quarta-feira, 17 de abril de 2019

A má-fé como discurso corruptor


Clóvis de Barros Filho* | Foto: Shutterstock | Adaptação web Caroline Svitras


O que significa um discurso de má-fé? O filósofo Sartre conceitua a má-fé como uma angústia existencial criada pela consciência da nossa liberdade de agir, uma tentativa de nos livrarmos da responsabilidade pelos efeitos colaterais de nossas decisões atribuindo a outras pessoas ou contextos as culpas decorrentes delas.

Mas qual a relação deste conceito com a Ética na Comunicação? Toda. O problema ético deste artifício discursivo é a corrupção da verdade, a falta de explicação pública do que realmente está acontecendo, a incapacidade que os outros envolvidos têm para solucionar os seus problemas da melhor maneira possível. A má-fé é uma comunicação falseada em benefício dos próprios interesses.

Quando um jogador de futebol realiza uma jogada ousada que termina em gol, não hesitamos em chamá-lo de craque, jogador diferenciado, aquele que desequilibra. Da mesma maneira, quando alguém decide no âmbito empresarial de maneira a aumentar as vendas, alargar a fatia de mercado da sua empresa, a concentrar o capital em volta de si, não hesitamos em chamá-lo de iluminado, de executivo de excelência, guru. Da mesma maneira, um político que em situações difíceis consegue cooptar a opinião pública, conservar o poder e, nos tempos de bonança, elege sucessores com facilidade, é um estrategista ímpar, dotado de inteligência indiscutível.

No entanto, nas situações contrárias a essas, como, por exemplo, no momento em que o jogador não joga bem, fracassa em levar sua equipe à vitória; ou o executivo que na hora de decidir acaba fazendo uma escolha equivocada que leva a resultados pífios; ou o político que perde o poder, não consegue se reeleger e apequena a influência de seu partido; nesses casos, as explicações costumam indicar como grande causa destas ocorrências fatores externos à própria deliberação, à própria ação. Elegem um bode expiatório como justificativa para a sua incompetência – Freud explica, Sartre satiriza.



Assim, a seleção brasileira não jogou bem devido à excelência do sistema defensivo adversário, pela marcação implacável dos defensores, por excesso de faltas, por, talvez, estar mais preocupada com os patrocinadores. Esse fenômeno também ocorre com algum executivo que tomou decisões equivocadas. Outro exemplo típico é o do político que fracassa, justificando sua derrota à ignorância dos eleitores, ao “aparelhamento do Estado” pelo adversário, ao jogo sujo do marketing eleitoral… Provavelmente esteja na sociedade errada, bem longe de Miami. Ilhado com um povinho que não valoriza a meritocracia, que não tem memória e outras parafernálias do gênero.

Assim, no sucesso destacamos a liberdade deliberativa e o acerto da escolha. No erro, destacamos a falta de liberdade deliberativa e todas as variáveis que, transcendendo ao agente que delibera, determinam o seu pesar. Há nesta estratégia uma má-fé na hora de encontrar as verdadeiras causas dos sucessos e dos fracassos. Afinal de contas, se somos todos vítimas da nossa trajetória, das condições em que vivemos, do meio ambiente, da temperatura, das ideologias, do sistema, das relações entre o poder executivo e o legislativo, da maneira como são escolhidos os deputados; se somos todos vítimas das coisas do mundo como elas são, então deveríamos aceitar com maior tranquilidade também que na hora dos grandes acertos não temos nenhum mérito. Porque tudo é o que só poderia ser. Materialismo radical que impossibilita o livre-arbítrio, o poder de decidir racionalmente. Atribuo os meus sucessos aos outros? Ou encaro o erro como exercício da própria liberdade? Eis os dilemas existenciais que um canalha não encara.

Os jornais midiáticos potencializam os discursos de má-fé de importantes agentes sociais que melhor beneficiam os seus interesses. Não questionam a lógica da liberdade ou da determinação. Ensinam que a má-fé é o “jeitinho brasileiro” para enfrentar os problemas sociais. Tomo como exemplo os problemas sociais de São Paulo. Quando ocorre o racionamento de água ou a corrupção no metrô, os jornalistas blindam os políticos que atendem os seus interesses e colocam a culpa no desmatamento da Amazônia ou nas falhas técnicas dos processos licitatórios. Não se cogita uma má gestão dos recursos naturais ou corrupção deliberada para beneficiar interesses particulares de políticos que os agradam. Tudo é fruto da contingência.



