Livro resgata a saga do sírio-libanês Benjamin Abrahão, que imigrou para o Nordestebrasileiro na década de 1910 e entrou para a história por se tornar braço direito dopadre Cícero e ter sido o único a filmar Lampião e seu bando.
Por: Sofia Moutinho
Publicado em 15/05/2013 | Atualizado em 15/05/2013
O aventureiro sírio-libanês Benjamin Abrahão exibe o equipamento da Aba Filmes ao lado de Lampião, Maria Bonita e o restante do bando. (foto: Cinemateca Brasileira)
Deus e o diabo na terra do sol. Impossível não lembrar do título do filme de Glauber Rocha ao ouvir a história do sírio-libanês Benjamim Abrahão, curiosa figura que fez sua vida no sertão nordestino nos anos 1920 e 1930. O forasteiro conseguiu seu sustentose aproveitando ora do homem santo padre Cícero, ora do vilão Lampião. Nessaempreitada, ficou marcado na história como o primeiro a documentar de perto a vida docangaço, através de fotos e filmes.
Sua rica biografia é narrada pelo historiador Frederico Pernambucano em Benjamin Abrahão, entre anjos e cangaceiros, livro repleto de detalhes suculentos sobre a vida nosertão e que não deixa de fora importantes marcos da política e da história da época.
Parte da história de Benjamin Abrahão já havia sido contada no filme Baile perfumado(1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. A essa época, Pernambucano já estudava a saga do sírio-libanês e foi ele quem sugeriu o tema para os cineastas. Passados quase 20 anos, o historiador nos revela, em mais detalhes, um Benjamin Abrahãooportunista, que soube aproveitar cada chance oferecida no Brasil.
Logo que chegou ao país, em 1915, fugido do alistamento militar para a Primeira Guerra Mundial, Abrahão usou da sua estrangeirice para conquistar a confiança depadre Cícero, então um poderoso e influente líder religioso e político de Juazeiro, interior do Ceará. Em meio à multidão de fiéis que visitavam o ‘padim’, o sírio se destacou apresentando-se como conterrâneo de Jesus. Tornou-se secretário pessoal de Cícero.
“Benjamin era um espertalhão, tão sedutor queconseguiu se instalar na casa paroquial, na época uma sede de poder importante. Lá vivia o padre Cícero e seu braço político Bartolomeu Floro. Benjamin se tornou obraço pessoal do padre”, conta Pernambucano. “Ficaram o padre e os dois como se fossem seus ministros.”
O sírio-libanês ficou na paróquia de 1917 a 1926. Nesse período, responsável pelas muitas joias doadas por fiéis, desviou fundos para si mesmo. Circulava noluxo e na luxúria até que a morte do padre pôs fim a sua boa vida.
Pernambucano nos conta que em uma última tentativa de lucrar em cima do beato, Abrahão cortou chumaços de cabelo de Cícero já morto e passou a vendê-los para os romeiros. O empreendimento deu lucro até queo povo começou a desconfiar que o religioso não tinha tanto cabelo quanto estava sendo vendido.
O cangaço filmado
Sem dinheiro e desrespeitado, Benjamin Abrahão partiu para uma nova aventura. Com a chancela de ter sido braço direito de padre Cícero, foi em busca do temido VirgulinoFerreira, o Lampião. Devoto conhecido do ‘padim’, o cangaceiro estava em seu auge, controlando vários bandos pelo Nordeste, quando Abrahão lhe propôs ser seu documentarista oficial. Os dois já haviam se encontrado quando o cangaceiro foi convencido por padre Cícero a lutar ao lado do governo contra a Coluna Prestes, quepassou pelo Nordeste por volta de 1925.
Abrahão já tinha tudo preparado. Conseguiu apoio da agência alemã Aba Filmes para filmar o cangaceiro procurado pela Justiça com uma câmera sem som de alta tecnologia para a época. Lampião, fascinado com a modernidade dos apetrechos, aceitou a proposta. Antes, porém, testou o equipamento para garantir que não se tratava de uma arma disfarçada.
Pernambucano: “Lampião viu na proposta defilmagem aoportunidade deingressar na história pela forma mais moderna quehavia então”
“Benjamim conseguiu convencer Lampião por causa do efeito mágico do cinema”, diz Pernambucano. “Naquela época, Lampiãomobilizava grossos capitais. Travava com coronéis da região que financiavam seus roubos e recebiam parte do lucro. Seu bandoera a imagem do sucesso da organizaçãofora da lei. Ele viu na proposta de filmagem aoportunidade de ingressar na história pela forma mais moderna que havia então.”
A aventura cinematográfica de Benjamim Abrahão ganhou as páginas dos principais jornais do país. Em fevereiro de 1937, ele publicou uma série de reportagens no Diáriode Pernambuco exibindo a intimidade do cangaço.
