sábado, 18 de dezembro de 2010

O amor, do mito à dialética platônica

14 de março de 2010

Em O banquete, Platão usa o método dialético para investigar um tema mítico
A inauguração do conhecimento filosófico e científico é celebrada como a passagem da explicação mítica para a explicação racional. Essa cisão, datada e delimitada, ocorreu na Grécia antiga e no século 6 a.C. Os manuais escolares consideram apressadamente o mito como algo do passado. Não se dão conta de que os deuses, os heróis e as figuras mitológicas estão enxertados na compreensão que temos do comportamento humano e dos conceitos de corpo, alma, desejo, imortalidade, bem, verdade, beleza e justiça e de outros. Nem toda teoria está livre de resíduos mitológicos. A prova disso é o conceito de Eros ou de amor que Platão examina em O banquete (e nos diálogos Fedro e As leis). Trata-se de um exemplo clássico de como um tema mítico pode ser investigado com o método dialético. A versão mítica adquire gradualmente feição filosófica, embora ambas as formas expressem os mistérios da natureza humana e da sexualidade ligados ao problema da verdade e do conhecimento.
Uma das observações que se encontram, no início de O banquete, é o fato de Eros não ter tido a devida atenção dos poetas e dos filósofos. Por isso, Platão instaura a união entre Eros e Logos. O amor e o desejo passam a ser investigados em uma linguagem conceitual. Aos poucos, o Eros dos mitos e do conhecimento comum não é mais o Eros de Sócrates, filósofo que significativamente ouviu as revelações de Diotima, mulher e sacerdotisa. (Funda-se assim, diria M. Foucault, a scientia sexualis do ocidente em contrapartida à ars erotica do oriente).
Quem não ouviu falar dos amores conjugais, filiais, fraternais, incestuosos, trágicos, cômicos etc. que se encontram nos textos de Homero e de Hesíodo, dos trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e de Aristófanes? O amor de Alceste por Admeto; de Antígona; de Fedra por Hipólito; de Narciso por si mesmo e muitos outros? Além desses amores, Platão recomenda que Eros se torne amor à sabedoria. Escreve sobre as questões do uno e do múltiplo, das formas e do mundo sensível, do ser e do aparecer, do bem e da justiça, do belo e da verdade, da opinião e da ciência e, ao lado desses problemas metafísicos, também sobre a amizade, no Lisis e, o amor, especialmente em O banquete, diálogo filosófico quase romance.
Platão encena o sentido das questões. O início de O banquete parece enredo de telenovela: diferentes épocas e personagens entram em ação com o objetivo de informar o que ocorreu no banquete (simpósio) em que estiveram presentes Sócrates e Alcibíades, na casa do belo Agatão, em comemoração ao prêmio recebido pela sua primeira tragédia. Depois, o diálogo estrutura-se em torno a uma série de discursos sobre o amor. Figura ímpar a de Sócrates, na ocasião, asseado, usando sandálias, dominado pelo daimon (permanece um tempo concentrado, perto da entrada da casa de Agatão, apoiado em um pé só) chega tarde. O tema: o elogio a Eros. Alguns participantes haviam bebido bastante no dia anterior, por isso, recomenda-se o uso moderado do vinho. Só os discursos podem ser apaixonados.
Fedro afirma que Eros é um grande deus primitivo. Mostra o lado trágico de Eros citando exemplos mitológicos, o caso de Alcestes que morre no lugar do esposo. Evidencia a relação entre a morte e o desejo. Pausânias distingue dois Eros relacionados com Afrodite: o celestial e o popular. O primeiro, o amor platônico, essencialmente masculino e, o segundo, busca o prazer nos corpos. Erixímaco, médico, fala de Eros como o princípio universal de harmonia e de saúde. O comediante Aristófones narra o mito dos Andróginos. Os homens no início eram esféricos, tinham dois olhos, quatro pernas, quatro braços e assim por diante. Mas como eles pretenderam se igualar aos deuses, Zeus ordena que sejam divididos ao meio. O cirurgião divino costura na frente de cada um o sexo. Dessa divisão nasce o desejo de cada ser humano completar-se no outro. Agatão mostra que Eros é o mais feliz dos deuses, sempre jovem e belo, justo, corajoso, sábio.
Os cinco discursos preparam a visão dialética dos discursos de Sócrates e de Alcibíades. Sócrates apela a
Diotima, mulher e sacerdotisa, para explicar a dupla origem do amor. O amor deseja o que não possui e deseja não perder o que possui. É um intermediário, passagem. No mito de Aristófanes cada um é a metade de si mesmo (e o amor é a união das partes separadas).
Conforme o mito, Eros não é filho de Afrodite, apesar de nascer sob o signo de sua beleza. Na realidade, é filho de Poros (Recurso) e de Penia (Pobreza). No jantar oferecido pelos deuses por ocasião do nascimento de Afrodite, Penia chega para mendigar junto à porta. Poros, embriagado, adormece no jardim. Penia tem a idéia de ter um filho de Poros, deita-se junto dele e concebe o Amor. Assim, Eros herda dos pais a mistura que o torna inquieto e apaixonado, pobre e rico. Ao mesmo tempo, instável, inventivo, caprichoso. Vivendo na penúria, aspira o saber e a beleza. Alcibíades, no seu discurso, elogia o próprio Sócrates. O que é dito teoricamente no discurso de Sócrates é confirmado nas ações de Sócrates. Também Sócrates não é belo nem feio, mas sedutor. Sendo pobre, é rico interiormente.
O amor entendido dialeticamente não é mortal nem imortal, não é pobre nem rico, não é ignorante nem sábio. Ele está no meio. Consciente de carência aspira à beleza e à sabedoria. Platão, a partir da imortalidade da alma, justifica a passagem do amor sensível para o inteligível. No momento culminante de O banquete, busca a cura da finitude humana apresentada no mito do andrógino do ser mutilado e que, por isso, vive a nostalgia da unidade perdida, fundamento do desejo.
O objeto de Eros é o belo. Porém, a beleza só se revela em graus. O amante afeiçoa-se à beleza de um corpo, depois a todos os corpos, na etapa seguinte ama as ações morais, num grau mais alto as ciências e, finalmente, o belo em si e por si. Os estudiosos de Platão divergem em suas interpretações, mas sua leitura mostra como o conhecimento teórico se instaura em relação às explicações dos demais saberes.
Jayme Paviani é professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul. Autor, entre outras obras, de Filosofia e Método em Platão (EDIPUCRS).