Porém, na notícia seguinte, os valores de avaliação moral do mundo mudam radicalmente. A crise financeira que afeta negativamente o PIB e exige mudanças fiscais não tem uma explicação na crise econômica internacional, mas na escolha econômica feita por políticos que desagradam os donos dos meios de comunicação. O mesmo ocorre quando descobrem um escândalo de corrupção em uma estatal do petróleo, os problemas são atribuídos aos políticos no poder e não às falhas nos processos licitatórios. Discurso ético radicalmente inverso ao anterior. Não há mais uma explicação contingencial – os jornais atribuem liberdade aos agentes sociais que erraram.

Um jornalismo sério deve adotar uma postura ética: Ou atribui aos “fatos jornalísticos” contingências materiais e históricas ou assume sua crença no livre-arbítrio.

Enquanto a mídia brinca com o sistema democrático, elegendo seus heróis e vilões, culpando e perdoando quem a interessa, ela tira o foco dos processos de corrupção social que ela mesma fomenta.

Revista Filosofia Ciência & Vida Ed. 109

Adaptado do texto “A má-fé como discurso corruptor”

*Clóvis de Barros Filho é professor de Ética da ECA/USP e conferencista do Espaço Ética. www.espacoetica.com.br
Revista Filosofia

Violência nas redes sociais e a banalidade do mal


A "liberdade de expressão" nas redes sociais e o aumento nos discursos de ódio e violência

Patrícia Cucio / Adaptação Web Rachel de Brito


Desde 2014, antes e após a reeleição da presidenta Dilma Roussef (PT), vimos surgir uma onda de posts agressivos e repletos de mensagens violentas nas redes sociais no Brasil.

Naquele momento, as publicações dos usuários, em geral, ligavam os nordestinos ao resultado do segundo turno da corrida presidencial. Chegamos a ter um deputado estadual de São Paulo defendendo a alteração da Constituição Federal para que os beneficiários de programas sociais, como o Bolsa Família, não votassem. E, por fim, postagens falando de uma possível divisão do Brasil – uma espécie de muro de Berlim – separando o Sudeste/Sul do restante do país pareciam ganhar força no mundo virtual.
O ódio não é preciso

Em 2016, no auge do processo político do impeachment (teria sido um golpe?) sofrido pela presidenta, pudemos observar, novamente, a divulgação de posts com mensagens de ódio, incitando a violência.

Muitas dessas publicações continham violência simbólica, aquela violência produzida pelos grupos dominantes e imposta aos grupos subordinados, a qual legitima e naturaliza um status quo, e mentiras que passaram a ser replicadas sem a devida crítica, ou seja, análise do conteúdo pelos diferentes usuários do dispositivo.

Porém nos enganamos ao pensar que essa violência e a criação de um inimigo comum surgiram agora no Brasil. A violência está presente em nossas relações sociais desde o período colonial.

Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, retrata as relações entre “brancos” e escravos e como a empreitada colonial no Brasil se fez debaixo de relações violentas e truculentas entre ambos.

Maria Tereza Caldera, em seu famoso livro Cidade de muros, levanta a hipótese da não efetivação dos direitos humanos no país ao discutir a questão “direitos humanos são para defender bandidos” e o potencial risco dessa não efetivação para a jovem democracia brasileira.

Vale ressaltar que após a abolição da escravatura e o surgimento dos cortiços e favelas, surge o conceito de “classes perigosas”, termo utilizado já em 1857 por Morel, em seu trabalho Tratado das degenerescências, para designar aqueles que não possuiriam “nem a inteligência do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa” (apud Coimbra, ibid., p. 88).

(Mendes) “Nossa política higienista do início do século XX foi baseada nesse conceito e muito do discurso adotado por nós, enquanto sociedade, é baseado nessa figura das classes perigosas e inimigo comum”. Notamos assim que “a violência simbólica tem um importante papel na reprodução dos estereótipos e dos estigmas sociais.

Goffman (1963) explica que o estigma e o descrédito constituem as marcas e atributos pelos quais alguém é criticado e marginalizado pela sociedade. O estigma e o descrédito, assim, são marcas construídas como ‘negativas’ por grupos e que caracterizam a identidade do Outro e das quais esse “Outro” não consegue se libertar. É uma marca percebida também em relação àqueles que não a possuem, que não são estigmatizados.

É como se a sociedade ficasse cega para os outros atributos que determinada pessoa tem, vendo apenas seu traço estigmatizado. Caracteriza, assim, categorias de indivíduos e as especificidades esperadas dessas categorias, através de seus estereótipos negativos” (Recuero; Soares, 2013).

