Nas casas senhoriais do Japão antigo era comum colocarem sininhos sob o assoalho dos corredores. Era impossível pisar numa taboa do chão de um corredor sem que soassem os sininhos. Conhecendo-se a violenta história do Japão medieval, com facções em luta constante pelo poder, é fácil deduzir que os sininhos existiam para denunciar a aproximação de espiões ou assassinos. Mas o ting-ling também devia servir como alarme contra ladrões e para prevenir o flagrante de adultério. Imagine-se a senhora da casa prestes a arrancar as calças do entregador de pizzas, ou o equivalente na época, quando este levanta a cabeça e pergunta:
- Esse som de sininhos, é do templo?
- Não, é o meu marido!
O ting-ling era uma maneira prática de evitar surpresas. Mas pode-se imaginar o grau de desconfiança de uma sociedade em permanente pavor do que vem pelo corredor. Até que se revelasse quem ou o que vinha, os sininhos poderiam significar qualquer coisa, alimentar qualquer paranoia. E qualquer tilintar poderia ser confundido com o ting-ling. Um gorjeio de passarinho, um pingo de chuva no teto, um brinde com cristais, até os inocentes sininhos do templo. E um gato solto num corredor espalharia o terror pela casa toda.
No Brasil de hoje desenvolvemos uma paranoia parecida. De tanto ouvir falar em roubalheira e maracutaias nos acostumamos a equacionar política e corrupção. Tudo que vem pelo corredor é suspeito, todo ting-ling é um prenúncio de escândalo. E como no Japão antigo também vivemos em permanente estado de desconfiança. Claro que a classe política é responsável pela sua própria má reputação, mas há exceções importantes. E hoje não se rouba mais do que antes - é que antes não se ficava sabendo a metade.
O diplomata polonês Jan Karski, ligado à resistência antinazista durante a Segunda Guerra, foi o primeiro a denunciar ao mundoo que se passava em seu país. Na CH deste mês, o cientista político Renato Lessa fala sobre filme que mostra a reaçãodos interlocutores diante de seus relatos.
Por: Renato Lessa
Publicado em 31/05/2013 | Atualizado em 31/05/2013
O Gueto de Varsóvia foi o maior gueto judaico estabelecido na Polônia durante oHolocausto. Os três anos da sua existência foram marcados por fome, doenças e deportações para campos de extermínio. (foto: Ludwig Knobloch/ Wikimedia Commons)
O ano de 1942 foi marcado pela radicalização da política nazista quanto à assim chamada “questão judaica”. A marca do regime hitlerista, iniciado em 1933, foi a afirmação do antissemitismo como política de Estado. As primeiras vítimas dessa passagem ao ato do antissemitismo foram os próprios judeus alemães, progressivamente desvinculados da nação da qual faziam parte.
Esta, sob o nazismo, passa a ser definida como uma comunidade de sangue, cuja unidade em larga medida dependerá da invenção de inimigos impuros. Processoadmiravelmente registrado nos Diários do filólogo Victor Klemperer (1881-1960), um relato da continuada privação cívica, social, política e biológica da pequena comunidade judaica alemã (1% da população em 1930).
Com a eclosão da guerra, a política de Estado antissemita, estendida em 1938 à Áustria e à Tchecoslováquia, torna-se um dos eixos centrais da expansão alemã. Tem início, em termos práticos, “a destruição dos judeus europeus”, título adotado pelohistoriador Raul Hilberg (1926-2007) em obra incontornável.
A Polônia foi oprimeirolaboratório da destruição dos judeus: ali nãoapenas foram fixados os principais campos da morte, comotambém praticou-se em larga escala a política de guetos
A expansão da política antijudaica adquire dramática aceleração em 1942: em janeiro,os nazistas, na Conferência de Wansee, fixam tanto a doutrina quantoo encaminhamentoprático da “solução final da questão judaica”: Auschwitz e Treblinka introduzem na experiência humana a terrível inovação docampo de extermínio.
A Polônia foi o primeiro laboratório da destruição dos judeus: ali não apenas foram fixados os principais campos da morte, comotambém praticou-se em larga escala a política de guetos – o mais célebre foi o de Varsóvia, destruído em 1943, após heroico levante.