Revista CULT

O começo da Filosofia


14 de março de 2010

A Filosofia é o reconhecimento de uma margem e, tanto quanto o tempo, excede o calendário e está sempre presente
Falar de um começo da Filosofia não é outra coisa que delimitar suas margens. A primeira com que nos deparamos, quando nosso pensamento segue a regra da causalidade, é a do tempo histórico. Tudo há de ter um começo, um início e um efeito que lhe suceda. Os críticos desta noção dirão que os fatos transcendem o tempo linear da história, que esta é como uma teia visivelmente esburacada. Eles têm razão, pois o tempo é maior e mais complexo do que nosso modo de explicá-lo, assim como as experiências nele agregadas e não catalogáveis pelo esquema cronogramático de passado-presente-futuro. A Filosofia, tanto quanto o tempo, excede o calendário e se diz como uma potência sempre presente.
Porém, ainda que o pensar a que chamamos Filosofia esteja em muitos aspectos para além do calendário – em nossa experiência cotidiana e individual, quando nos exercitamos na reflexão sobre as coisas, deixando que memórias, sensibilidades, e fatos não-colecionáveis, redijam narrativas internas ou compartilháveis – este pensar é também obra do/no tempo, e chamamos história o que nele se fez e se faz aparecer. É certo que sempre muito se perde. A história é apenas uma marca, uma escrita, um recorte. Do mesmo modo o começo da Filosofia é apenas o reconhecimento de uma margem.
É preciso compreender o estatuto desta demarcação para evitar o fastio do proselitismo. Perguntamo-nos neste gesto pela Filosofia Oriental, pela Filosofia Africana, pela Filosofia Latino-americana. O que precisamos questionar aqui é o que estamos a chamar Filosofia que permanece dita nestas determinações geográficas citadas. Nelas o F maiúsculo permanece a notar uma dimensão substantiva. A pergunta que deve nascer desta última decidirá sobre o valor e a importância desta nomeação: de que nos serve, afinal, chamar Filosofia a uma forma específica do pensamento nascido na Grécia antiga em cerca de 6 a.C. e negar tal definição a outras culturas ou elaborações culturais? Será preciosismo antidemocrático, será reserva de mercado?
Todavia, se pensamos este começo como uma determinação da margem tudo se torna diferente. Avançamos na análise genealógica da nomeação Filosofia e descobrimos a herança cultural nela inaugurada. A margem não é um muro, nem uma cerca de fios elétricos que impede a passagem dos indesejados, sejam eles espiões ou assaltantes, incautos ou curiosos. Margem não é fronteira; é limite maleável onde podemos penetrar. Lugar aberto no qual podemos avançar para passeios, refúgio ou para construir morada.
A margem nos faz saber tanto da água quanto do solo. Na margem de um rio podemos sempre nos banhar na água, molhar os pés, e só podemos fazê-lo porque há o solo ao qual voltar para firmar os pés. Se não entramos na água não sabemos dela. Se nela ficamos somos afogados. A Filosofia tomada como margem define que a natureza da racionalidade com que ela realiza sua experiência é a do limiar entre mundos que avançam para além da geografia e do tempo: a segunda margem é a que há entre certeza e dúvida, entre razão e sensibilidade, entre individualidade e política. Para fazer valer a metáfora: a Filosofia não é nem o de dentro nem o de fora, mas o exercício do Estado de Limiar que é próprio ao pensamento, misto de corpo e espírito, de experiência e transcendência.
Os gregos sabiam dessa margem. Metafísica era o nome ainda não pronunciado até Andrônico de Rhodes. Ela reunia o Bem, o Belo e o Verdadeiro, depois separados em disciplinas como Ética, Estética e Lógica. Mas a Filosofia, em seu começo, era uma unidade só. Unidade das disciplinas ainda não nomeadas que refletia a unidade da Pólis, a Cidade grega, na Unidade do Cosmos, a ordem além do humano, ou o que chamaram Physis e que também traduzimos por natureza, na unidade do Ser, o que existia, o que era e não podia ser negado. Este pensar da integração das coisas, das semelhanças e diferenças (que em Pitágoras teve o nome técnico de vida contemplativa e em Platão renovou-se como Diá-logo) que podiam ser compreendidas, era a característica inicial do pensamento inaugurado como Filosofia.
A Filosofia nascida com os gregos permanece até hoje como o campo específico onde a racionalidade encontrou uma ou várias formas que se desfazem e refazem ao longo do tempo. Os gregos foram os que primeiro se deram conta do potencial humano para a razão decidindo-se a enfrentá-lo. O nome do elemento que permitiu que existisse a Filosofia entre eles era Logos que, como perigoso veneno contra as convenções, levou Sócrates à morte. Sua atitude era a da dúvida que sempre acompanha a Filosofia. A dúvida quanto à explicação do mito, à influência da tragédia, ao poder dos deuses: o nome próprio da crítica que desajusta as crenças. Dúvida que sempre elimina todo fundamentalismo ao retirar-lhe o chão de sob os pés, a instaurar em seu lugar as pontes entre o que vemos e o que nos é mostrado. Chamar de Filosofia o saber em torno do Logos e o saber produzido por ele foi o modo de chamar a atenção para esse potencial crítico que, à época, foi instrumento de uma revolução.
Os filósofos se negavam a ser simplesmente sábios. Negavam o saber que se dava ares de dádiva. A Filosofia não era mito, não era poesia, não era tragédia, não era religião, não era retórica. Nem era iluminação, nem inspiração. Era a negação nascente de todo dogma e de toda resposta aceita, de toda ilusão, de toda encenação que acobertasse o fio cortante do Logos. A capacidade de linguagem e razão do humano que se realizava como dever saber, tal era o que significava sua busca, já era o trabalho da compreensão que exige a palavra autocrítica para alcançar a verdade. O amor ao saber era compromisso. A verdade seria o magma encontrado após a retirada de todos os véus, o que equivalia a negar com veemência a explicação já dada e avançar na pergunta.
O exercício do Logos ligava-se a Eros como desejo de saber, e, muito mais, ao compromisso com o saber, o sentido mais acurado da Philia grega, a amizade como implicação de vidas. Filósofos eram aqueles que buscavam o saber no ato conjunto do Diá-logo. A Filosofia primeiro foi especulação sobre o sentido último das coisas (Metafísica), foi descoberta da reflexão sobre a ação (Ética), mas foi, sobretudo, diálogo, ou seja, experiência de encontro de diferenças em torno da linguagem (o nome mais próprio do Logos), de suas possibilidades, da atitude crítica e luminosa que ela fazia nascer. A experiência da Filosofia era devedora da Democracia como partilha no campo do saber. Só a Filosofia seria capaz de manter o seu sentido.
O que nasceu Filosofia permanece como algo originário na Filosofia de hoje que nos obriga sempre a uma retomada genealógica. Ela é diálogo como ação crítica e reconstrutiva do sentido do estar junto do outro: a experiência política genuína.

Marcia Tiburi é filósofa, autora e organizadora de livros sobre o tema, entre eles As mulheres e a filosofia (Editora Unisinos, 2002) e O corpo torturado (Escritos, 2004) e também do romance Magnólia (Bertrand Brasil, 2005). É apresentadora do programa de debates Saia Justa, do canal de TV pago GNT

Revista CULT

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Muro de Berlim


Publicado em 28 de março de 2010

Vinte anos depois da queda do Muro, os debates sociais na Alemanha indicam uma tendência surpreendente: a crítica ao capitalismo foi redescoberta

Sérgio Costa Fotos: Rogerio Ferrari

Mesmo muito antes da Revolução Francesa, as primeiras reflexões sistemáticas sobre o funcionamento das sociedades já haviam mostrado que a boa vida em comum requer a combinação, em proporções adequadas, de três ingredientes básicos: igualdade, liberdade e solidariedade. Pouca gente duvida, hoje, da imprescindibilidade desses três ingredientes. Apesar disso, as duras disputas em torno da definição do que significa cada um desses termos e, sobretudo, em que proporção cada um deles deve ser incorporado à vida comum marcam a história e a política desde muitos séculos.

Com a divisão da Alemanha no pós-guerra, formas radicalmente distintas de resolver a equação entre igualdade, liberdade e fraternidade passaram a conviver numa proximidade geográfica desconcertante. O Muro de Berlim materializava, precisamente, as tensões que essa proximidade comportava. Agora, 20 anos depois de seu desaparecimento, ocorrido em 9 de novembro de 1989, cabe indagar o que aconteceu com as interpretações antes opostas. Em que medida a adesão à democracia liberal mudou ou mesmo silenciou a crítica ao capitalismo? O que aconteceu desde então?

As duas Alemanhas

A República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental, em seus 51 anos de existência (1949-1990), apostou numa concepção substantiva de igualdade que implicava condições materiais de vida similares para todos os cidadãos. Em um sentido correlato, a liberdade era definida como liberdade da necessidade. Ou seja, ninguém deveria estar submetido a privações ou constrangimentos materiais que o impedissem de gozar a vida plenamente. A liberdade individual, como se conhece no liberalismo, não era prioridade e se encontrava, antes, submetida aos interesses coletivos. A solidariedade, por sua vez, ganhou a forma da solidariedade estatizada, de sorte que toda a vida associativa, fosse nos clubes de jovens, fosse num clube de caça, era intermediada e regulada pelo Estado.

Independentemente dos erros e acertos pessoais de seus diversos governantes e das condições políticas que cercavam sua existência (o peso do stalinismo, a Guerra Fria etc.), a RDA, ao estatizar todas as esferas da vida, minou as bases da vitalidade e da criatividade sociais. A vida comum, fora dos pouquíssimos espaços não controlados pelo Estado ou vigiados pelos “espiões informais” do governo, era um enorme teatro burocrático. O trabalho, a política, o lazer, a visita ao médico ou à escola, a vida de vizinhança ou o baile de formatura eram todos eles parte de um enredo burocrático único. A circulação de informações nesse sistema totalizante fazia, por exemplo, com que a escolha dos amigos com quem se sentava à mesa do bar no fim de semana ou com quem se compartilhava o drama de um amor malsucedido pudesse ter consequências imediatas para a obtenção de uma promoção na fábrica coletiva ou uma vaga na universidade pública para o filho.