Se por um lado esse discurso e violência simbólica já existem na sociedade brasileira e são constituídos de diversas maneiras e atores, as redes sociais online apenas os tornam mais visíveis a todos que dela fazem parte, pois a necessidade criada de compartilhar tudo faz com que esses discursos estigmatizados ganhem mais força devido à mudança no esquema comunicacional tradicional, um emissor (aquele que fala) para vários receptores (aqueles que escutam) e o diálogo entre eles era praticamente inexistente para vários emissores e receptores. Ou seja, muitos falando para muitos e sendo “vistos” por muitos.

Esse fluxo comunicacional ocorre através da publicação de informação de sua autoria ou do compartilhamento da publicação de outros sujeitos (de amigos ou de perfis empresariais e institucionais), que pode ser lida, “curtida”, comentada e/ou compartilhada.

Assim surge o público em rede (Boyd apud Recuero, 2012), que se caracteriza pela possibilidade de armazenamento do que foi publicado; a possibilidade de busca dessas informações; replicabilidade e o surgimento das audiências invisíveis.

É importante notar que ao compartilhar um link com informações que não foram produzidas por si, compartilha-se uma informação mediada por outra mediação (Recuero, 2012) e que carrega consigo o olhar daquele que primeiramente a publicou.
Internet e a banalidade do mal

Com essa facilidade de divulgar ideias e posições e o apelo por “participar” e se mostrar socialmente, notamos que a violência se torna cada dia mais banal. Hannah Arendt, ao analisar o contexto histórico do nazismo, nos alerta quanto à banalidade desse mal e os resultados que ele pode gerar. Percebemos isso a cada frase de ódio escrita com orgulho nas timelines de Facebook.

O ódio pelo outro, pelo diferente, pela opinião divergente, gerado pela falta de informação ou pela avalanche de informações das quais se leem somente manchetes. Um ódio que a qualquer momento pode se materializar e muitas vezes se materializa na violência, seja ela psicológica, física ou virtual.

Por estarem vinculados à nossa realidade social, esses discursos encontram ressonância e ao encontrá-la passam a ser legitimados por outros grupos, seja através da concordância, apoio, curtidas ou compartilhamentos.

O que perpetua a violência simbólica contida dentro dele que encontra sentido e explica a realidade para determinado grupo. Dessa forma, é necessário compreender que esse ódio aos defensores dos direitos humanos, aos ativistas negros, LGBTS e todas as outras minorias que sofrem ataques nas redes sociais on-line não é algo novo na sociedade brasileira, mas algo construído por subjetividades ao longo de um processo histórico no qual o sujeito não reconhece o outro como ser de direito que é.

O diferente passa a ser o culpado, o inimigo comum, que deve ser extirpado da sociedade. Nesse caso, aplicativos como Facebook apenas potencializam esse discurso, criando e alimentando a necessidade de luta/guerra contra o inimigo, afastamento e desqualificação dele enquanto sujeito participante da vida social.

Esses tipos de discursos e atitudes são encontrados em diferentes regimes ditatoriais, nos quais o diferente é visto como ameaça. Precisa-se de muita atenção para não estimular mais essa violência simbólica e, possivelmente, apenas com a mudança na forma como nossas relações sociais são construídas é que consigamos erradicá-la de nosso dia a dia.
Revista Filosofia

O Antigo Regime e a Revolução


O Antigo Regime pela visão de Alexis de Tocqueville


José Miguel Nanni Soares
As pessoas de todas as épocas carão espantadas ao ver as ruínas dessa grande casa de França que parecera destinada a estender-se por toda a Europa; mas os que lerem atentamente sua história compreenderão sem dificuldade sua queda… Quase todos os vícios, quase todos os erros, quase todos os preconceitos funestos que acabo de descrever deveram, quer seu nascimento, quer sua duração, quer ainda seu desenvolvimento, à arte que a maioria de nossos reis teve em dividir os homens, a m de governá-los mais absolutamente.”

Cunhado pelos franceses nos primórdios da Revolução de 1789 para demarcar a abrupta e radical ruptura efetuada na ordem do tempo – o início de uma nova era de liberdade e de igualdade em oposição ao passado de “despotismo” (monárquico) e de “privilégios” (da aristocracia/nobreza) que se buscava abolir -, o termo “Antigo Regime” recebeu seu primeiro grande tratamento historiográ fico na obra-prima do conservador-liberal Alexis de Tocqueville (1805-1859), O Antigo Regime e a Revolução, lançada em 1856.

