam os escravos e sua mão- de- obra passava a ser desnecessária. Para ser aceita como uma mulher "direita" deveria se comportar como a Igreja determinava, senão fizesse isso não seria bem vista; e, portanto, colocada na casa das mulheres da dita vida "fácil".

O casamento oficial não existia para mais da metade da população e, em alguns lugares, como na Bahia por exemplo, 80% dos casais eram de concubinato. Até o século XIX, os casamentos que ocorriam na Igreja eram dos ricos para que suas filhas tivessem alguma proteção contra qualquer ato de seus maridos, que, muitas vezes, foram seus algozes. Como já foi citado, a mulher , desde a Antigüidade Clássica, foi vista como um grande útero. Era comum aos homens quererem antes do "casamento" uma prova da capacidade geradora da mulher. Quando ela provava ser capaz de gerar uma criança e ia então, cobrar do homem que assumisse um compromisso este a mandava se queixar para o Bispo. Daí o ditado: "Vá se queixar pro Bispo".

A sociedade tornou-se patriarcal o homem fazia o que bem entendesse com os seus familiares e agregados. Quando casavam as mulheres saíam do jugo de seus pais para entrarem no jugo de seus maridos, que faziam o que bem entendiam com suas esposas. Aquela que não gerava filhos poderia ser devolvida para sua família, mantida em casa sofrendo toda a sorte de humilhação ou mandada para um convento ou hospício (quando estes foram criados). Sempre com a ajuda da polícia que mediante pagamento de suas despesas as internavam em um desses locais.

A mulher que era a grande senhora descarregava todo o seu ódio e submissão nos corpos dos escravos e principalmente nas escravas quando ficava sabendo que seu senhor estava visitando muito seguido à senzala. Mandava cegar, arrancar a língua, retalhar seus rostos. As mulheres eram casadas muito cedo geralmente entre doze e treze anos, porque aos quinze os homens diziam que elas já tinham perdido o viço da juventude. Com dezoito anos já eram umas matronas, balofas e desdentadas. Quase nunca andavam. Para saírem na rua eram carregadas pelos escravos nas cadeiras de ruar.Segundo Gilberto Freyre, as mulheres desta época escapavam da loucura graças ao confessionário local onde expurgavam todos os seus ódios.Em nenhum outro local lhe seria permitido falar sobre seus anseios, sonhos e necessidades. Tudo seria resolvido com algumas rezas.

A Revolução Industrial trouxe uma série de transformações para a humanidade algumas boas e, outras ruins. Um dos aspectos negativos foi a corrida imperialista entre as potências industrializadas, tendo como conseqüência as guerras geradas pelas disputas de territórios. O aspecto positivo é que, com as guerras, a mulher passou a ser novamente uma personagem importante nas nações beligerantes, já que foi ela que, durante anos, sustentou a família com seu trabalho, o mesmo trabalho que, infelizmente, produziu as armas para a destruição em massa e, sem dúvida nenhuma , foi ela quem reergueu os Estados destruídos por anos de guerras.

No século XX vimos a mulher retomar seu antigo papel, voltando a ter participação ativa na sociedade encontrando seu espaço através de muita luta para adquirir seus direitos como cidadã, como trabalhadora, como mulher, como companheira, como mãe. Passando a ser vista, a ser retratada por ela e como ela é. Procurando saber, questionando e não apenas aceitando passivamente o que o homem dizia. Transformando-se em cientista, em romancista, em historiadora, metendo-se em qualquer profissão e demonstrando ser tão capaz quanto o homem. Só que temos de ressaltar: não deixou em nenhum momento de fazer o que era exigido das outras mulheres no passado, ou seja, continuou exercendo seu papel de mãe, filha, esposa, amante e amiga.

Podres no coreto


Podres no coreto
No romance ‘Incidente em Antares’, mortos-vivos pestilentos espalham pânico e denunciam a podridão da política brasileira
Maria da Glória Bordini

Como denunciar a repressão política sem correr o risco de punição? Erico Verissimo encontrou uma solução perfeita para esse dilema em seu último romance, Incidente em Antares (1971). Criou um enredo em que sete cadáveres que não foram devidamente sepultados assombravam a cidade, mais vivos do que mortos, desmascarando a hipocrisia da classe dominante e o abuso de poder dos governantes. Só mesmo personagens como esses, protegidos da repressão por seu próprio e acelerado processo de decomposição, poderiam servir de porta-vozes para as críticas políticas do autor ao governo ditatorial e opressivo do Brasil nos anos 1970. Mesmo hoje, quase 40 anos após sua publicação, o romance continua, em certa medida, espelhando o contexto político do país, em que a maioria dos casos de corrupção é rapidamente varrida para debaixo do tapete e esquecida.