A República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, por sua vez, fez do desejo de superar o passado nazista sua razão de ser como Estado-nação. Assim, tanto os laços simbólicos aos quais se recorreu para criar a comunidade nacional imaginada quanto as próprias instituições do Estado de direito buscaram proteger o país de uma nova ameaça totalitária. Nesse contexto, a igualdade buscada era a igualdade no direito à liberdade, a liberdade para a vivência plena da própria diferença. Tudo que lembrasse homogeneização e supressão da liberdade individual em nome do povo ou do Estado foi evitado e condenado.

O Estado de bem-estar organizou a solidariedade distributiva no âmbito de programas de tributação dos ricos e benefícios sociais para os pobres, compensando, de alguma forma, o agravamento das desigualdades sociais que o capitalismo sempre produz. Contudo, a solidariedade social, em seu sentido amplo, isto é, como redes de cooperação e associação entre os diferentes grupos da sociedade, era atividade livre de qualquer controle e intervenção do Estado. Isso permitiu o florescimento de uma sociedade civil vibrante e dinâmica, capaz de produzir inovações e transformações sociais de enorme importância. Mencione-se, a título de exemplo, o vigoroso movimento de mulheres, o movimento ambientalista ou o desafio da heteronormalidade por meio da legitimação de formas múltiplas e diversas de sexualidade e de vida em família.

A Alemanha reunificada

Do ponto de vista do direito internacional, a reunificação das Alemanhas representou uma anexação da RDA pela RFA. A anexação foi consentida tanto pela própria RDA quanto pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética. A anexação implicou a extensão da área territorial de vigência da constituição da RFA para o território da RDA e a transformação dos estados e municípios da RDA em novos estados e municípios da RFA. A unificação levou não só a economia da RDA, baseada em fazendas coletivas pouco produtivas e plantas industriais da década de 1930, à desgraça. Também muitas biografias pessoais e familiares moldadas para atender às necessidades de uma economia e uma sociedade que já não existiam mais se viram privadas de sua razão de ser.

A perda de referências produziu reações regressivas, como a xenofobia, mas também bem-humoradas, como a Ostalgie. A palavra, que junta leste (Ost) com nostalgia (Nostalgie), nomeia a atitude autoirônica de cultuar e colecionar os produtos e as lembranças da RDA. Ainda hoje lojas descoladas de Berlin-Mitte oferecem esses ícones do passado a preço de ouro como parte de um estilo que tem o seu charme.

A anexação da RDA pela RFA, contudo, não levou as ideias de igualdade, liberdade e solidariedade vigentes na RFA a se estender, imediatamente, por todo o território unificado. Tampouco implica que tenham se mantido inalteradas desde então. Na verdade, essas concepções são, ainda hoje, objeto de negociações permanentes no âmbito da política e do cotidiano no país, refletindo, naturalmente, mudanças observadas fora da Alemanha, como a intensificação da globalização ou a integração europeia.

Menciono, a seguir, alguns temas discutidos com enorme interesse na Alemanha hoje, que exemplificam como distintas interpretações da vida comum se apresentam e se confrontam publicamente.

Os grandes temas da agenda hoje

A crise financeira dos dois últimos anos levou à necessidade de controle estatal sobre a economia para o centro da agenda política na Alemanha. A euforia com os poderes autorreguladores do capitalismo que se seguiu à queda do Muro apresenta, no momento, um claro retrocesso. Há consenso entre as diferentes forças políticas de que é necessário que o Estado controle a economia. As divergências articulam-se em torno do quanto e do como.

Os argumentos usados para a defesa de formas mais ou menos estritas de controle nos interessam aqui. Eles questionam o sentido mesmo da produção e do comércio de mercadorias e serviços, denunciando como operadores financeiros irresponsáveis teriam transformado o mercado financeiro internacional num cassino de poucos milionários e economias inteiras falidas. Seria necessário, por isso, que o Estado reativasse seus controles tributando, redistribuindo e fazendo valer o sentido social da produção de riquezas.

O que essas discussões parecem mostrar é que, 20 anos depois da queda do Muro, a crítica ao capitalismo continua viva, ou, quem sabe seria mais justo afirmar, foi redescoberta. A novidade é seu alcance: a crítica não visa mais à superação do capitalismo, mas a seu controle e à sua subordinação aos interesses da sociedade.

Nesse debate, saltam aos olhos os confrontos entre distintas concepções de igualdade. Para os liberais, como aqueles representados pelo partido que agora está assumindo o poder ao lado dos democratas cristãos, os controles estatais sobre a economia devem ser mínimos. Afinal, só mesmo o mercado livre de controle e amarras poderia garantir a plena vigência da igualdade de oportunidades e do princípio meritocrático. O partido das esquerdas, derivado em parte do partido socialista único da RDA, defende uma intervenção muito mais ampla do Estado sobre a economia. O sentido é controlar a especulação financeira e promover uma ampla redistribuição de sorte a garantir o igual direito a uma vida digna, entendida como o suprimento pelo Estado das necessidades fundamentais de todos, independentemente de méritos pessoais.

Privacidade

Outro tema discutido com fervor atualmente é o acesso do Estado a informações pessoais, como a troca de e-mails ou as movimentações bancárias. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a pressão pelo controle estatal da privacidade cresceu enormemente. A disputa dá-se em torno de diferentes formas de engenharia social e, indiretamente, diferentes concepções de liberdade. Enquanto, por exemplo, os democratas cristãos mais conservadores argumentam que a renúncia a parte da proteção da privacidade significa mais segurança contra o terrorismo e, por decorrência, mais liberdade, verdes e liberais afirmam exatamente o contrário. Para esses, só a proteção à privacidade garante segurança e liberdade. Conforme entendem, a liberdade individual supõe o conhecimento e o consentimento pessoal de cada informação privada a que o Estado tem acesso. Ademais, acreditam que o armazenamento de informações pessoais, mesmo que seja feito pelo Estado, faz crescer o risco de mau uso das informações, aumentando a insegurança individual.

Nas discussões em torno das políticas de imigração, questão igualmente central na agenda política da Alemanha hoje, são sobretudo os sentidos da solidariedade que estão em debate.

Imigração

A RDA e a RFA apresentam histórias de imigração bastante distintas. Na RDA, os imigrantes não passaram de um número reduzido e eram originários fundamentalmente de países socialistas como Polônia, Moçambique e Vietnã. Eram tratados como trabalhadores temporários que não deviam constituir família no país. Imigrantes que ficassem grávidas podiam escolher entre abortar ou retornar a seu país de origem.

Na RFA, os imigrantes também chegaram como trabalhadores convidados, mas logo conquistaram o direito de trazer suas famílias. Independentemente de viverem no lado leste ou oeste da Alemanha, imigrantes e seus descendentes, apesar de constituírem quase 10% da população e já viverem, em alguns casos, há mais de 40 anos no país, não são vistos como membros da nação. Jovens de extrema direita declararam partes do território da antiga RDA como áreas livres de estrangeiros, usando da agressão e da perseguição para garantir seus objetivos. Outros setores conservadores entendem que imigrantes vivem em sociedades paralelas e que, portanto, não deveriam ser beneficiários da solidariedade institucional promovida pelo Estado.

A questão é complexa, na medida em que faltam, no debate, soluções que gerem ao mesmo tempo possibilidades e laços de pertença para os imigrantes sem assimilá-los na comunidade nacional imaginada. Além disso, as muitas posições envolvidas fazem embaralhar os campos progressistas e conservadores, tornando o debate político difícil e impenetrável.

Assim, por exemplo, muitos grupos gays e feministas, ao denunciar o sexismo ou a homofobia, sobretudo de imigrantes de origem turca ou árabe, contribuem para a estigmatização de minorias étnicas. Os grupos estigmatizados, por sua vez, contra-atacam valendo-se de ainda mais sexismo e mais homofobia. Desse modo, legitimam as reservas dos grupos conservadores, realimentando o ciclo da rejeição mútua.

Muitas Alemanhas

As duas Alemanhas, enquanto existiram, representaram, emblematicamente, dois modelos distintos de interpretar e combinar igualdade, liberdade e solidariedade. De alguma forma, as posições representadas pelas duas Alemanhas estão presentes ainda hoje no debate político. Não obstante, concorrem com uma variedade de outras posições e possibilidades. Desse ponto de vista, a Alemanha são muitas. Há uma Alemanha social-democrata, uma Alemanha neoliberal, uma Alemanha de muçulmanas que falam várias línguas, mas que nunca mostraram seu rosto em público. Não há mais, como havia há 20 anos, barreiras físicas dividindo essas muitas Alemanhas. Parece, contudo, que elas nunca foram tão alheias umas às outras.