É certo que antes de Tocqueville os historiadores liberais da Restauração (como Adolphe Thiers, Augustin Thierry e François Guizot) voltaram-se para o passado monárquico absolutista da França, visto como uma fase de transição entre o feudalismo e o sistema representativo, e cuja dinâmica interna fora marcada pela aliança entre a monarquia e o Terceiro Estado (vale dizer, a burguesia) contra a nobreza.

Sobretudo nas obras de Thierry e de Guizot, autores amplamente conhecidos por Tocqueville, a história da França era abordada sob o prisma da “evolução”, de modo que a Revolução de 1789 representava o coroamento do longo trabalho de ascensão política e social da burguesia, com a consequente adoção do regime representativo, sob os auspícios da monarquia francesa. Ou melhor, a Revolução fora acima de tudo uma necessária correção de rota ante a “reação nobiliárquica” do século XVIII (iniciada após a morte de Luís XIV, estendeu-se até a Revolução e explicaria o radicalismo da mesma), cuja repetição tratava-se de evitar durante a Restauração.

No entanto, essa historiogra fia liberal enfrentava sérias di ficuldades para responder ao retorno agravado do despotismo em 1793, 1799 e 1851, algo que não se enquadrava no seu modelo analítico filosó fico expresso no conceito de “luta de classes” e vitória das “classes-médias” (portadoras da liberdade política).

Se o terror e a ditadura revolucionários de 1793-4 podiam ser atribuídos à ameaça de invasão externa e à resistência contrarrevolucionária interna, o mesmo não podia ser dito sobre os dois momentos posteriores, quando o sistema liberal-representativo da classe-média sucumbira novamente ao despotismo político.

Diante disso, além de problematizar algumas interpretações historiográ ficas que, na esteira do discurso revolucionário, de finiam a Revolução como uma ruptura
completa com o passado, Tocqueville enxergava no Antigo Regime um fator subversivo das relações sociais e políticas na história francesa, na medida em que corrompeu o princípio aristocrático do feudalismo sem extingui-lo.

Como sabem os leitores de O Antigo Regime e a Revolução, a subversão em questão foi a que o Estado monárquico operou sobre a velha sociedade feudal, quando o poder político, então indistinto da superioridade social, passou a concentrar-se nas mãos do rei por meio do avanço da centralização administrativa. Nas palavras de Tocqueville:

“É a realeza que nada mais tem em comum com a realeza da Idade Média, possui outras prerrogativas, ocupa outro lugar, tem outro espírito, inspira outros sentimentos; é a administração do Estado que se estende por toda parte sobre os escombros dos poderes locais; é a hierarquia dos funcionários que substitui progressivamente o governo dos nobres. Todos estes novos poderes obedecem a procedimentos, seguem preceitos que os homens da Idade Média ignoravam ou reprovavam e que se relacionam com um estado social do qual eles nem sequer tinham ideia.”

Revista Filosofia

A origem do mal


A questão da gênese da maldade é um tema frequente no mundo da filosofia e da teologia

 Foto: Shutterstock | Adaptação web Isis Fonseca

Rabino Samy Pinto* |

Diversos pensadores já se arriscaram nas profundezas da alma humana para tentar encontrar a raiz desse grande mal que aflige a sociedade desde o Éden bíblico até os dias atuais, e que faz com que exista a persistência do erro. Este assunto, que ocupa capítulos da literatura universal, pode ter sua reflexão iniciada no próprio relato da Bíblia, no Gênesis, no trecho em que relata a criação do homem e a vida dele no Jardim do Éden.


No Éden, o homem recebeu, juntamente com o presente da vida e de todos os prazeres que aquele jardim podia proporcionar a ele, apenas um mandamento de se
abster de comer o fruto da sabedoria. Como é de conhecimento, a serpente seduziu a Eva, que por tabela levou Adão, a comer o fruto proibido, o que acabou por afastar ambos daquele paraíso.

Esse relato de Gênesis é importante para construir o pensamento sobre a origem do mal, somado à reflexão fundamental do grande filósofo e rabino italiano, da cidade de Pádua, Moshé Chaim Luzzatto. Ele escreveu em seu livro “Caminho de Deus” que o homem é recipiente do amor e bondade de Deus, e o melhor presente que este pode receber d’Ele não é o Jardim do Éden, mas sim a Si próprio.