Erico Verissimo começou a escrever a obra, cujo título seria A hora do sétimo anjo, em 1969. Queria denunciar o “baile de máscaras” da vida burguesa numa grande cidade. Esboçava a trama do livro quando a fotografia de uma greve de coveiros em Nova York, publicada na revista Life, despertou sua atenção. A imagem o fascinou, mas ele achou que não cabia incorporar um evento como aquele à narrativa, já que o Brasil estava sob a ditadura militar e greves seriam inverossímeis.

O país passava por um período de exceção. O governo do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), iniciado em 1969, difundia slogans políticos como o célebre “Brasil, ame-o ou deixe-o”, investia no futebol e prometia um crescimento econômico que se provou ilusório. O povo pouco sabia das guerrilhas e dos movimentos de resistência, e o mundo literário estava amordaçado, impedido de propagar ideias “subversivas” que ameaçassem o regime e corrompessem os valores tradicionais, como a família, a religião católica e a propriedade. Tentativas de rebelião eram reprimidas à força e pessoas desapareciam na calada da noite. Os jornais nada podiam noticiar, para que a população não se sentisse num país inseguro.

No dia 8 de maio de 1970, enquanto caminhava com Mafalda, sua mulher, nas colinas de Petrópolis, em Porto Alegre, Verissimo retomou a ideia da greve de coveiros. Entre um passo e outro, foi esboçando a história e, com ela, o título, Incidente em Antares. Em casa, sentou-se à escrivaninha, aceitando ou recusando os personagens que sua imaginação apresentava. Dividiu o romance em duas partes. A primeira, composta de 79 capítulos, relaciona os primórdios da cidade fictícia de Antares, os acontecimentos que ali se desenrolam e o cenário político brasileiro desde a primeira metade do século XIX até os anos 1960. A segunda, com 102 capítulos, apresenta o incidente dos mortos, que, reanimados, viriam atormentar os vivos na sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

A história de Antares remonta ao período Pleistoceno, quando criaturas antediluvianas, como gliptodontes e megatérios, andavam nas margens do que seria o futuro Rio Uruguai. Não é gratuita sua posição geográfica, acima da cidade de São Borja, mais para os lados da rude e machista campanha do que para o Leste, mais civilizado. Inicialmente chamado de Povinho da Caveira, o povoado é chefiado por Chico Vacariano. O fictício naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville visita o local em 1830, apresentando a constelação do Escorpião e a estrela Antares ao proprietário de terras Vacariano, que entende o significado do nome como “lugar onde existem muitas antas”. Encantado, assim batiza a vila em 1853. A ironia e o humor ácido se fazem presentes desde o início do romance.

Antares é uma cidade mais truculenta e modernizada do que a também fictícia Santa Fé, da trilogia O tempo e o vento, que narra a história do Rio Grande do Sul de 1680 (quando foi estabelecida a Colônia de Sacramento) a 1945 (fim do Estado Novo). Como nos romances O Continente (1945), O Retrato (1951), O Arquipélago (1962), em que os Terra combatem os Amaral, há na cidade duas famílias poderosas, os Campolargo e os Vacariano.

A cidade fora fundada por Chico Vacariano, que se tornara sua autoridade inconteste como proprietário das terras em que o Povinho da Caveira se formara. Quando Anacleto Campolargo, rico pecuarista, resolve se estabelecer no povoado, Vacariano sente sua soberania ameaçada. Ao encontrá-lo, quase enfrenta o intruso em duelo. Diz o texto: “Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios”.

Essa inimizade inicial vai aos poucos se atenuando, até ambas se aliarem para preservar suas terras e manter seus privilégios. Também chama atenção a presença do sociólogo Martim Francisco Terra e sua equipe de pesquisadores jovens, com função semelhante à do médico Carl Winter de O Continente, ou seja, de escrever sobre a cidade a partir de um olhar de fora.

Incidente em Antares não trata da ditadura no Brasil diretamente, mas, por meio da paródia, sugere como esta se tornou possível. Antares é a consequência do contexto político de Santa Fé, nos anos 1960, narrado no volume O arquipélago, que integra O tempo e o vento, preparando o golpe militar através da repressão e da corrupção que já existiam durante a ditadura Vargas, nos anos 1940. O romance espelha o cenário político brasileiro passando pelo inculto Povinho da Caveira, pelos conflitos sangrentos entre os patriarcas da cidade rural até chegar aos industrializados anos 1960, com sua prefeitura corrupta. O comportamento dos governantes, cuidando de seus interesses, sem a menor ideia de bem comum, explica a revolta dos operários, que resultaria numa greve geral e no incidente propriamente dito.

Terminada a história da formação da cidade antarense, o palco está preparado para o acontecimento macabro narrado na segunda parte do livro. Ao serem deixados em seus caixões à espera do enterro por coveiros grevistas, os mortos literalmente despertam. A matriarca dos Campolargo, Dona Quitéria, o advogado Dr. Cícero Branco, o sapateiro “Barcelona”, o maestro Menandro Olinda, o jovem operário João Paz, a prostituta Erotildes e o ébrio “Pudim de Cachaça” não se comportam como zumbis: possuem memória, continuam pensando e falando.