Revista Cult

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A infância dos povos

Fabiano Lemos

F. W. Nietzsche

Quando queremos considerar a infância dos povos sem nos lançarmos em um mar de dúvidas, do qual muitas vezes se deixaram inferir conclusões perigosas para a religião e para a história, precisamos esclarecer, antes de mais nada, uma questão na qual se baseia o desdobramento da consideração a seguir. A infância dos povos – uma condição que pode ser demonstrada mais pela dedução dos fundamentos de um lei geral da natureza que pelos fatos históricos – nos leva de volta ao tempo próximo da criação do mundo, ou, ao menos, da criação dos homens. Devemos e podemos supor, então, que o homem, dotado por Deus com o primeiro germe de toda a cultura [Bildung], linguagem e religião, viveu uma época de florescência, ou um período de ouro sobre a terra, após o qual, no entanto, progressivamente deixou decair, sem consideração, sua dignidade e altivez em um estado animal, desenfreado, do qual somente poucos povos, dotados de uma particular impetuosidade espiritual, teriam a sorte de ter saído; ou sua formação espiritual [geistige Bildung] se manteve, e, apesar dos danos à pureza original, os povos mais cultos, artísticos e mais relevantes para a história mundial, se educaram? Assim, a cultura [Kultur] de muitos povos seria algo de original, e a bestialidade e baixeza espiritual de outras nações, uma decadência da civilidade [Gesittung] anterior. Uma outra perspectiva, deixa o homem se erguer lentamente de um estado animal em direção a uma alta completude. Essa perspectiva é certamente correspondente, pelo menos parcialmente, a um certo desenvolvimento do homem; mas quando dirigimos nossos olhos para próximo do ponto de vista animal, então devemos perguntar admirados, antes de mais nada, por onde podem se desenvolver, a partir do baixo e do bestial, as florescências mais nobres da cultura [Kultur]. Algum povo que conhecemos já marchou, sem influência externa, para fora de um estado de natureza? Com isso se coloca uma outra questão, próxima àquela – se é particularmente possível que, de um casal humano, tenham podido se formar [bilden] tantas raças completamente distintas. Mesmo quando se quis resolver essa dúvida com os fundamentos da ciência da natureza, ainda não se disse, com isso, que a forma [Form] humana, que a formação [Bildung] humana, sempre foi firme e incisiva, que ela não poderia incorporar em si, inicialmente, uma nova impressão, que depois se consolidaria, duradoura e estável, sobre todas as espécies, através de um adensamento progressivo. Querer forçar uma resolução para essa questão, seja em minha perspectiva, seja de forma absolutamente necessária, resulta em apaziguar um conflito muito equívoco; eu escolho precisamente a primeira opinião, a de que os homens procuram se prover de cultura [Kultur], e, depois, alguns se tornam bárbaros sob a influência dos maiores eventos mundiais e revoluções, enquanto outros continuam a se deixar desenvolver de acordo com o caminho inicial da cultura [Kultur]. Essa mudança também não é tão artificial quanto nos parece inicialmente, especialmente se se tem em consideração como os homens se dispersaram, progressiva e ocasionalmente, e em grandes territórios; como, depois, necessariamente, a cultura [Bildung] anterior, da qual os primeiros imigrantes ainda se recordavam, teve, em uma posteridade ampliada, progressivamente, de se dobrar e terminar, até que, mais uma vez, novas impressões, através do contato com nações estrangeiras já civilizadas, produzisse, por assim dizer, uma lembrança, que despertou algo que há muito tempo havia se apagado e, deste modo, ensinasse de novo o primeiro grau da cultura [Kultur].

Em seguida, queremos considerar a infância dos povos, em especial entre aqueles que preservaram em si uma cultura [Kultur] prévia e que se desenvolveram em uma magnífica florescência.

O que esses povos possuíam era, antes de mais nada, sua língua, o elemento fundador, aquilo que une um grupo de homens como um povo, e que será a base de todo desenvolvimento posterior.

Nós podemos e temos de supor uma língua original que tenha preservado em si as ramificações de todas as reminiscências de línguas que, no entanto, desapareceram; segundo a qual os homens se dispersaram, enquanto sua posteridade se reproduzia infinitamente. Sobre ela, podemos apenas alimentar conjecturas; certamente ela era pobre em palavras e continha somente os conceitos sensíveis [sinnlichen Begriffen]; as primeiras abstrações Abstraktionen], como propriedades dos homens, receberam seus nomes a partir de coisas análogas. Qualquer língua-filha derivada dela aumentou o número de palavras segundo suas necessidades, após o que cada uma adicionou, ainda, seu caráter à contemplação tranquila e à profundidade reflexiva.
A religião desses povos é a segunda coisa que queremos considerar neles. Aí, sua relaçào com

Deus se figurou tão pueril e intimamente, a ponto de carregarem os nomes de filhos de Deus, que temos de conceber seu serviço religioso como sendo muito infantil. Despertou neles o desejo de preparar para seu Pai uma oferenda; eles escolheram o que lhes era mais caro, mais valioso em suas posses e lhe trouxeram alegremente em sacrifício. Pressionados pelo incômodo de suas faltas, procuraram se reconciliar com a ira paterna com sacrifícios e ofertas. Seu coração foi tocado pelas dádivas de seu Deus, pela salvação de um perigo iminente, por sua todopoderosas grandeza e força, que falou através do trovão, cujos mensageiros são o relâmpago e a tempestade, diante da qual as montanhas tremem e os montes desmoronam.

Admiração e espanto sublime os tomam, a fumaça sacrificial sobe alto no éter azul; sua boca dilata em louvor e glória ao Todo-Poderoso. E o medo e o termor continua a lhes dominar, um perigo iminente acena diante de seus olhos, seu olhar cai, cheio de preocupação, sobre os queridos membros da família, sobre seus bens mais amados; um suspiro sai de seu peito, eles reconhecem sua impotência, eles reconhecem que são fracos e desamparados. Seus pedidos
sobem ao trono celestial, sua súplica clama pelo auxílio do Deus todo-poderoso, misericordioso.

As intuições [Anschauungen] que um serviço religioso coloca como fundamento são tão naturais e espontâneas, e correspondem de tal modo à relação mais próxima com o criador todopoderoso e protetor benevolente, que nós podemos praticamente conceber uma relação íntima de Deus com os homens. Foi assim que, principalmente, a figura da divindade se tornou compreendida sensivelmente. A frase tão singularmente séria e cheia de significado “Deus é um espírito”, adequada à sua inocência natural e a seu pouco desenvolvimento conceitual, teria sido para eles um segredo escondido, um enigma indecifrável. Uma outra influência que a religião destes povos sofreu, é a tendência ao maravilhoso, à fé nas aparências e à interpretação dos sonhos, propriedades que poderíamos denominar praticamente como características fundamentais da natureza humana, que, por si só, não pode se deslocar completamente em direção a uma cultura [Kultur] mais avançada. Talvez essa propensão ao sobrenatural não seja senão uma espécie de instinto [Instinkt] divino dos homens, sua pulsão [Trieb] para o celestial e o espiritual. Esta direção do espírito foi também o fundamento com que uma doutrina religiosa tão simples gradualmente gerou uma mistura pagã, ou mesmo resultou em um progressivo politeísmo.

Consideremos os judeus, como seu mais puro serviço religioso em contato ou em guerra com outros povos assumiu muitas formas estrangeiras, que, ao passar do tempo, quase se naturalizaram como doutrinas de fé israelitas. A própria idéia de Deus foi tornada mais sublime e adequada ao espírito popular mais avançado, mas também mais distante.é verdade que não raramente aparecem os pensamentos que, de certa forma, atravessaram toda a antiguidade judaica – que Jeová seja Deus somente de Israel, e que, sobre todos os outros deuses, reina como deus mais alto; certamente ecos de um politeísmo, contudo, não desenvolvido. Em outros povos, que eram dotados das nobres vantagens do espírito e do vantajoso sentido filosófico de profundidade, as sublimes doutrinas de um espírito distante ultrapassaram a simples fé em um

Deus. As forças selvagens da Natureza, o surgimento dos anos e do tempo, propriedades particularmente divinas, formaram uma obscura apresentação de uma quantidade de seres superpoderosos, em cujas mãos estaria o destino de todos os indivíduos. O pensamento sobre os bons e maus espíritos despertou. O cuidado de atrair para si os bons, de afastar de si os maus, encheu o peito de todos os homens. Ocorreu, então, que os homens com sentido de profundidade, os que carregavam as vibrações de uma imaginação desenfreada, se deram como tarefa serem os enviados dos mais altos deuses, fundaram um novo culto divino, e disseminaram em seu povo, a partir de então, através da doutrina e do exemplo, o que se referia aos fundamentos da moral.