Havia fotos impensáveis de Lampião costurando, Maria bonita penteando-lhe os cabelos, cangaceiros tocando gaita e comendo. O sírio-libanês anunciava para a imprensa que em breve lançaria um documentário sobre Lampião e seu bando.
A ideia dele era exibir o filme no Brasil e vender cópias para o exterior, onde Lampiãotambém era manchete. Mas seu sonho foi destruído pela então recém-instalada ditadura do Estado Novo, que mandou confiscar as filmagens e proibiu a exibição ecomercialização das películas.
“As fotos e filmes de Benjamim eram um atestado da incompetência das forças policiais e uma afronta ao Palácio do Catete”, comenta o historiador, que traduziu a caderneta em que o forasteiro sírio registrou denúncias sobre as forças policiais quematavam civis e colocavam a culpa nos cangaceiros.
Assista a trechos do filme de Benjamin Abrahão sobre o bando deLampião
Nessa época, sequências inteiras dos filmes foram destruídas. O que restou foi recuperado na década de 1950 pela Fundação Getúlio Vargas. Entre os filmes remanescentes, um chama atenção. Mostra o rei do cangaço fazendo comercial deCafiaspirina, remédio para dor de cabeça da empresa alemã Bayer. O cangaceiroaparece distribuindo o remédio para seu bando em frente a um cartaz que diz: “Se é Bayer, é bom”.
Fadados à morte
Benjamin Abrahão morreu em circunstâncias misteriosas sem conseguir lucrar com seus filmes. Saiu para beber cerveja quando faltou luz na vila em que estava. Ouviram-se gritos e seu corpo foi encontrado esfaqueado dentro da casa de um homem aleijadoque confessou o crime.
Ninguém sabe quem foi o real autor do assassinato. Segundo Pernambucano, provavelmente foi alguém do povo contratado por algum coronel que queria queimar o‘arquivo vivo’ que era Abrahão. Tendo convivido com Lampião, ele conhecia todos os coronéis e policiais corruptos que ajudavam o cangaceiro.
Pernambucano: “Quem matou Benjamin foi a mesma força quematou Lampião: oPalácio do Catete eos valores da ditadura”
Mas, para o historiador, em última instância, quem matou o sírio-libanês e também Lampião foi o Estado Novo. O fim da soberania dos estados imposta pelo novoregime nacionalista desmantelou a estratégia de ocupação do cangaço, que se mantinha nas fronteiras para escapar das forças policiais que não tinham domínio para além de seus territórios.
Outro elemento apontado por Pernambucanofoi o fim da inviolabilidade do latifúndio, quefez com que os coronéis que abrigavam bandos de cangaceiros não pudessem mais impedir a entrada de policiais em suas terras.
“Quem matou Benjamin foi a mesma força que matou Lampião: o Palácio do Catete eos valores da ditadura”, afirma o historiador. “Antes que o Estado Novo espatifasse osistema de poder do sertão, era alto negócio para qualquer fazendeiro comercializar com o cangaceiro. O Estado Novo acabou com esse colaboracionismo. A morte deBenjamin foi, sobretudo, uma queima de arquivo histórica.”
Aproximação suspeita
A história de Benjamim, na biografia de Frederico Pernambucano, tem como pano de fundo a relação da Alemanha com o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial. O patrocínio da Bayer e da Aba Filmes à empreitada de Abrahão não foi gratuito. O historiador acredita queo apoio alemão é indício da política de aproximação do Reich com onosso país.
“Lampião foi garotopropaganda da Bayer e issose encaixa dentro de um quadro geral de sedução da Alemanha em direção aoBrasil”, diz. “Para se ter ideia, Hugo Sorentino, italiano quefazia filmes no Brasil, foi convidado a dirigir a UniversoFilmes, agência alemã criada aqui para difundir o cinema alemão e furar o bloqueio deHollywood. Ele chegou a ser convidado por Goebbels [ministro depropaganda de Adolf Hitler] a ir para Alemanha e ouviu dele quetinha interesse em moldar o cinema alemão para ser atraente parao brasileiro. Havia um namoro entre Alemanha e Brasil. A Alemanha sonhava com certas matérias-primas brasileiras, algumasestratégicas como o urânio.”
Pernambucano diz que os interesses da Bayer no Brasil não sãocompletamente esclarecidos por falta de documentos históricos. Quando o Brasil declarou guerra aos países do Eixo, em 1942, a Bayer sofreu intervenção federal e muitos arquivos foram destruídos. Mas o historiador acredita que a figura de Lampião eraestratégica para a entrada da empresa no sertão. “Aproveitar uma figura de herói popular, no sentido grego da palavra, que é um sujeito capaz de grandes façanhas para o bem e para o mal, era a intenção”, diz. “Lampião era cruel, perverso, atacava vilarejos, mas fascina o povo até hoje.”
Sofia MoutinhoRevista Ciência Hoje
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