Em novembro do mesmo ano, Jan Karski(1914-2000), diplomata polonês ligado à resistência antinazista e a serviço do país noexílio, realiza a primeira missão consistente de denúncia ao mundo do que se passava na Polônia, aí incluídoo tratamento sem precedentes dado à população judaica.
Narrativa do horror
A narrativa da missão, pelo próprioKarski, ficou registrada em Shoah, filme magistral dofrancês Claude Lanzmann (com cerca de nove horas) sobre o Holocausto. No filme,Karski apresenta um relato vívido de suas visitas clandestinas ao gueto de Varsóvia e ao campo de passagem de Izbica Lubelska.
Anos após concluir Shoah, o cineasta lançou o admirável RelatórioKarski, com cerca de 50 minutos. O foco já não é a narrativa do que Karski viu na Polônia, mas as reações de seus interlocutores ocidentais diante do que a eles foi narrado. Por iniciativa do InstitutoMoreira Salles, foi lançada, em um conjunto de DVDs, no final de 2012, a obra maior de Lanzmann, acrescida doRelatório.
A missão incluiu contatos com os governos britânico e norte-americano. No primeiro, foi recebido por Anthony Eden, então ministro do Exterior. No segundo, Karski esteve com opresidente Franklin Roosevelt e com personalidades públicas.
Um elemento comum das conversas com Roosevelt e com Felix Frankfurter, juiz da Suprema Corte, foi a reticência de ambos diante do relato sobre os judeus poloneses. Mais que depoimento histórico, oRelatório enseja uma reflexão sobre o tema da escuta, tão caro à psicanálise.
Frankfurter não diz que Karski mente. Afirma tãosomente que o que é dito é inacreditável
Nesse particular, a conversa com Frankfurter foi exemplar. Ele mesmo judeu, o juiz diz nãoacreditar no que acabara de ouvir. Mas é preciso bem escutar essa ‘não escuta’. Frankfurter não diz que Karski mente. Afirma tão somente que o que é dito é inacreditável.
A estrutura de sua escuta não comporta a narrativa do horror do extermínio. Não se trata de negacionismo barato, e menos ainda de cumplicidade com os carrascos, mas de problema ainda mais grave: o da inadaptação da escuta humana para o extremo e oirreparável.
Coisa semelhante foi vivida pelo italiano Primo Levi (1919-1987), em suas primeiras iniciativas de revelar o que viu e passou em Auschwitz: tudo aquilo aparece comoinacreditável. Aqui reside bem a radicalidade do nazismo: pôr no mundo um experimento que os ouvidos não recolhem e diante do qual a própria linguagem colapsa.
Renato LessaDepartamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
À luz docasoEdward Snowden, envolvendovigilância em massa, a historiadora Keila Grinberg reflete, na coluna deste mês, sobre privacidade nos tempos de Google e Facebook, em que as pessoas abrem mãodela por livre e espontânea vontade.
Por: Keila Grinberg
Publicado em 21/06/2013 | Atualizado em 21/06/2013
Em tempo de conexão total, em que conversas podem ser acompanhadas em tempo real, e-mails lidos e ligações telefônicas rastreadas, nos tornamos informantes de nós mesmos, reflete historiadora. (foto: Chris Chidsey/ Sxc.hu)
Li recentemente que, depois de Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA, sigla em inglês), ter vazado informações sobre programas de inteligência do país, a venda de exemplares do livro1984, de GeorgeOrwell, cresceu mais de 7.000% nosite da Amazon.
Achei curioso. Não pela relação, algo óbvia, entre obest-seller escrito em 1948 e publicado pela primeira vez, coincidentemente, no dia 8 de junho, quando estourava oescândalo, e o evento do mês. Afinal, 1984 é justamente a história de uma sociedade na qual o controle total é exercido pelo Grande Irmão, oBig Brother.
Nós mesmos alegremente abrimos mão da nossa privacidade, continuando a usaros serviços dos gigantes da internet. Ou você viu por aí alguém protestando contrao uso do gmail?
Embora inspirado diretamente nos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, nolivro, a história se passa em uma sociedade liberal-democrática, na qual Winstom Smith, opersonagem principal, representa o cidadãocomum vigiadoo dia inteiro pelas teletelas e pelo Partido.
