LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
RESUMO Canonizado em abril, José de Anchieta (1534-97) é lembrado por sua atuação entre os índios do Brasil colonial. Pouco se fala, porém, de como os jesuítas não só toleraram como se beneficiaram da escravidão de negros, que, para eles, poupava os nativos e preparava os africanos para a fé católica e o perdão divino.
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O destaque dado à canonização dos papas João 23 e João Paulo 2º eclipsou a santidade de José de Anchieta, oficializada dias antes, em 3 de abril passado, no Vaticano. Como todo mundo aprendeu na escola, Anchieta é o apóstolo do Brasil. Fundador de São Paulo, ativo na fundação do Rio de Janeiro e de cidades capixabas, Anchieta deixou ainda sua marca na Bahia.
Redigida pouco depois de sua morte, em 1597, pelo padre Pero Rodrigues, a biografia de Anchieta tinha um claro propósito hagiográfico. Logo em seguida teve início o processo de sua beatificação, etapa preparatória da canonização.
Na época, os jesuítas espanhóis estendiam sua influência sobre a Cúria, no embalo do poderio que a Espanha filipina exercia sobre Roma e boa parte do território italiano. Feito papa com o esmagador apoio de Madri, Gregório 15, grande aliado da Sociedade de Jesus (SJ), canonizou o primeiro time dos jesuítas espanhóis em 1622: Inácio de Loyola e Francisco Xavier –respectivamente fundador da ordem e apóstolo do Extremo Oriente.
Anchieta poderia ter embarcado nessa galera como o apóstolo do Extremo Ocidente, da América Ibérica, a maior região ultramarina de povoamento europeu. Mas sua beatificação encalhou. Por quê?
Talvez por causa de seu pró-lusitanismo. Embora nascido em Tenerife, nas Canárias, território espanhol, Anchieta estudara em Coimbra, onde ingressou no seminário jesuíta. Ativo nas missões e na conquista do Brasil, Anchieta vestiu a batina portuguesa de corpo inteiro. Fator que deve ter pesado negativamente nos anos 1620-1630, quando o antagonismo luso-espanhol se acentuava.
Depois piorou, porque a Cúria romana ficou do lado de Madri em 1640 e só reconheceu a soberania da Coroa de Bragança em 1668. Na circunstância, o insucesso da beatificação de Anchieta pode ter sido um efeito colateral da rivalidade entre Madri e Lisboa no século 17.
Muito mais identificado com Portugal do que com a Espanha, Anchieta trouxe entretanto de Tenerife, de onde saiu aos 14 anos, duas referências capitais.
A primeira foi o conhecimento da língua basca, idioma de seu pai, nacionalista basco deportado para Tenerife. Escrevendo em 1584 na Bahia, Anchieta se dizia basco –"biscainho", e não canarino ou castelhano. Muito provavelmente, o domínio da sintaxe basca –língua aglutinante como o tupi-guarani– deu a Anchieta a chave para redigir sua gramática sobre o idioma indígena do litoral do Brasil.
A segunda referência atlântica de Anchieta foi a sua familiaridade com a violência colonial.
Terá sido na sua terra natal, e não na Bahia ou em Piratininga, que ele ouviu falar pela primeira vez de "entradas" e viu gente acorrentada no cativeiro.
Na sua infância, se desenrolava em Tenerife o final da extinção dos "guanchos", aborígenes de origem berbere das Canárias, primeiro povo ultramarino a ser exterminado pelos europeus. Na mesma época, preadores ibéricos desembarcavam nas Canárias muçulmanos escravizados nas "entradas" lançadas no litoral do Marrocos.
Anchieta reencontrou em Piratininga a pilhagem sertaneja das entradas, dessa vez capturando índios; e, na Bahia, a pilhagem marítima, desembarcando negros.
Parte desses africanos, traficados pelos jesuítas de Angola associados a Anchieta, era entregue ao Colégio da Bahia.
Quando Anchieta era superior do Colégio e provincial da ordem, Miguel Garcia, um jesuíta que ele conhecia bem, protestou frontalmente contra a conversão dos missionários ao escravismo, prevenindo Roma em 1583: "A multidão de escravos que tem a Companhia [de Jesus] nesta Província [do Brasil], particularmente neste Colégio [da Bahia], é coisa que de maneira nenhuma posso tragar".