Portanto, o maior bem que a humanidade possui é de se assemelhar ao Criador, e, nesse sentido, todas as virtudes que são associadas a Ele, as pessoas tem a capacidade, habilidade e competência de reproduzi-las. São elas o saber, a piedade, a bondade, a liberdade, entre outros, e para que essa última característica seja mais próxima de Deus possível foi dado também o livre arbítrio.
O livre arbítrio e a possibilidade do crescimento do mal

Para começar a entender a existência do mal na humanidade, é importante compreender que, assim como Deus é um ser livre, para o homem se assemelhar mais com o seu Criador é necessário que ele tenha a capacidade de agir sem restrições, sem prévias, não como um robô programado. Nesse ponto, em que o homem exerce sua liberdade, em que ele mais se assemelha com Deus, é que se cria a possibilidade do mal, como objeto para dar significado ao livre arbítrio.

Caso contrário, iria arbitrar o que? Qual seria a escolha a fazer? Seria o bem com o bem? O certo com o mais certo? A metáfora do Talmud em que a pessoa vai com uma vela em pleno dia ensolarada, demonstra muito bem o cerne dessas questões. Então, a existência do mal é na verdade um instrumento de criação divina para que o homem pudesse exercer o livre arbítrio.

No plano original da criação, o mal não fazia parte da humanidade, não era parte integrante de Adão e Eva. Quando se observa a literatura bíblica e os escritos do filósofo, Luzatto, se entende que o homem não tinha desejo interior, ou compulsão pelo mal, este não era interno, mas sim externo, no relato de gênesis representado pela figura da serpente do Éden.

Ela se torna a manifestação do mal para que os dois moradores do Éden exercessem o livre arbítrio. Ao receber o convite da serpente para provar do fruto da árvore da sabedoria, Adão e Eva poderiam debater ou até mesmo ignorar a oferta, assim superariam a tentação, mas no final optaram por dar ouvidos ao mal externo e seguir o conselho dela.

*Rabino Samy Pinto é formado em Ciências Econômicas, se especializou em educação em Isral, na Universidade Bar-Llan, mas foi no Brasil que concluiu seu mestrado e doutorado em Letras e Filosofia, pela Universidade de São Paulo (USP). O Rav. Samy Pinto ainda é diplomado Rabino pelo Rabinato chefe de Israel, em Jerusalém, e hoje é o responsável pela sinagoga Ohel Yaacov, situada no Jardins também conhecida como sinagoga da Abolição.
Revista Filosofia

Discussão política no Brasil


Veja como a situação política no Brasil está afetando as relações


A democracia nos países ocidentais, nos últimos anos, produziu resultados inesperados e surpreendentes. Lugar comum nas análises atualmente é a referência à falência das representações políticas tradicionais (ou dos políticos) e ao papel e a função das redes sociais, que teriam dado ensejo ao surgimento de lideranças mais caracterizadas pelo seu voluntarismo do que pelo conjunto das suas ideias e programas.

O que a primeira vista se apresenta como um conflito entre ideias de “esquerda e de direita”, não resiste à uma observação mais cuidadosa, a não ser que tomemos como válida a noção de que tal ou tal partido “representa” a esquerda ou sua essência, e o mesmo sendo válido para a direita, o que parece temerário e simplório; ou então que se tomemos como referência o viés “para o povo” em oposição ao “para as elites”, aceitando como qualificação, dizendo de forma simples, como “bons” os indivíduos que adotam a primeira, e “maus”, os outros.

A discussão política no Brasil coloca hoje em campos antagônicos anônimos, pessoas comuns que, justamente através das redes sociais tornam manifestas suas “posições políticas” – colocadas entre aspas dado a insuficiência dessa categorização – e deixando evidente um marcante grau de violência e intolerância.

Da mesma forma que pode-se discernir, na economia, a importância central dos fatores psíquicos -a diferença entre necessidade e desejo, o último impulsionando o consumo e a mercadoria como “fetiche”-, sem questionar aqui o seu mérito ou a sua inevitabilidade, apenas constatando a sua centralidade, pode-se igualmente lançar um olhar crítico sobre a centralidade, agora, dos fatores psíquicos na dimensão da atividade política dos indivíduos numa sociedade.

Por “atividade política” classifica-se não exatamente participação político partidária em legendas, mas posicionamentos e identidades em torno de ideias ou ideais, mesmo que de forma reservada, anônima, individual. É em relação a essa atividade política que a violência tem se destacado.
Conflito

Assistimos a um combate com aparentes matizes ideológicos. “Aparentes” porque existe um substrato que é composto pelas motivações subterrâneas que alimentam o conflito, e este é da ordem das paixões. Mas não apenas paixão como na analogia feita com o futebol. Há outros elementos a se observar, e embora sejam mais sutis e não tão visíveis, ocupam na verdade um lugar fundamental.