No romance, Smith sabe que toda atitude suspeita é passível de denúncia à Polícia doPensamento e que qualquer ato consideradodissidente pode originar uma denúncia. O que Snowden está mostrandoé que, ao usar serviços de empresas comoo Skype, oGoogle (“don’t be evil”), o Facebook e a Verizon (esta última, empresa de telefonia norte-americana), nossas conversas podem ser ouvidas em tempo real, nossos e-mails podem ser lidos, nossas ligações telefônicas podem ser rastreadas. A diferença é que ninguém precisa denunciar. Nós mesmos alegremente abrimos mão da nossa privacidade, continuando a usar os serviços dos gigantes da internet. Ou você viu por aí alguém protestando contra o usodo gmail?
Cartaz do Grande Irmão (Big Brother), personagem que exerce controle total sobre a sociedade no romance distópico de George Orwell, ‘1984’. No livro, oprotagonista Winstom Smith representa o cidadão comum vigiadoo dia inteiro pelas teletelas e pelo Partido. (imagem: reprodução)
Ironias da história
Orwell imaginou um mundo de vigilância total, mas ele mesmo viveu uma realidade totalmente diferente desta. Ao mesmo tempo em que publicava 1984, Orwell mandava sua própria lista de suspeitos de comunismo a sua amiga Celia Kirwan, que trabalhava no Information Research Department (IRD) do Foreign Office inglês. A lista contém 38 nomes de jornalistas e escritores que, segundo sua opinião, “eram cripto-comunistas”ou simpatizantes.
Claro que, como todo texto tem seu contexto de produção, a lista de Orwell também tem sua época. Ele era um importante liberal antissoviético e, em 1949, muito doente, quatroanos depois da publicação de seu libeloA revolução dos bichos, estava convencido de que a Inglaterra e os demais países ocidentais perderiam a guerra ideológica contra a União Soviética. O que, evidentemente, nãoo desculpa. Ainda mais ao sabermos que seu caderninho de anotações continha várias outras observações, como as variações pejorativas do termo “judeu” (“judeu polonês”, “judeu inglês”), chegando mesmo a se perguntar se Charlie Chaplin seria um deles (não era).
A lista e o caderninho de Orwell só tornam mais irônicoo fato de ter se tornado, post mortem – ele faleceria no início de 1950 –, o símbolo da independência política e da defesa da liberdade de pensamento contra os excessos de qualquer Estado. Quem lê1984 hoje, “um livro péssimo”, segundoo já bastante deprimidoOrwell, procura essa reflexão.
Na era da conexãototal, nós nos tornamos informantes de nós mesmos
Mas irônico mesmoé saber que Orwell foi genial ao imaginar e descrever uma sociedade que ele de fato não chegaria a conhecer, mas não teria como antever que seu caderno de anotações e suas listas de suspeitos seriam hoje desnecessários: na era da conexão total, nós nos tornamos informantes de nós mesmos.
Em tempo: a lista de Orwell pode ser consultada no Arquivo Nacional inglês, em Londres, arquivada sob o número FO 1110/189. Um bom texto sobre o assunto foi escrito por Timothy Ash na revista New York Review of Books, em 2003.
Keila GrinbergDepartamento de História Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Livroresgata a saga dosírio-libanês Benjamin Abrahão, queimigrou paraoNordestebrasileirona década de1910eentrou para a história por setornar braçodireitodopadreCíceroeter sidooúnicoa filmar Lampiãoeseu bando.
Por: Sofia Moutinho
Publicadoem 15/05/2013 | Atualizadoem 15/05/2013
O aventureiro sírio-libanês Benjamin Abrahãoexibeoequipamento da Aba Filmes ao lado de Lampião, Maria Bonita eo restante do bando. (foto: Cinemateca Brasileira)
Deuseo diabo na terra do sol. Impossível não lembrar do título do filme de Glauber Rocha aoouvir a história do sírio-libanês Benjamim Abrahão, curiosa figura que fez sua vida no sertão nordestino nos anos 1920 e 1930. O forasteiro conseguiu seu sustentose aproveitandoora do homem santo padre Cícero, ora do vilão Lampião. Nessaempreitada, ficou marcado na história comoo primeiro a documentar de perto a vida docangaço, através de fotos e filmes.
Sua rica biografia é narrada pelo historiador Frederico Pernambucanoem Benjamin Abrahão, entre anjos e cangaceiros, livro repleto de detalhes suculentos sobre a vida nosertãoe que não deixa de fora importantes marcos da política e da história da época.
