Cineasta desafia censores chineses para revelar horrores da Grande Fome
Documentários de Hu Jie contam a história de estudantes cujas críticas aos excessos maoistas custaram suas vidas
TANIA BRANIGAN
DO "OBSERVER", EM PEQUIM
Para os modernos estudantes chineses, o nome não é "Grande Fome" mas "Três Anos de Dificuldades". A catástrofe continua a ser assunto tão delicado que seus livros de história não documentam quantas pessoas morreram de fome, e por quê. No entanto, mais de 50 anos atrás, no pico do desastre, alguns poucos de seus predecessores publicavam uma revista clandestina que acusava diretamente os líderes comunistas de causar a devastação. "Os mortos não tinham como contar suas histórias", diz Xiang Chengjian, um dos responsáveis pela revista. "Decidi me sacrificar... estava pronto para morrer".
A história da revista "Faísca", e da audácia dos estudantes, é o mais recente pedaço do passado da China escavado pelo documentarista Hu Jie. Seus documentários revelam os excessos maoistas dos anos 50, 60 e 70, e os extraordinários indivíduos que tentaram nadar contra a corrente.
"Quero que as pessoas tenham a chance de conhecer a história real", ele diz. Hu, um ex-soldado barbado e ainda musculoso apesar de ter passado dos 50 anos, foi demitido da agência estatal de notícias Xinhua depois de começar a trabalhar em seu primeiro filme, "Em Busca da Alma de Lin Zhao", em suas horas vagas. Lin era um jovem e talentoso dissidente que terminou executado como inimigo da revolução, e escreveu cartas usando o próprio sangue como tinta, quando estava encarcerado.
Pouco depois surgiram dois documentários espantosos sobre a Revolução Cultural. "Embora Eu Tenha Partido" relata a brutal morte da professora Bian Zhongyun, executada pelos alunos; "Minha Mãe Wang Peiying" é sobre a execução de uma mulher que pediu a renúncia de Mao Tse-Tung.
Os temas de que Hu trata são tão sensíveis que alguns dos envolvidos não os discutem nem mesmo com suas famílias. Ele convenceu uma gama notável de testemunhas a falar diante das câmeras; algumas ficam agradecidas pela oportunidade de se pronunciar depois de esconder a verdade por muitos anos.
"Estou tentando preservar todo esse material. Se essas pessoas morrerem, todas essas recordações terão desaparecido", disse Hu.
Mas há quem simplesmente se recuse a falar, e um dos entrevistados em "Faísca" se detém subitamente ao receber no meio da entrevista um telefonema que o alerta para que não fale. Desafios como esse ajudam a explicar por que a realização do filme demorou cinco anos.
"Não começo com nada preconcebido para essas filmes", diz Hu. "É um processo de descoberta, para mim. Sempre soube que havia alguma coisa lá, mas não exatamente do que se tratava. Descubro no processo de realizar o filme."
"Eu sabia que uma publicação tinha existido, mas não sabia do que ela tratava. Sabia só que pessoas tinham morrido por causa dela", ele acrescenta.
A Grande Fome foi causada pela política do Grande Salto à Frente, que Mao adotou em 1958 –um esforço para causar uma disparada na produção industrial e agrícola usando a coletivização e o zelo revolucionário.
As autoridades locais, por ambição e por medo, exageraram drasticamente o volume de suas safras; comida desesperadamente necessária no campo foi enviada às cidades e até exportada. Os quadros do partido intimidavam, espancavam, detinham e matavam as pessoas que alertassem as autoridades nacionais, roubassem comida para sobreviver ou tentassem fugir da região da fome.
Enquanto via mais e mais cadáveres se empilhando, um pequeno grupo de estudantes decidiu agir. Os dois números da revista "Faísca" –tudo que puderam publicar antes que fossem apanhados– mostravam que as comunas haviam transformado os agricultores em escravos, e protestavam contra os quadros do partido, que se banqueteavam enquanto o povo morria de fome.
"Os intelectuais chineses mantiveram o silêncio. Ninguém ousava criticar o governo", disse Hu, "Só os estudantes ousavam falar, e isso lhes custou a vida".
Hu não está sozinho em seu trabalho. Outros pesquisadores chineses tentaram documentar a catástrofe. Yang Jisheng, antigo repórter da Xinhua, passou 15 anos vasculhando os arquivos oficiais para produzir seu relato, intitulado "Lápide". Outro documentarista, Wu Wenguang, recorreu a jovens voluntários para que recolhessem depoimentos de história oral. Mas esses trabalhos não podem ser veiculados na China, e Yang vem sendo criticado recentemente por adversários que se recusam a aceitar que dezenas de milhões de pessoas tenham morrido e que o Grande Salto à Frente tenha causado essas mortes.
"As pessoas nos documentários estão morrendo por nós –se sacrificaram para nos salvar. Temos a obrigação moral de relatar suas histórias", diz Hu.
Em dado momento, ele trabalhou gravando vídeos de casamentos para bancar seus documentários; agora, ele e a mulher Jiang Fenfen vivem de suas aposentadorias. Trabalham com verba minúscula, comprando passagens para viajar em pé nos trens e se hospedando nos hotéis mais baratos. "Meu sacrifício pessoal nem merece menção, mas admiro a contribuição de minha mulher", ele diz.
Hu está perdendo um pouco de energia, ao envelhecer, e dedica mais tempo a um amor anterior, a pintura –ainda que seus quadros muitas vezes se relacionem aos temas de seus filmes. Mas espera que uma nova geração de documentaristas compreenda a importância da era que ele cobre e que assuma a tarefa que ele vem realizando.
"Se você não registrar o passado, talvez ninguém mais o faça", ele adverte.
Tradução de PAULO MIGLIACCIFOLHA DE S.PAULO
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