Clóvis de Barros Filho* | Foto: Shutterstock | Adaptação web Caroline Svitras
O que significa um discurso de má-fé? O filósofo Sartre conceitua a má-fé como uma angústia existencial criada pela consciência da nossa liberdade de agir, uma tentativa de nos livrarmos da responsabilidade pelos efeitos colaterais de nossas decisões atribuindo a outras pessoas ou contextos as culpas decorrentes delas.
Mas qual a relação deste conceito com a Ética na Comunicação? Toda. O problema ético deste artifício discursivo é a corrupção da verdade, a falta de explicação pública do que realmente está acontecendo, a incapacidade que os outros envolvidos têm para solucionar os seus problemas da melhor maneira possível. A má-fé é uma comunicação falseada em benefício dos próprios interesses.
Quando um jogador de futebol realiza uma jogada ousada que termina em gol, não hesitamos em chamá-lo de craque, jogador diferenciado, aquele que desequilibra. Da mesma maneira, quando alguém decide no âmbito empresarial de maneira a aumentar as vendas, alargar a fatia de mercado da sua empresa, a concentrar o capital em volta de si, não hesitamos em chamá-lo de iluminado, de executivo de excelência, guru. Da mesma maneira, um político que em situações difíceis consegue cooptar a opinião pública, conservar o poder e, nos tempos de bonança, elege sucessores com facilidade, é um estrategista ímpar, dotado de inteligência indiscutível.
No entanto, nas situações contrárias a essas, como, por exemplo, no momento em que o jogador não joga bem, fracassa em levar sua equipe à vitória; ou o executivo que na hora de decidir acaba fazendo uma escolha equivocada que leva a resultados pífios; ou o político que perde o poder, não consegue se reeleger e apequena a influência de seu partido; nesses casos, as explicações costumam indicar como grande causa destas ocorrências fatores externos à própria deliberação, à própria ação. Elegem um bode expiatório como justificativa para a sua incompetência – Freud explica, Sartre satiriza.
Assim, a seleção brasileira não jogou bem devido à excelência do sistema defensivo adversário, pela marcação implacável dos defensores, por excesso de faltas, por, talvez, estar mais preocupada com os patrocinadores. Esse fenômeno também ocorre com algum executivo que tomou decisões equivocadas. Outro exemplo típico é o do político que fracassa, justificando sua derrota à ignorância dos eleitores, ao “aparelhamento do Estado” pelo adversário, ao jogo sujo do marketing eleitoral… Provavelmente esteja na sociedade errada, bem longe de Miami. Ilhado com um povinho que não valoriza a meritocracia, que não tem memória e outras parafernálias do gênero.
Assim, no sucesso destacamos a liberdade deliberativa e o acerto da escolha. No erro, destacamos a falta de liberdade deliberativa e todas as variáveis que, transcendendo ao agente que delibera, determinam o seu pesar. Há nesta estratégia uma má-fé na hora de encontrar as verdadeiras causas dos sucessos e dos fracassos. Afinal de contas, se somos todos vítimas da nossa trajetória, das condições em que vivemos, do meio ambiente, da temperatura, das ideologias, do sistema, das relações entre o poder executivo e o legislativo, da maneira como são escolhidos os deputados; se somos todos vítimas das coisas do mundo como elas são, então deveríamos aceitar com maior tranquilidade também que na hora dos grandes acertos não temos nenhum mérito. Porque tudo é o que só poderia ser. Materialismo radical que impossibilita o livre-arbítrio, o poder de decidir racionalmente. Atribuo os meus sucessos aos outros? Ou encaro o erro como exercício da própria liberdade? Eis os dilemas existenciais que um canalha não encara.
Os jornais midiáticos potencializam os discursos de má-fé de importantes agentes sociais que melhor beneficiam os seus interesses. Não questionam a lógica da liberdade ou da determinação. Ensinam que a má-fé é o “jeitinho brasileiro” para enfrentar os problemas sociais. Tomo como exemplo os problemas sociais de São Paulo. Quando ocorre o racionamento de água ou a corrupção no metrô, os jornalistas blindam os políticos que atendem os seus interesses e colocam a culpa no desmatamento da Amazônia ou nas falhas técnicas dos processos licitatórios. Não se cogita uma má gestão dos recursos naturais ou corrupção deliberada para beneficiar interesses particulares de políticos que os agradam. Tudo é fruto da contingência.
Porém, na notícia seguinte, os valores de avaliação moral do mundo mudam radicalmente. A crise financeira que afeta negativamente o PIB e exige mudanças fiscais não tem uma explicação na crise econômica internacional, mas na escolha econômica feita por políticos que desagradam os donos dos meios de comunicação. O mesmo ocorre quando descobrem um escândalo de corrupção em uma estatal do petróleo, os problemas são atribuídos aos políticos no poder e não às falhas nos processos licitatórios. Discurso ético radicalmente inverso ao anterior. Não há mais uma explicação contingencial – os jornais atribuem liberdade aos agentes sociais que erraram.
Um jornalismo sério deve adotar uma postura ética: Ou atribui aos “fatos jornalísticos” contingências materiais e históricas ou assume sua crença no livre-arbítrio.
Enquanto a mídia brinca com o sistema democrático, elegendo seus heróis e vilões, culpando e perdoando quem a interessa, ela tira o foco dos processos de corrupção social que ela mesma fomenta.
Revista Filosofia Ciência & Vida Ed. 109
Adaptado do texto “A má-fé como discurso corruptor”
*Clóvis de Barros Filho é professor de Ética da ECA/USP e conferencista do Espaço Ética. www.espacoetica.com.br
Revista Filosofia
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