Parte da história de Benjamin Abrahão já havia sido contada no filmeBaile perfumado(1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. A essa época, Pernambucano já estudava a saga do sírio-libanês e foi ele quem sugeriu o tema para os cineastas. Passados quase 20 anos, o historiador nos revela, em mais detalhes, um Benjamin Abrahãooportunista, que soube aproveitar cada chanceoferecida no Brasil.
Logo que chegou ao país, em 1915, fugido do alistamento militar para a Primeira Guerra Mundial, Abrahão usou da sua estrangeirice para conquistar a confiança depadre Cícero, então um poderosoe influente líder religiosoe político de Juazeiro, interior do Ceará. Em meio à multidão de fiéis que visitavam o ‘padim’, o sírio se destacou apresentando-se como conterrâneo de Jesus. Tornou-se secretário pessoal de Cícero.
Capa do livro de FredericoPernambucano mostra Benjamin Abrahãoe padreCícero. (foto: reprodução)
“Benjamin era um espertalhão, tão sedutor queconseguiu se instalar na casa paroquial, na época uma sede de poder importante. Lá vivia o padre Cíceroe seu braço político Bartolomeu Floro. Benjamin se tornou obraço pessoal do padre”, conta Pernambucano. “Ficaram o padreeos dois como se fossem seus ministros.”
O sírio-libanês ficou na paróquia de 1917 a 1926. Nesse período, responsável pelas muitas joias doadas por fiéis, desviou fundos para si mesmo. Circulava noluxoe na luxúria até que a morte do padre pôs fim a sua boa vida.
Pernambucano nos conta queem uma última tentativa de lucrar em cima do beato, Abrahão cortou chumaços de cabelo de Cícero já mortoe passou a vendê-los para os romeiros. Oempreendimento deu lucro até queo povo começou a desconfiar queo religioso não tinha tanto cabelo quantoestava sendo vendido.
O cangaço filmado
Sem dinheiroe desrespeitado, Benjamin Abrahão partiu para uma nova aventura. Com a chancela de ter sido braço direito de padre Cícero, foi em busca do temido VirgulinoFerreira, o Lampião. Devoto conhecido do ‘padim’, o cangaceiroestava em seu auge, controlando vários bandos pelo Nordeste, quando Abrahão lhe propôs ser seu documentarista oficial. Os dois já haviam seencontrado quandoo cangaceiro foi convencido por padre Cícero a lutar ao lado do governo contra a Coluna Prestes, quepassou pelo Nordeste por volta de 1925.
Abrahão já tinha tudo preparado. Conseguiu apoio da agência alemã Aba Filmes para filmar o cangaceiro procurado pela Justiça com uma câmera sem som de alta tecnologia para a época. Lampião, fascinado com a modernidade dos apetrechos, aceitou a proposta. Antes, porém, testou oequipamento para garantir que não se tratava de uma arma disfarçada.
Pernambucano: “Lampião viu na proposta defilmagem aoportunidade deingressar na história pela forma mais moderna quehavia então”
“Benjamim conseguiu convencer Lampião por causa doefeito mágico do cinema”, diz Pernambucano. “Naquela época, Lampiãomobilizava grossos capitais. Travava com coronéis da região que financiavam seus roubos e recebiam parte do lucro. Seu bandoera a imagem do sucesso da organizaçãofora da lei. Ele viu na proposta de filmagem aoportunidade de ingressar na história pela forma mais moderna que havia então.”
A aventura cinematográfica de Benjamim Abrahão ganhou as páginas dos principais jornais do país. Em fevereiro de 1937, ele publicou uma série de reportagens noDiáriode Pernambucoexibindo a intimidade do cangaço.
Havia fotos impensáveis de Lampião costurando, Maria bonita penteando-lheos cabelos, cangaceiros tocando gaita e comendo. O sírio-libanês anunciava para a imprensa queem breve lançaria um documentário sobre Lampiãoe seu bando.
A ideia deleera exibir o filme no Brasil e vender cópias para oexterior, onde Lampiãotambém era manchete. Mas seu sonho foi destruído pela então recém-instalada ditadura doEstado Novo, que mandou confiscar as filmagens e proibiu a exibiçãoecomercialização das películas.