Embora com origens sociais diferentes, os mortos-vivos se unem em torno de um mesmo propósito. Indignados diante do descaso dos governantes, espalham sua pestilência pela cidade, visitando seus entes queridos (que nem sempre o são, como vêm a descobrir os da classe alta). Como a greve continua sem solução, ocupam o coreto da praça central, fazendo um comício público em que a podridão moral da sociedade e da política antarense é denunciada diante da população horrorizada com a decomposição progressiva dos defuntos. “A Matriz está ainda cheia de fiéis que rezam, não de joelhos, mas sentados, com os pés erguidos, por causa dos ratos que passam por baixo dos bancos e, como emissários de Satanás, escalam, irreverentes, o altar-mor”, narra Verissimo.

O autor relaciona as visitas dos mortos com as reações dos vivos, as reuniões políticas para resolver o problema, a cobertura jornalística e as tentativas das autoridades de se imporem pela força (sem efeito, já que estão combatendo cadáveres). Verissimo se vale de diversas técnicas de apresentação do enredo. O relato dos acontecimentos é feito por meio dos diálogos entre vivos e mortos, das reportagens pernósticas do jornalista Lucas Faia, do diário dolorido do progressista padre Pedro Paulo e do jornal íntimo do professor Martim Francisco Terra, autor do diagnóstico científico da cidade no livro Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira.
“Testemunhas visuais (e olfativas!) do fato são unânimes em afirmar que os defuntos se moviam de maneira rígida, como bonecos de mola a que alguém – Deus ou o diabo? – tivesse dado corda”, reportava o personagem Lucas Faia.

O Incidente provoca posições ideológicas ora convergentes, ora divergentes. Dá-se a palavra a segmentos oprimidos da população, mas os poderosos não a ouvem, perpetuando a hipocrisia. É realizado aquilo que na sociedade brasileira seria impensável numa situação de exceção: a livre exposição de ideias e de crítica. Mas os governantes de Antares conseguem apagar o evento e suas repercussões com o que chamam de “Operação Borracha”, reprimindo com ameaças qualquer manifestação que lembre os mortos-vivos e proporcionando ao povo muita distração e festa. Martim Francisco chega a receber uma carta anônima “em que um Amigo Desinteressado lhe declarava que sua vida estava em perigo”.

Incidente em Antares é um romance de levada histórica, mas absurdo no seu cerne. A ficção oferece ao leitor um retrato de seu próprio contexto, mas como se este não estivesse ali implicado. Ao mesmo tempo, faz lembrar que os incidentes de corrupção ainda acontecem e tudo o que vai mal continua sendo apagado, se não pela censura, pela sucessão de escândalos que tudo banaliza, como fazem os líderes políticos de Antares com a Operação Borracha.


Saiba Mais - Bibliografia

CANDIDO, Antonio. “Erico Verissimo de 1930 a 1970”. In: BORDINI, Maria da Glória (org.). Caderno de pauta simples: Erico Verissimo e a Crítica Literária. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2005. pp. 65-78.
MARZOLA, Norma. “Ninguém escapa à História”. In: VERISSIMO, Erico. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. Org. Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1999. p.91-105.
SILVA, Márcia Ivana de Lima e. A gênese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

Saiba Mais - DVD

VERISSIMO, Erico; NADOTTI, Nelson; PEIXOTO, Charles. “Incidente em Antares”. Minissérie em 12 capítulos, exibida em 1994. Direção geral de Paulo José. Rio de Janeiro: Rede Globo, 1994.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Ninguém pode com as 'louras'


Ninguém pode com as 'louras'
Apesar dos esforços para se restringir a ingestão de álcool no Brasil, a cerveja venceu a resistência e chegou a ser defendida por alguns médicos
Teresa Cristina de Novaes Marques

Hoje se entorna de tudo em bares, restaurantes e residências de todo o Brasil, mas houve um tempo em que alguns setores da sociedade queriam regular o consumo de bebidas alcoólicas. Na década de 1910, médicos, advogados e mulheres da elite brasileira observavam com atenção o que outros países faziam nesse sentido, e, influenciados pela Lei Seca, que começou a vigorar nos EUA em 1919, organizaram movimentos que tentaram fazer algo parecido. Mas, de tanto insistir que o problema nacional era a aguardente de cana, os autodenominados temperantes acabaram ajudando a cerveja a ser vista como um mal menor, aprofundando os estigmas sociais que recaíam sobre os pobres.

As cervejarias entenderam a situação e não se fizeram de rogadas. Começaram a divulgar que seus produtos eram feitos em moldes industriais, seguindo rigorosos critérios europeus de higiene, e que consumi-los durante as refeições era um hábito salutar. A partir dos anos 1910, tomar uma cerveja gelada logo se tornou um hábito em espaços públicos ou em grandes eventos, como a festa da Igreja da Penha, realizada no subúrbio do Rio de Janeiro em todos os fins de semana do mês de outubro desde o período colonial. (...)


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