quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ela judia; ele, nazista

Por Fabiano Curi, jornalista e professor universitário

Uma das relações emocionalmente mais controversas entre intelectuais definitivos para o pensamento e a história do século passado foi a dos filósofos Martin Heidegger e Hannah Arendt. Os dois se conheceram na Universidade de Marburg, em 1924, quando ela era uma jovem estudante de 18 anos, e ele, um professor de destaque.

Um dos pensadores mais influentes do século 20, Heidegger ficou marcado também por sua ligação com o regime nazista, enquanto Arendt, judia, dedicou boa parte de sua importante obra ao estudo de regimes totalitários.

O engajamento político de Heidegger provocou reflexões muito sérias em Arendt, sobretudo no que diz respeito à tensão entre filosofia e política que orienta a tradição da filosofia política ocidental desde sua origem, com Platão. Por outro lado, e dado que ela nunca considerou o pensamento de Heidegger como intrinsecamente nazista, isso não lhe impediu de buscar inspiração em certos conceitos de Heidegger a fim de repensar as possibilidades da própria teoria política após a ruptura do fio da tradição.

O choque e a decepção com o engajamento de Heidegger foram importantes na definição da trajetória de seu pensamento. Até 1933, ela não tinha preocupações intelectuais a respeito da política. A partir de então, se posicionou por meio da total recusa do meio intelectual e do engajamento na ação direta de resistência ao nazismo.

Somente em 1946 ela voltaria a discutir questões estritamente filosóficas, ao publicar, já nos EUA, um texto introdutório sobe o pensamento existencial alemão. Nela, criticou o pensamento de Heidegger em Ser e tempo, acusando o conceito de autenticidade de solipsista e romântico. Em 1949 ela mudou sua avaliação, chegando a referir-se aos conceitos de Ser e tempo como contribuições decisivas para a renovação do pensamento político. A mudança certamente teve a ver com o reencontro e o reatar de laços entre os dois.

Isso não significa que Arendt dependesse intelectual e afetivamente de Heidegger. Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva do casal esteja contida em uma pequena nota que Arendt pretendia entregar a Heidegger como dedicatória ao volume de A condição humana, mas não o fez, em que ela dizia que havia "permanecido fiel e infiel" a ele, "ambas as coisas com amor".


Revista Cult

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