“As fotos e filmes de Benjamim eram um atestado da incompetência das forças policiais e uma afronta ao Palácio do Catete”, comenta o historiador, que traduziu a caderneta em queo forasteiro sírio registrou denúncias sobre as forças policiais quematavam civis e colocavam a culpa nos cangaceiros.
Assista a trechos do filme de Benjamin Abrahão sobreo bando deLampião
Nessa época, sequências inteiras dos filmes foram destruídas.Oquerestou foi recuperadona década de1950 pela FundaçãoGetúlioVargas.Entreos filmes remanescentes, um chama atenção. Mostraorei docangaçofazendocomercial deCafiaspirina, remédiopara dor decabeça daempresa alemã Bayer.Ocangaceiroaparecedistribuindooremédiopara seu bandoem frentea um cartaz quediz: “Seé Bayer, é bom”.
Fadados à morte
Benjamin Abrahão morreu em circunstâncias misteriosas sem conseguir lucrar com seus filmes. Saiu para beber cerveja quando faltou luz na vila em queestava. Ouviram-se gritos e seu corpo foi encontradoesfaqueado dentro da casa de um homem aleijadoque confessou o crime.
Ninguém sabe quem foi o real autor do assassinato. Segundo Pernambucano, provavelmente foi alguém do povo contratado por algum coronel que queria queimar o‘arquivo vivo’ queera Abrahão. Tendo convivido com Lampião, ele conhecia todos os coronéis e policiais corruptos que ajudavam o cangaceiro.
Pernambucano: “Quem matou Benjamin foi a mesma força quematou Lampião: oPalácio do Cateteeos valores da ditadura”
Mas, para o historiador, em última instância, quem matou o sírio-libanês e também Lampião foi oEstado Novo. O fim da soberania dos estados imposta pelo novoregime nacionalista desmantelou a estratégia deocupação do cangaço, que se mantinha nas fronteiras para escapar das forças policiais que não tinham domínio para além de seus territórios.
Outroelemento apontado por Pernambucanofoi o fim da inviolabilidade do latifúndio, quefez com queos coronéis que abrigavam bandos de cangaceiros não pudessem mais impedir a entrada de policiais em suas terras.
“Quem matou Benjamin foi a mesma força que matou Lampião: o Palácio do Cateteeos valores da ditadura”, afirma o historiador. “Antes queoEstado Novoespatifasseosistema de poder do sertão, era alto negócio para qualquer fazendeiro comercializar com o cangaceiro. OEstado Novo acabou com esse colaboracionismo. A morte deBenjamin foi, sobretudo, uma queima de arquivo histórica.”
Aproximação suspeita
A história de Benjamim, na biografia de Frederico Pernambucano, tem como pano de fundo a relação da Alemanha com o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial. O patrocínio da Bayer e da Aba Filmes à empreitada de Abrahão não foi gratuito. O historiador acredita queo apoio alemão é indício da política de aproximação do Reich com onosso país.
“Lampião foi garotopropaganda da Bayer e issoseencaixa dentro de um quadro geral de sedução da Alemanha em direção aoBrasil”, diz. “Para se ter ideia, Hugo Sorentino, italiano quefazia filmes no Brasil, foi convidado a dirigir a UniversoFilmes, agência alemã criada aqui para difundir o cinema alemãoe furar o bloqueio deHollywood. Ele chegou a ser convidado por Goebbels [ministro depropaganda de Adolf Hitler] a ir para Alemanha eouviu dele quetinha interesseem moldar o cinema alemão para ser atraente parao brasileiro. Havia um namoroentre Alemanha e Brasil. A Alemanha sonhava com certas matérias-primas brasileiras, algumasestratégicas comoo urânio.”
Pernambucano diz queos interesses da Bayer no Brasil não sãocompletamenteesclarecidos por falta de documentos históricos. Quandoo Brasil declarou guerra aos países doEixo, em 1942, a Bayer sofreu intervenção federal e muitos arquivos foram destruídos. Mas o historiador acredita que a figura de Lampiãoeraestratégica para a entrada da empresa no sertão. “Aproveitar uma figura de herói popular, no sentido grego da palavra, que é um sujeito capaz de grandes façanhas para o bem e para o mal, era a intenção”, diz. “Lampiãoera cruel, perverso, atacava vilarejos, mas fascina o povo até hoje.”