O primeiro: o caráter autoritário, não democrático, totalitário das ações e suas justificativas nos representantes deste ou aquele agrupamento ideológico.

Colocando-se como “portadores do BEM absoluto” tanto os da extrema esquerda como os da extrema direita – categorias, como dito antes, que já sem serventia mas aqui utilizadas para fins de clareza e simplicidade – seus atos seriam sempre justificados, meritórios. Quer seja “em nome do povo”, quer seja em nome da “moralidade e dos desígnios de Deus”, o que se encontra ao fim e ao cabo é apenas a defesa (silenciosa) de que os fins justificariam os meios. Desde que sejam os “meus” fins. Totalitarismo e fascismo. Negro e vermelho.

Além do desprezo pelo outro diferente e suas ideias, são aqueles proponentes de ações impulsivas, imediatistas, menos por convicção da necessidade de uma ação inadiável, e mais por incapacidade de vislumbrar a complexidade das sociedades contemporâneas, sua dimensão sistêmica e a interligação, muitas vezes, sutil entre seus elementos, e o como uma escolha eventualmente eficaz de forma local e momentânea pode revelar consequências desastrosas num tempo futuro, quando o sistema evolui no tempo, ou seja, advogam medidas rasas e sem perspectiva.

Movidos que são, basicamente, por motivações psicológicas, não aprendem com a experiência – rejeitam a percepção da realidade frustrante – e repetem sempre os mesmos erros.

Há uma obra ímpar no que podemos chamar de “psicologia sociológica” cujo conteúdo aplica-se diretamente ao que estamos vivendo no Brasil: “Psicologia de massas do fascismo”, de W. Reich, onde é analisada a estrutura irracional do ser humano médio na sua relação com a política.

Estão caraterizados tanto o fascismo negro (fascismo e nazi fascismo) quanto o fascismo vermelho (comunismo), nas suas ênfases na produção de dominação. E mais do que distinguir o modo de ação sobre as massas, é a psicologia do homem médio que é examinada, e como esta dá ensejo à existência da dominação.

Certamente este é o ângulo menos conhecido, e o segundo fator destacado: o psiquismo do ser humano passível de dominação, como este anseia por isso, o que leva um indivíduo não só a se submeter mas a buscar, a DESEJAR essa imposição. A referência ao homo demens no título assinala este viés. Não que a categorização de Morin implique uma negatividade, ao contrário, ao incorporar ao sapiens a dimensão do imaginário, da poesia e da arte, (paixão), Morin dá ensejo a uma outra racionalidade, uma que não seja apenas objetificação da realidade.

Tomo de empréstimo seu termo e uso de forma diferenciada, justamente para sublinhar a presença do psíquico, no sentido psicológico e psicanalítico (no viés reichiano) no quadro examinado, em especial a relação entre anseio e dominação, e como a violência ingressa nesse quadro. Me refiro a uma parte da população, não toda ela. Mas parte significativa. E o acréscimo que fiz do termo paixão na listagem serve para apontar que é um falso dilema a oposição absoluta racionalidade/paixão, a segunda não tem intrinsicamente negatividade.

Não é difícil ao olhar do observador treinado encontrar motivos pouco nobres em muitas manifestações de revolta contra o quadro de corrupção sistêmica em que se transformou a realidade política brasileira.

O Júbilo manifesto ao momento da revelação de uma condenação por desvio de verbas deixa antever muitas vezes menos o senso ético e mais a satisfação de uma inveja silenciosa aplacada (ele teve vantagens que eu não tive, morro de inveja mas agora ele irá pagar!).

Lembrando que que o foco aqui é o júbilo, e não a concordância com a condenação, o que é sublinhado. Inveja, raiva, destrutividade etc., são fáceis de encontrar como motivações silenciosas de simpatias, antipatias e posturas ideológicas em política, sob um olhar psicanalítico.

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Por Nicolau José Maluf Jr. | Foto Shuttersotck | Adaptação web Isis Fonseca
Revista Filosofia

segunda-feira, 15 de abril de 2019

BRASIL ‘MESTIÇO’

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Monica Lima
Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro
“O Brasil é um país mestiço.” Essa afirmação, tão comum ao se falar da composição da população brasileira, e que tem seu lado de verdade, é generalizante demais – razão por que é muito perigosa. A ideia que vem associada é a de que somos um país de ‘mistura de raças’, e, por sua vez, deriva de um entendimento que não apenas reconhece a existência de raças, como quase sempre vem acompanhado do ‘mito das três raças’, que apresenta como base para a formação da população brasileira componentes indígenas, negros e brancos. Isso pode até dar letra de samba – mas será que faz sentido para nossa história?