Certamente de modo similar tiveram lugar as religiões dos povos mais espitualizados da antigüidade, na medida em que se formaram segundo o caráter de cada nação em particular.

Estas doutrinas divinas estão, ainda em sua origem, completamente separadas das mitologias dos séculos seguintes, quando os dogmas fundamentais de uma quantidade fantástica de fábulas foi distorcido e eliminado. E, assim, uma religião que continua a se desenvolver, precisa sempre, e intermitentemente, levar a um ponto de vista no qual o desejo de uma doutrina mais pura, mais natural, se revela, no qual filósofos inspirados rejeitam o único Deus como fonte de todo ser. É tarefa da religião cristã se antecipar a esse desenvolvimento e despertar a necessidade de uma doutrina mais sofisticada, mas que não operasse uma intervenção violenta e, desse modo, perturbadora e dissipativa, no progresso religioso de uma religião pagã. Mas, do mesmo modo, é necessário e adequado ao pensamento original do cristianismo, que todos os povos extraiam de sua condição desgraçada, tão logo quanto possível, o amor, e que sigam em direção aos braços da única e benfazeja igreja.

Consideramos, assim, como se desenvolveram os Estados desses povos, e em que ordem se dá a forma de governo. Mas aí precisamos, antes de mais nada, falar algumas palavras sobre o estilo de vida geral destes povos no menor grau de sua cultura [Kultur]. Tão descontentes com a dura vida de pescador quanto com o monótono estilo de vida dos povos caçadores, eles procuram as estepes mais extensas e ricas em pasto, que se prestavam com facilidade ao cultivo.

Aí eles estabelecem, com outras famílias, redidência fixa, na qual, através de uma comunidade social, acreditam se proteger contra o ataque de povos saqueadores vizinhos. Essa união se estreita ainda mais através dos casamentos, e, assim, estas famílias se misturam cada vez mais umas às outras. Como se desenvolvem aí, facilmente, todos os mais delicados sentimentos, que fazem da pátria dos homens, dos pais, dos parentes e amigos, algo sempre querido e inesquecível:
que exemplos emocionantes de uma relação familiar íntima e um sutil sentimento de amizade entre os homens não encontramos nas narrativas dos escritos sagrados, que nos desenha uma pintura tão amável de uma vida patriarcal! Um tal grau de cultura [Bildung] se externaliza também na hospitalidade, uma virtude que já se mostra nos mais antigos povos que conhecemos, e que nos coloca diante dos olhos, mais confiável que qualquer outra, uma civilidade sutil e uma alta dignidade humana. Essa época gozava de uma reputação particular; os homens mais velhos e mais reverenciados eram os avatares de suas famílias, os conselheiros da juventude, os pastores efetivos, os juízes dos litigantes; suas bençãos atribuíam maravilhosa força, sua partida estava associada a uma tristeza geral, já que todos tinham perdido seu pai.

Assim repousava todo o poder nas mãos dos patriarcas, e isso freqüentemente não era irrelevante, especialmente para aqueles tempos onde quase toda cidade tinha um rei que não podia viver em paz com as localidades adjacentes. Esta condição pertence, entretanto, apenas aos tempos mais antigos; se pensarmos a partir de Israel, que se considerou ainda por muitos séculos como um reino divino e elegeu os soberanos com pompa quase oriental, e que, somente mais tarde, quando a força e a florescência haviam quase sumido, ergueram-se aí reis por toda parte, e geralmente de modo repentino, gerados, principalmente, pela urgência das circunstâncias; é por isso que em nenhum momento pareceu necessário a muitas famílias recorrer à proteção de um homem importante quando a guerra e o assassinato se inflamaram devastadora e aniquiladoramente nas fronteiras. Estes reis souberam, em seguida, manter sua reputação não apenas durante seu governo, mas também passá-la à posteridade, de modo que o reinado freqüentemente permanecia, através de muitos séculos, em uma família privilegiada. Sob um tal governo, o espírito popular precisou se deselvolver mais fortemente, o brilho de seus primeiros feitos de guerra encorajaram novas conquistas, o contato com outros povos exerceu uma influência benéfica em seu estilo de vida; o cultivo da terra não permaneceu seu único negócio; a agricultura se expandiu – uma evidência de que o espírito não se preocupava apenas com os cuidados com o presente, mas também começava a olhar o futuro refletida e preventivamente.

Os primeiros traços da arte se mostram; grandes construções, menos pela sua beleza que por suas formas de efeito monumental, seriam iniciadas com espantoso esforço. Perpetuar-se através de algo de tal magnificiência, deve ter sido a causa principal de todas estas obras grandiosas, inspirar a milenar força dos povos primitivos e sua imponência ainda atual.

Sabemos também que a música destes povos já era conhecida, e que ela foi logo utilzada tanto para divertimento quanto para o despertar de uma vontade de luta mais selvagem, ou em um culto religioso festivo.

Sabemos também que já descendiam destes tempos os primórdios da arte poética; se algo poderoso erguia o espírito ainda bruto, se ele elevava sua imaginação mais alto, então sua língua se submetia ao ritmo da música. Em imagens sublimes e com força mais potente ele cantava o louvour do Deus todo-poderoso, a glória da natureza, a derrota dos orgulhosos inimigos. O homem começou logo a refletir sobre o edifício do universo; ele reconheceu o significado dos astros, e acreditou notar em si a influência deles. No lugar dos corpos celestes conjurou maravilhosos sistemas e significados. E além de muitas coisas fabulosas, ele fez também a mais importante descoberta – ele utilizou o curso solar e lunar para engenhosos cálculos.

O comércio com outros povos, que até então se baseava na troca, foi singularmente refinado pelo uso dos metais, e é muito provável que pastores tenham descoberto primeiro estas pedras brilhantes no pé de montanhas ricas em metal, que, por sua dureza e beleza, logo assumiram valor e vigência generalizados. Que o metal e o ferro já fossem conhecidos nos tempos mais remotos nos ensina a sagrada Escritura. Ouro e prata teriam sido mais tarde encontrados e contribuíram mais para a expansão da arte e da vida luxuosa que para um uso prático.

Então, a prosperidade, os costumes e o comércio aumentaram cada vez mais; despertou a necessidade de preservar para a posteridade, através da descrição de relatos, as mais importantes leis e acontecimentos, e de perpetuar o brilho do tempo presente. Estamos em um ponto onde o espírito humano faz a mais importante descoberta, cumpre o feito mais bem-sucedido de toda a antigüidade. Logo que um povo tem, em primeiro lugar, sua língua escrita, é incorporado à série de povos cosmopolitas, e pode produzir, através da palavra e da ação algo significativo para o caminho do desenvolvimento de toda a humanidade.

Basta! O que eu tenho a dizer a respeito da decadência da cultura em certos povos guardo para uma próxima vez. Mas se alguém deve me acusar de, no assunto sobre o qual acabei de falar ter enfatizado muito pouco os aspectos obscuros destes povos, peço que considerem que nos deslocamos com alegria e amor para todos os períodos de desenvolvimento, nos quais uma avalanche plena de luz desemboca em todos os séculos; mas não para desenhar também cores sombrias em uma pintura que reluz em brilho gentil e frescor vivo em todos as eras.

Revista Índice [http://www.revistaindice.com.br], vol. 01, n. 01, 2009/ 2

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Todos nós viemos da África

Evidências arqueológicas reforçam a teoria, baseada em estudos de DNA, de que o Homo sapiens surgiu no leste da África há quase 200 mil anos e migrou para os outros continentes


Equipe Planeta

De alguns milhares a 6 bilhões
Recentes descobertas arqueológicas confirmam estudos genéticos segundo os quais toda a nossa raça se origina de um pequeno grupo de humanos que viviam há 80 mil anos no leste da África. Com idade entre 33 mil e 39 mil anos, o crânio Hofmeyr (à esquerda), da África do Sul, é muito parecido com o de seus contemporâneos europeus.