Desafiados, Anchieta e a hierarquia da ordem recambiaram o padre antiescravista para a Europa.
TRANSMIGRAÇÃO
Como todos os missionários do Brasil, Anchieta protegia os índios e benzia a escravidão dos negros. Para ele, o cativeiro dos últimos livrava os primeiros da exploração colonial. Depois, o padre Antônio Vieira completou a justificação jesuítica do tráfico negreiro, afirmando que o escravismo também salvava os africanos do paganismo. Sua "primeira transmigração" para o Brasil nos tumbeiros facilitava sua conversão à fé e sua "segunda transmigração", para o Céu.
Ao fio dos anos, acumulando negócios, os jesuítas se tornaram grandes proprietários de escravos. A fazenda de Santa Cruz, que lhes pertencia –hoje sede da base aérea de mesmo nome, na zona oeste da capital fluminense–, era a maior propriedade escravista das Américas por volta de 1750, concentrado mais de mil cativos negros e mulatos.
Presentes e muito influentes em Angola e no Brasil quando a deportação de escravizados deslanchou e se intensificou, os jesuítas, mais do qualquer outra ordem religiosa, estavam no miolo do complexo escravista do Atlântico Sul.
A história da SJ ocultou seu longo envolvimento negreiro na rota Angola-Brasil para dar relevo à catequização dos indígenas na América Ibérica, e, particularmente, nas veredas do Paraguai.
MISSÃO
Na altura em que se anunciou a escolha do papa Francisco, Umberto Eco escreveu um artigo sobre a saga dos jesuítas na América Latina. Asseverando que o novo papa argentino foi influenciado pelo exemplo das missões paraguaias, Eco engrenou o debate do Iluminismo, citando Montesquieu e outros filósofos que exaltaram ou estigmatizaram o experimento jesuítico no Paraguai e terminou com as cenas de Robert De Niro no filme "A Missão". Nada disse sobre a dimensão escravista e negreira do experimento jesuítico no Brasil e Angola.
Vindo de um país onde a presença negra, considerável em Buenos Aires no século 19, tornou-se bem diminuída, o papa jesuíta Francisco pode ter as ideias que lhe são atribuídas por Eco. Em todo caso, a decisão papal de canonizar Anchieta avaliza a imagem unilateral de defensores dos índios que os inacianos cultivam no Brasil, na Argentina e na América Latina.
Na realidade, os jesuítas e a Igreja perpetuam uma hierarquia calcada no passado, mostrando-se pouco permeáveis às mudanças da sociedade brasileira.
Como nas Forças Armadas e na Magistratura –os dois outros pilares do Império escravista–, os negros continuam sendo minoritários no clero brasileiro.
O único estudo que conheço sobre o assunto, de autoria do padre Toninho (Antônio Aparecido da Silva), militante da causa negra na Igreja morto em 2009, é revelador.
Conforme os dados do padre Toninho, a Igreja Católica no país contava em 2001 com 16 mil sacerdotes. Destes, 4.000 eram estrangeiros. Dentre os 12 mil brasileiros, apenas mil padres eram afrodescendentes –nos anos 1960, seu número não chegava a cem.
Interpretação seletiva do passado, a imagem piedosa de santo Anchieta como protetor dos índios e apóstolo do Brasil inteiro está em descompasso com a história de sua época. Está também em descompasso com a história de nossa época, engajada numa política afirmativa instaurada pelos
Três Poderes da República para configurar a verdadeira imagem do Brasil inteiro; para dar mais representatividade aos afrodescendentes, maior contingente populacional do Brasil.
NOTA:
O número de padres afrodescendentes brasileiros consta de artigo do padre Toninho, publicado no site dos missionários orionistas (Messagio di don Orione) em 2001. O artigo continua no site, mas os números relativos aos padres afrodescendentes sumiram. (Disponível em bit.ly/1jNAXh0) Citei esses dados na revista "Veja" em 25.jul.2001.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, 68, é professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris Sorbonne e professor convidado da Escola de Economia da FGV-SP.
Folha de S; Paulo
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