Raça como conceito científico não existe. Também é errôneo pensar que o povo brasileiro é resultado da miscigenação de africanos, europeus e populações indígenas. Mesmo quando se incluem outras contribuições ‘raciais’, como japoneses e libaneses, nesse caldo, erramos ao afirmar que essa ‘mistura’ teria ocorrido de forma natural e quase sempre harmoniosa.

No século 19 e nas décadas iniciais do século 20, o cruzamento de ‘raças’ era considerado um perigo de degeneração, e o ‘embranquecimento’ da população, um alvo a alcançar. O pensamento dominante na época via o desaparecimento da herança cultural e biológica de negros e indígenas como fator de progresso.

 

‘A Redenção de Cam’, pintura de Modesto Brocos y Gomes, retrata uma família miscigenada: avó negra, mãe mulata, pai e filho brancos. No século 19, o ‘embranquecimento’ da população era um alvo a alcançar. (imagem: Wikimedia Commons)

Mas, ao longo do século 20, o Brasil se transformava: cresciam as lutas sociais, surgiam novas ideias e aumentava a presença popular na vida política. E esse povo que saía às ruas e passava a votar não era ‘puro e branco’ como no Velho Mundo, muito pelo contrário. Pouco a pouco, foram aparecendo novas formas de se referir aos brasileiros e, entre elas, fortaleceu-se a ideia de povo mestiço como um valor positivo e característico da nossa população.

O artigo ‘Das moscas aos humanos: a genética e a questão da ‘mistura racial’ no Brasil’ na CH 326 mostra como a questão da ‘formação racial brasileira’ era vista no século 19 – um dilema para a construção da nação e da identidade nacional – e revela o interesse dos cientistas, já em meados do século 20, no estudo da variabilidade genética da população brasileira.


Povo cordial?

Junto com a construção da ideia de que a mistura entre povos de diferentes origens sempre foi tranquila e natural por aqui, veio aquela sobre a índole pacífica e cordial do povo brasileiro. Seríamos uma combinação perfeita de gente de pele morena, sorriso nos lábios, muita simpatia, sempre vivendo em paz, mesmo em condições muito difíceis. Trata-se de uma bonita imagem para ser assumida internamente e vendida como mercadoria atraente ao exterior. Mas teria isso um fundo de verdade?
O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na história da humanidade

Se pesquisarmos a história do Brasil, a resposta é não. Uma longa trajetória de lutas e resistência de africanos e seus descendentes escravizados, assim como de guerras promovidas contra grupos indígenas que lutavam para permanecer nas suas terras ancestrais, mostra totalmente o contrário. O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na história da humanidade: foram quase quatro séculos e mais de 4 milhões de africanos chegando aos portos brasileiros pelo comércio escravista. Somos o segundo país do mundo em população de origem africana, e o primeiro fora da própria África. E, hoje, mais da metade dos brasileiros se declara negro ou pardo.

Muitos de nós, entretanto, desconhecem o legado cultural dos povos africanos para o país. A história dos nossos antepassados até há bem pouco tempo não entrava nos livros didáticos e nas salas de aula brasileiras, onde predominava uma história europeia e ‘branca’. Isso vem mudando, embora devagar; ainda se vê muito preconceito e intolerância. Desde 2003, vigora uma lei que tornou obrigatório o ensino dessa parte da história. Conhecer a memória da África e dos negros no Brasil, assim como das culturas indígenas, significa mudar a perspectiva, e fazer com que os brasileiros possam se ver de outra maneira.


Ajustes necessários

É preciso repensar a ideia de africano como um todo único. A África é um continente e, mesmo ao sul do deserto de Saara, onde habitam em sua maioria povos de pele escura, há, e desde há muito tempo, uma enorme variedade de línguas, culturas, religiões, costumes e aparências entre os diferentes grupos humanos. Esses grupos interagiram e disputaram espaços e o domínio sobre produtos e rotas de comércio. Alguns se misturaram e deram origem a outros povos, como ocorreu em outros continentes e regiões do mundo.