As modernas análises por DNA já confirmaram: todos nós descendemos de alguns milhares de africanos – entre 2 mil e 6 mil, provavelmente – que viveram há 80 mil anos e partiram de seu lar na África Oriental numa única onda migratória, terminando por povoar todos os outros continentes. Segundo esses estudos, a migração foi rápida – nossos antepassados chegaram à Ásia 60 mil anos atrás, e a Europa foi ocupada há 40 mil anos. Mas, para diversos especialistas, esses dados ainda não eram convincentes. Eles alegavam falhas na datação e nas premissas que originaram os estudos. Sua exigência era simples: evidências arqueológicas que endossassem as descobertas feitas via DNA.

Com o tempo, essas evidências estão surgindo – algumas novas, outras antes esquecidas e agora revisitadas. E o painel que estão compondo revela uma extraordinária aventura: a de uma raça – o Homo sapiens – que, de repente, saiu de sua terra-mãe para conquistar um planeta.

O primeiro indício arqueológico a confirmar a tese dos estudos de DNA foi a pesquisa realizada em 1992 por Paul Mellars, professor da Universidade de Cambridge e uma das maiores autoridades do mundo em rotas de migração utilizadas pelo homem primitivo, a partir de um ovo de avestruz de cerca de 35 mil anos encontrado na Índia. As gravações inscritas na casca do ovo eram muito semelhantes às de uma peça ocre de aproximadamente 75 mil anos de idade descoberta na África do Sul, a dez mil quilômetros de distância. A semelhança de outros objetos da mesma época encontrados na Índia e no Sri Lanka – pontas de flechas, pás de pedra primitivas e pequenas contas feitas de carapaça de avestruz – com os produzidos por africanos 40 mil anos antes reforçaram a idéia de Mellars de que havia ligação entre as duas populações.

DURANTE UM BOM tempo essa linha de pesquisa não foi aprofundada, talvez porque a tese de Mellars tenha sido divulgada apenas em publicações arqueológicas indianas, cuja importância era desconsiderada no Ocidente. Quinze anos depois, porém, surgiram novidades a partir da pesquisa feita por uma equipe internacional liderada pelo paleontólogo Alan Morris, da Universidade da Cidade do Cabo, a respeito do crânio Hofmeyr.

Considerado antes uma relíquia sem grande valor, esse crânio humano havia sido encontrado em 1952 perto da cidade sul-africana de Hofmeyr, durante as obras para a construção de uma represa. Como nenhuma matéria orgânica restara na peça, ela não havia sido submetida a uma datação por carbono-14 – e, assim, tornara- se uma simples curiosidade no escritório de Morris, onde ser via como peso para papéis.

Um antigo colega de Morris, Frederick Grine, da Universidade Estadual de Nova York, mudou esse estado de coisas. Grine sugeriu a Morris que se fizesse a datação dos grãos de areia alojados na cavidade que havia abrigado o cérebro, e a idéia deu certo: especialistas atribuíram à relíquia uma idade entre 33 mil e 39 mil anos. Isso colocava o crânio dentro de um período – entre 75 mil e 20 mil anos atrás – que originou o menor número de descobertas de restos humanos na África, enquanto homens anatomicamente modernos despontavam na Ásia e na Europa.

Expansão rápida
A disseminação do Homo sapiens pela Terra se deu a partir de uma única onda migratória, que em apenas 10 mil anos levou a raça até a Austrália. Depois, a migração avançou para o norte.
Entre 60 mil e 80 mil anos atrás
Um grupo entre 2 mil e 6 mil humanos que habitavam a África Oriental desenvolveu habilidades mentais que o capacitaram a sobreviver melhor do que seus predecessores em condições difíceis. Essa população cresceu rapidamente e se espalhou pela África.
Entre 50 mil e 60 mil anos atrás
Usando a Península Arábica, esses humanos começaram a migrar para a Ásia. A ocupação foi feita seguindo a linha do litoral, chegando ao sudeste do continente. Alguns desses migrantes chegaram à Austrália.
Entre 40 mil e 50 mil anos atrás
A partir do litoral, esses povos foram para o norte, pelo Oriente Médio. Um grupo seguiu pelo sul da atual Rússia e dividiu-se – parte foi para a Europa, parte para a Ásia. Alguns entraram na Europa via Turquia; outros povoaram a costa mediterrânea da África.

O passo seguinte foi dado pela paleoantropóloga Katerina Harvati, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária em Leipzig, na Alemanha. Ela submeteu o crânio a medições tridimensionais a fim de compará- lo com amostras de ossos modernos europeus, asiáticos e bosquímanos sul-africanos, além de crânios de humanos da Idade da Pedra e do homem de Neandertal. Resultado: o crânio de Hofmeyr era muito parecido com os dos primeiros humanos modernos europeus, os mais distantes em termos geográficos.

Essa semelhança indica que, há uns 35 mil anos, os humanos modernos sul-africanos e europeus partilhavam um ancestral comum muito recente, provavelmente membro de um povo da África Oriental que migrara entre 50 mil e 60 mil anos atrás.

As semelhanças nas gravações da pedra sul-africana (esquerda), feitas há 75 mil anos, e as da casca de ovo indiana (direita), de 35 mil anos atrás, indicam que os responsáveis por elas tinham as mesmas origens.

Uma das rotas desses viajantes levou ao sul, mas outra seguiu na direção nordeste, envolvendo inclusive uma travessia de mar – no Estreito de Bab-al-Mandeb, que separa o Iêmen, no sul da Península Arábica, de Djibuti, no nordeste da África. Depois da travessia, os migrantes seguiram a linha do litoral, chegando à Índia e rumando depois para a Indonésia e a Austrália, onde chegaram há cerca de 50 mil anos. Essa teoria é reforçada por esqueletos com idade entre 45 mil e 50 mil anos encontrados no sul da Austrália e na ilha de Bornéu.

O estímulo para a criatividade
Iniciada há cerca de 70 mil anos, a glaciação Wisconsin, última etapa da mais recente Era do Gelo, pode ter criado as condições climáticas que impulsionaram o Homo sapiens a empreender sua migração. Embora não tenha reduzido muito as temperaturas na África, ela diminuiu a evaporação dos oceanos, o que levou a uma queda nas precipitações pluviométricas e, no caso africano, a secas drásticas. Outro fato veio piorar a situação: a explosão do vulcão Toba, na Indonésia, há 74 mil anos. As nuvens de cinzas liberadas pelo vulcão tomaram a atmosfera terrestre, reduzindo a passagem da luz solar por vários anos e resfriando ainda mais a superfície do planeta.

Quem tinha mais chances de sobreviver nessas condições diferenciadas? Aqueles com maior capacidade cerebral, que podiam criar novas idéias, ferramentas, armas, invenções e artes. Esse estímulo forçado à criatividade dado pela natureza foi um fatorchave na ascensão do Homo sapiens a rei da Terra.

Durante a última Era do Gelo, os antigos europeus tiveram tempo e recursos para desenvolver suas habilidades artísticas, como demonstram as pinturas rupestres encontradas em cavernas do continente.

CURIOSAMENTE, NOSSOS antepassados não aproveitaram o vale do rio Nilo para chegar à costa do Mediterrâneo. Em vez disso, conforme estudos de DNA publicados em 2007 na revista Science, eles a atingiram entre 40 mil e 50 mil anos atrás, após passar pela Península Arábica, pelo Oriente Médio (onde parte deles seguiu rumo norte, dividindo-se entre a Europa Oriental e a China) e a partir daí na direção oeste, chegando à Europa pela atual Turquia e ao litoral norte da África através da Península do Sinai.

Todas essas rotas migratórias colocaram nossos antepassados em contato com as mais diversas condições ambientais – diferenças geográficas, climáticas, de fauna e de flora, por exemplo – e, em particular, com outras espécies humanas, estabelecidas naquelas regiões havia milhares de anos. Eles superaram todos os obstáculos e adaptaram-se a esses ecossistemas variados.

Descobertas recentes na Rússia e na Ucrânia, por exemplo, mostram que o Homo sapiens foi mais capaz de enfrentar climas rigorosos do que o homem de Neandertal. Os pesquisadores encontraram ali o mais antigo sinal de arte decorativa – um rosto semi-acabado gravado na presa de marfim de um mamute, datado em 45 mil anos. Os vestígios do homem de Neandertal na área vão até 115 mil anos atrás, com o início da Era do Gelo; depois disso, esse povo partiu para o sul e nunca mais voltou. Resistindo ao clima severo daquelas terras, o Homo sapiens já mostrava que vinha para ficar.

A pergunta que surge daí é inevitável: o que tornou nossos ancestrais aptos a – de repente, em termos arqueológicos – espalhar-se pelos continentes e conquistar o planeta? Só para relembrar, o crânio mais antigo de um Homo sapiens, encontrado em Omo (Etiópia), tem cerca de 195 mil anos de idade. O que, depois de uns 115 mil anos, lhes permitiu tomar a África e, em seguida, o mundo?

É bem provável que uma grande mudança tenha ocorrido então. Diversos pesquisadores falam de uma “explosão de criatividade”, um aumento na capacidade de processamento cerebral suficiente para permitir ao Homo sapiens a criação da primeira linguagem complexa, de novas estruturas sociais, de maneiras mais eficientes de produzir ferramentas, de padrões diferentes de arte – enfim, dos elementos que compõem uma cultura mais avançada. Arqueólogos também falam de indícios de que objetos eram transportados por longas distâncias, o que leva à suspeita de que já havia alguma forma rudimentar de economia, na qual itens como adornos, alimentos e ferramentas eram trocados.

Outro fator indicativo de que alguma coisa extraordinária aconteceu no cérebro do Homo sapiens foi a descoberta de esqueletos de homens anatomicamente modernos nas cavernas de Skhul e Qafzeh, em Israel, datados entre 90 mil e 100 mil anos. Nos dois locais foram encontrados itens com ocre e adornos, uma evidência de que ali se faziam ritos funerários com oferendas para os mortos. Tais características de uma consciência mais elevada, porém, não foram suficientes para fazer esses ancestrais se fixarem ali de vez: os restos de homens de Neandertal encontrados em camadas do solo mais antigas e mais recentes mostram que aquela passagem do Homo sapiens pelo Oriente Próximo foi efêmera.

A migração seguinte, entretanto, já não abriu mais espaços para os rivais. Em alguns milhares de anos, os homens de Neandertal – que ocuparam a Europa por pelo menos 300 mil anos – foram totalmente substituídos por nossos ancestrais. Em todos os outros lugares onde houve competição, a superioridade cerebral do Homo sapiens prevaleceu. O passo seguinte, e inevitável, veio na medida da ambição da raça: o próprio planeta.

A história segundo o DNA

A genética ofereceu um novo caminho para se estudar a história humana: o DNA, ou, mais precisamente, o cromossomo masculino (o “Y”), e a mitocôndria, a parte da célula que responde pela produção de energia. Como ambos não sofrem a mistura de genes do pai e da mãe durante a fecundação, as mutações que apresentam servem como verdadeiros “códigos de identificação” dos diversos povos.

Ao migrar para outro ambiente, um povo passa a acumular em seu código genético mutações diferentes daquelas pessoas que permaneceram no mesmo local. Depois de alguns milhares de anos, os migrantes dão origem a novas populações. Os geneticistas concluíram que a humanidade nasceu na África porque em nenhum outro continente há tanta diversidade genética. Já os europeus são os caçulas: têm “apenas” 40 mil anos de idade, ante 80 mil dos africanos e 50 mil dos asiáticos.

Revista Planeta

Samurais - Os guerreiros da honra

Nos tempos do Japão feudal, os samurais defendiam seus territórios com a própria vida se preciso fosse. A partir do século 17, eles aos poucos foram desaparecendo. Mas seu inflexível código de honra e impecável conduta até hoje influenciam o povo japonês


Fabíola Musarra

Muito retratada em livros, pinturas e superproduções cinematográficas, a imagem do samurai chegou ao século 21 envolta em uma aura mítica e por vezes até romântica. Uma imagem, no entanto, bem distante da realidade vivida por esses guerreiros na época do Japão feudal. Filmes, como O Último Samurai (dirigido por Edward Zwick e estrelado por Tom Cruise e Ken Watanabe), e a dificuldade do mundo ocidental em compreender a complexa cultura e tradições japonesas contribuem para formar uma visão estereotipada desses bravos combatentes: enquanto uns acham que eles são personagens legendários, outros sustentam que são fanáticos sedentos de sangue. Heróis? Bandidos? Admirados? Temidos? Afinal, quem são e como viveram esses lendários combatentes do antigo Japão?

Ao contrário do que a ficção retrata, não havia nada de romântico na vida dos samurais. Eles surgiram como um produto das circunstâncias históricas do Japão, de uma longa evolução social e política que culminou nos séculos 17 e 18. Com extensão territorial limitada e dividido em feudos, o pequeno arquipélago era um campo de constantes batalhas pela posse de terras nos séculos 10 e 11. Essas disputas medievais e a necessidade de defender as propriedades do daymiô (senhor feudal) e, no século 13, as próprias fronteiras do país ameaçado pelos mongóis, favoreceram o aparecimento dos samurais. Essa classe social guerreira mudaria para sempre a trajetória do Japão, ajudando a unificar o país e a fazer dele uma nação.

A origem dos samurais, na realidade, remonta aos séculos 4 a.C. e 3 a.C., quando começaram a surgir elites armadas nos grupos tribais que formaram pequenas entidades sociais. Esses grupos foram se convertendo, um a um, em grandes clãs submetidos às autoridades provinciais do império. A relação conflituosa entre esses clãs abriu portas para a formação de milícias que deveriam proteger os interesses dos vários senhores feudais, e os do próprio império. Os membros dessas elites guerreiras eram conhecidos como bushi, termo que significa "aquele que serve" e que com o tempo acabou se tornando sinônimo de guerreiro.

A ascensão dos samurais como uma classe social começou no período Heian (nome da então capital do país, a atual Kyoto), com a derrota do governo aristocrático Taira, na Guerra Genpei, no fim do século 12, quando o clã de Minamoto no Yoritomo vence o conflito e recebe o título de xogum: um título de distinção militar concedido pelo imperador, equivalente a comandante do exército.

A partir daí, e ao longo de mais de 400 anos, o imperador era o legítimo governante, mas era o xogum quem governava de fato o Japão. Quem era agraciado pelo imperador com esse título tinha autoridade civil, militar, diplomática e judiciária. Vale lembrar que durante todo esse período o Japão teve três xogunatos. O primeiro foi o estabelecido em 1192 por Minamoto no Yoritomo, conhecido como xogunato Kamakura. Já o segundo é conhecido como Ashikaga e foi fundado em 1338 por Ashikaga Takauji, enquanto o terceiro foi o de Tokugawa Ieyasu.

Em 1600, Tokugawa venceu a batalha Sekigahara, na província de Mino, tida (não sem razão) como uma das maiores de todas: em apenas seis horas de confronto, morreram em torno de 35 mil homens só do lado derrotado. Mas o massacre durou três dias e foi uma verdadeira carnificina, especialmente se for considerado que naquela época as lutas aconteciam olho no olho, homem contra homem, espada contra espada. Pouco a pouco, Tokugawa ia vencendo os clãs rivais. Como recompensa, o imperador lhe concedeu o título de xogum.

As principais armas dos samurais eram a katana, uma espada curva, que somente era usada com outra espada: a wakizashi, uma arma mais curta com a lâmina mais larga. As duas espadas juntas são referidas como daí-shô, cujo uso era um privilégio exclusivo deles

Tokugawa, então, passou a ser o senhor absoluto do Japão, dando início ao período Edo (1603-1868), assim chamado numa referência ao nome da cidade de onde ele tomava as decisões políticas (a atual Tóquio). Ao assumir, tornou hereditário o xogunato, criando assim a dinastia dos Tokugawa. Por sua vez, o imperador viveu na antiga capital, Heian. Esse foi um longo período que contribuiu para configurar a imagem estereotipada do país: sedutoras gueixas, casas de chá, imponentes lutadores de sumô e arrogantes samurais.

Como consequência de o xogunato tornar-se hereditário, desde o berço a criança nascida em uma família de samurai era educada em um regime de autodisciplina e de exercícios contínuos. Em geral, o treinamento das artes marciais começava por volta dos 5 anos. Os filhos de famílias ricas (a riqueza era medida em unidades de arroz, okoku) frequentavam academias, onde aprendiam literatura, artes e habilidades militares. O tipo e a frequência dos treinamentos de um samurai dependiam da riqueza de sua família. Nas de menor poder aquisitivo, os filhos eram enviados às escolas dos vilarejos para receber instrução básica e o seu treinamento normalmente era feito pelos pais, tios ou irmãos mais velhos.