Origens dos africanos escravizados no Rio de Janeiro no século 19 (no mapa, fronteiras do século 20). Grupos étnicos: 1. Bacongo; 2. Nsundi; 3. Tio, Monjolos; 4. Bobange; 5. Bundo; 6. Quissama; 7. Libolo; 8. Ovimbundo; 9. Ganguela; 10. Iaô; 11. Macua;12. Tumbuca; 13. Achanti; 14. Daomé; 15. Iorubá; 16. Ibo; 17. Fulani; 18. Hauçá; 19. Bornu; 20. Nupe. (imagem: Adaptada de KARASH, Mary. ‘A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p .53.)

A ideia de ‘africano’ surgiu apenas no século 19, vinculada à luta contra o tráfico e a escravidão. É, ao mesmo tempo, uma resposta e um novo significado ao tratamento dado pelos europeus aos nativos do continente. Por trás da generalização do termo, estava o objetivo da dominação europeia e uma justificativa para exercê-la. É difícil precisar a origem dos africanos trazidos para o Brasil. Muitos eram capturados longe do litoral, apesar de receberem o nome do local de partida. Outros – ao longo da travessia e em sua inserção na sociedade brasileira, no universo de outros nativos da África escravizados –, assumiam uma identidade que fazia referência ao seu local de origem. Outros, ainda, integravam-se a grupos da mesma região de procedência, ainda que pertencessem a povos diferentes.

Assim, os chamados ‘cabindas’ no Brasil, trazidos da região da baía de Cabinda (hoje em Angola), poderiam ser nsundis, tekes e gabões. Incluíam-se entre eles muitas vezes os anjicos e monjolos. Os ‘congos’ seriam originados de diversos grupos situados na vasta rede comercial do rio Zaire (Congo). E os ‘angolas’ podem ter sido trazidos do entorno da cidade de Luanda, mas também da área de Cassange ou do vale do rio Cuanza.

Esses grupos formaram a maioria dos cativos transportados para o Brasil, originários da grande região Congo­Angola. Mas houve muitos outros. Os ‘moçambiques’ poderiam ser macúas, ou senas, ou mujaus, entre outras origens, capturados em uma ampla área que abrangia o que é hoje o sul da Tanzânia, o norte de Moçambique, o Malauí e o nordeste da Zâmbia. Os africanos embarcados na África Ocidental (região do golfo da Guiné ou sua subdivisão, a Costa da Mina) poderiam ser todos incluídos no grande grupo que ficou conhecido como mina aqui no país, sendo, por sua vez, iorubas (também conhecidos como nagôs), hauçás, ibos, daomeanos ou mahís.
Havia escravos cristãos, muçulmanos e aqueles que acreditavam em religiões nativas. Eram povos com histórias, modos de vida e saberes distintos

Alguns entre os africanos escravizados eram cristãos, outros muçulmanos – tinham inclusive os que liam e escreviam em árabe – e, em sua maior parte, acreditavam em deuses de suas religiões nativas. Eram povos com histórias, modos de vida e saberes distintos – alguns trouxeram conhecimentos sobre técnicas agrícolas em clima tropical, outros eram mineradores experientes, outros artesãos ou conhecedores de práticas curativas.


Retratos da diversidade

Jean­Baptiste Debret (1768­1848), artista francês estudioso da natureza no Brasil, retratou os diferentes tipos de mulheres africanas que pôde observar na cidade do Rio de Janeiro. Nem na própria África seria possível encontrar tantos representantes de povos daquele continente como aqui. Debret produziu aquarelas que mostravam a diversidade de origens das mulheres que haviam sido trazidas e escravizadas no nosso país.

Com seus trajes e penteados, adornos e marcas faciais e de estética própria – como a prática de limar os dentes – essas mulheres afirmavam suas diferenças, também percebidas em suas tradições culturais e idiomas. Nada mais distante de suas vidas que a ideia de uma África no singular ou de características de comportamento e crença que unissem todas elas em um denominador comum. Essas africanas eram tão diferentes entre si como homens e mulheres europeus de países distintos.

Conhecer essas histórias africanas é uma maneira de desmascarar essa uniformidade inventada, e reconhecer o rico mapa da diversidade ‘negra’ que faz parte de nossas origens.

E de que vale saber essas diferenças todas e questionar uma imagem idealizada de país mestiço? Serve para nos aproximar de outras histórias que nos pertencem e nos darão a chance de chegar mais perto de entender que o tanto que nos diferencia nos aproxima, e nos faz mais humanos. Afinal, o racismo que se vê e percebe no Brasil é como uma mosca na sopa dos estudos sobre a nossa miscigenação.
Revista Ciência Hoje