Cada prega do hakama(calça) simboliza uma das sete virtudes que um samurai deveria ter: a honestidade, a lealdade, a coragem, a perseverança, a benevolência, a compaixão e a sinceridade

A sociedade feudal japonesa

Na sociedade japonesa do século 16, os samurais formavam uma casta a serviço da alta nobreza, os daymiô, que exerciam o poder por meio de uma rede de ligações pessoais e familiares. Ao lado de sua família mais direta, os daymiô ocupavam o topo da hierarquia feudal. Abaixo deles, vinham os fudai (aquelas famílias que sempre estiveram a serviço daquela família principal) e, finalmente, os vassalos, que muitas vezes haviam sido antigos senhores que, derrotados, haviam jurado fidelidade, a fim de manter sua propriedade.

Por conta dessa estrutura, a rede de fidelidade dos "súditos" se ampliava e o poder do daymiô se fortalecia. Paralelamente a essa organização política, havia outra que inicialmente era estritamente militar e representava os samurais. Exímios praticantes de artes marciais e dotados de total controle sobre seu corpo e sua mente, os samurais, com o tempo, foram se tornando tão poderosos que ultrapassaram os limites dos feudos e acumularam influência política e militar.

Existiam muitas categorias de samurais. Abaixo deles, havia ossotsu (as tropas de infantaria), que, por sua vez, eram divididos em outras categorias. Exceto os de mais alto escalão, todos eles zelavam pelas propriedades do daymiô. Também de todos eles era esperado que respondessem de imediato ao chamado de guerra do seu senhor e que estivessem sempre prontos a combater, apresentando o seu equipamento em conformidade com a sua posição e a sua riqueza.

Na base da pirâmide estavam os ashigaru, que
eram a maioria dos combatentes. Eles eram os
arqueiros da infantaria, mosqueteiros e lanceiros e,
algumas vezes, mensageiros, porta-bandeiras, criados.
Por muito tempo, essa categoria representou a porta de
acesso à classe dos samurais.


Essa hierarquia social prevaleceu durante todo o
período Edo, no qual aparentemente nada mudou,
mas a prolongada paz desses anos acabou modificando
radicalmente a natureza dos samurais. Como não existiam
mais guerras, eles não tinham razão para lutar. Agora,
suas habilidades marciais só podiam ser testemunhadas
em duelos particulares.


Diante das novas condições, os samurais começaram a
ampliar sua formação intelectual e técnica e a integrar-se
na sociedade civil, na qual executavam tarefas educativas
ou administrativas. Administravam, especialmente, as
propriedades do daymiô a quem serviam, durante o longo
tempo em que ele era obrigado a permanecer na corte
do xogum, praticamente recluso.


Anos mais tarde, a burguesia em ascensão (chonin)
foi capturar o prestígio social que os samurais continuavam
a ter no país, num processo que poderia ser classificado
como uma fusão e que foi de fundamental importância para
a expansão e sobrevivência dos valores dos samurais na
sociedade japonesa até os dias atuais.

Independentemente de ser rica ou pobre, a criança ganhava uma katana (espada longa semelhante a um sabre) de madeira em uma cerimônia formal, rito que se repetiria na adolescência, desta vez com uma espada de verdade. A katana era uma das principais armas dos samurais - acreditavam que ela carregava a alma do guerreiro, devendo portanto ser muito bem cuidada e não ser exposta sem uma razão. Seu uso pelos civis havia sido proibido por um decreto de 1590. Portá-la era um privilégio dos guerreiros. Aprendizados à parte, o garoto, antes e acima de tudo, era educado para servir. Servir com lealdade ao seu senhor, a quem daria a vida se preciso fosse.

Desse modo, os samurais cresciam imbuídos do princípio da restituição do débito. A lealdade e a honra também eram levadas muito a sério por eles: lutavam até a morte para proteger a propriedade de seu senhor ou praticavam o harakiri (cortar o ventre com sua própria espada), caso o desonrassem. Da luta às relações sociais, todas as normas de vida e de conduta às quais o samurai tinha de se submeter estavam previstas no bushidô (o termo vem de bushi, guerreiro, e de do, caminho, e significa caminho do guerreiro), um inflexível código que colocava a honra acima de tudo.

Embora já estivesse definido no século 8, o bushidô somente foi instituído no século 17 e alcançou sua própria perfeição com a difusão dos princípios do confucionismo. O código tinha como meta aperfeiçoar o caráter por meio de rígidas regras de disciplina e comportamento e incluía a divulgação de vários princípios: gi (a atitude do justo),yu (habilidade), rei (o comportamento justo), makoto (sinceridade), meiyo (honra e glória) e chigi (lealdade).

Escrito por Taira Shigésuké, sábio confuciano e militar japonês da segunda metade do século 17, o texto de abertura do bushidô dá uma boa ideia do que era a vida de um samurai: "A primeira preocupação de quem pretende tornar-se guerreiro é ter a morte sempre presente no seu espírito, dia e noite, desde a manhã do primeiro dia do ano até à noite do Ano- Novo." Traduzindo: viver é estar preparado para a morte, é saber morrer - um samurai não podia praticar o harakiri nem morrer de qualquer jeito.

Ao contrário, se tivesse de morrer, ele não deveria resistir. Logo cedo, o jovem aprendia a se desapegar dos bens materiais e a desprezar a dor e a morte. Por isso, tinha de morrer com honra, sem demonstrar qualquer sinal de sofrimento até cair inerte, suportando a dor sem fraquejar. Contam que a morte dele deveria ser igual a de uma da carpa que, no momento que está para ser trucidada sobre a mesa, simplesmente se rende à morte sem a menor resistência.

O harakiri, suicídio ritual

A honra era tão importante para os samurais que era bastante
comum eles se suicidarem em face de um fracasso, ou se
tivessem violado o bushidô. Esse ato vinculado à honra
acabou se tornando um ritual, tomando a forma do
seppuku (também conhecido por sua expressão
mais popular, harakiri), que nada mais era do
que o modo de o samurai restaurar a honra do
seu daymiô e de sua família e cumprir a sua
obrigação de lealdade, ainda que tivesse
falhado como guerreiro.


Antes de cometer o seppuku, o guerreiro se
vestia com roupa apropriada. Depois, se ajoelhava
enquanto lhe entregavam uma faca embrulhada em
papel (posteriormente, foi substituída por um leque).
Com ela, o samurai cortava seu ventre da esquerda
para a direita, finalizando com outro corte para cima. Este
ritual, porém, não era um ato solitário: poucos samurais
acabavam sentindo na pele a dolorosa e lenta morte por
desentranhamento, pois outro samurai ficava em pé
atrás do suicida e o decapitava logo após o harakiri,
evitando que qualquer dor fosse sentida.



Não era só. Havia ainda a vingança. Mais que uma obrigação, ela era um dever do guerreiro. Se a honra de seu senhor fosse manchada ou se ele fosse morto, o samurai era obrigado a encontrar e matar os responsáveis. Um dos mais famosos contos sobre a vingança dos samurais é "Os 47 Ronin" (samurais sem um senhor para servir). Sob o governo Tsunayoshi, o quinto xogum Tokugawa (1646-1709), o senhor de Asano, foi condenado a praticar o harakiri instigado por um alto funcionário do xogum, chamado Kira. O código ético dos samurais previa que ele teria de ser vingado pelos seus homens. Comandados pelo oficial Oishi, os 47 ronin juraram vingança.

Por algum tempo, parecia que nada ia acontecer. Oishi levava uma vida depravada e os ronin pareciam ter esquecido o juramento, o que lhes custou o desprezo do povo. Mas foi exatamente esse falso esquecimento que fez com que Kira baixasse a guarda. Dois anos depois, em uma noite de inverno, o grupo invadiu o seu castelo e o assassinou. Presos, os ronin foram condenados a praticar o harakiri. O motivo da pena não foi porque eles cumpriram o seu dever de vingança, pois isso era o esperado, mas porque atacaram o castelo secretamente, o que era tido como uma desonra.

A longa trajetória dos samurais se estendeu até 1876, quando o uso das espadas foi proibido e a classe samurai, extinta. Apesar disso, o espírito desses incansáveis guerreiros, cujo estilo de vida aliava conduta irrepreensível, árduo treinamento e aperfeiçoamento constante, sobreviveu. Até hoje, os valores e as virtudes dos samurais fazem parte da identidade nacional do Japão. Ou melhor, ultrapassaram as fronteiras do país e as barreiras do tempo, e ainda agora o carisma desses míticos heróis continua encantando o mundo.

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Revista Planeta