sábado, 7 de dezembro de 2013

Mandela e o Apartheid


Manifestação contra o apartheid acaba em carnificina em
Johanesburgo. Policiais dispararam contra multidão desarmada.
Resultado: 69 negros executados e um país em convulsão

Baleados pelas costas: sob o olhar de um policial, o corpo de um manifestante negro assassinado em Sharpeville

Não é de hoje que o regime de segregação racial conhecido como apartheid vem conquistando lamentável lugar de destaque nas páginas do cada vez mais volumoso livro de calúnias da humanidade. Neste mês de março de 1960, porém, um novo capítulo nessa história de intolerância, discriminação e barbárie foi inscrita com o sangue dos negros pelas autoridades brancas da África do Sul. No último dia 21, um protesto pacífico contra as leis do passe, incentivado pelas lideranças do Congresso Pan-Africanista e reprimido com violência pela polícia em todo o país, causou uma verdadeira carnificina em Sharpeville, a 45 quilômetros de Johanesburgo. Em uma ação desproporcional e covarde, as centenas de manifestantes que se aglomeravam em frente à delegacia de polícia local tornaram-se alvos vivos dos soldados do comando sul-africano. Revólveres, rifles e submetralhadoras, sem aviso prévio ou justificativa, cuspiram fogo contra a multidão, assassinando 69 pessoas e ferindo quase 200 – a maioria baleada pelas costas, em uma tentativa desesperada de fuga.

A inescusável execução em massa provocou náusea na comunidade internacional e despertou a ira das lideranças negras na África do Sul – o temor de uma guerra civil já toma conta de membros do alto escalão do primeiro-ministro africâner Hendrik Verwoerd. Uma semana depois do chamado “Massacre de Sharpeville”, um dia nacional de luto, 28 de março, foi convocado pelos chefes negros. Os funerais das vítimas seriam acompanhados por um boicote do trabalho e novas manifestações contra o passe. Ainda que os líderes do movimento seguissem pregando a não-violência, a tensão latente acabou por registrar uma série de tumultos e pancadarias em diferentes pontos de Johanesburgo, Worcestor e Cidade do Cabo. Em reação direta aos eventos, já se noticia uma corrida de cidadãos sul-africanos a consulados estrangeiros, em busca de vistos de emigração, bem como um aumento espantoso na venda de armamento aos brancos.

Na véspera dos funerais, para evitar novos conflitos, o governo da África do Sul havia anunciado a suspensão da obrigatoriedade do porte do passe pelos negros. Esperançoso com o que parecia um primeiro ato de conciliação por parte da administração de Verwoerd, o planeta foi logo devolvido à realidade obtusa do apartheid com a declaração oficial de estado de emergência em 30 de março. Sob tal auspício, as autoridades sul-africanas voltaram à carga com prisões em massa – o número, ainda não oficial, é de 18.000 detidos, incluindo o líder do Congresso Pan-Africanista, Robert Sobukwe, e a quase totalidade dos cabeças do movimento negro –, além da criminalização das entidades políticas dos nativos. Uma passada de olhos pela história revela que, atuando na clandestinidade, as oposições não demoram a deixar a resistência pacífica em favor da armada. No ambiente incendiário em que se encontra a África do Sul, parece questão de tempo.

Caderneta da infâmia - Na origem do protesto que geraria o extermínio na township (área urbana reservada aos negros) de Sharpeville está um dos maiores instrumentos de controle e segregação racial a serviço do governo: as leis do passe. Obrigados a carregar as infames cadernetas – que contêm foto, dados pessoais, número de série, registro profissional, pagamento de impostos e ficha criminal – e a mostrá-las às autoridades sempre que solicitadas, os negros não apenas têm sua liberdade de movimento cerceada, mas também são vítimas, a cada abordagem, de atos de humilhação. Caso o indivíduo não apresente o passe, é sumariamente detido. Existente desde a época dos escravos, em 1700, o conceito e a oficialização do passe – e, por tabela, sua oposição – ganhou força com a instauração do regime do apartheid, no ano de em 1948, com a chegada ao poder do Partido Nacional. Na última década, foram várias as manifestações contrárias às leis, notadamente a marcha das mulheres de agosto de 1956. Nenhuma delas, contudo, surtiu grande efeito prático.

No início de março, o Congresso Nacional Africano (CNA) programou, para o último dia do mês, uma nova manifestação anti-passe. Antecipando-se a ela, os membros do Congresso Pan-Africanista (CPA) – fundado no ano passado por dissidentes do CNA –, liderados pelo educador metodista Robert Sobukwe, marcaram seu protesto sobre o mesmo tema para o dia 21, dez dias antes, portanto, da movimentação da associação rival. A campanha, de acordo com a orientação de Sobukwe, deveria ser totalmente pacífica. Todos os africanos deveriam deixar seus passes em casa e, desarmados, comparecer às delegacias de polícia, entregando-se aos oficiais para serem presos. Os líderes do CPA acreditavam que a detenção massiva de negros resultaria numa pane do sistema: não apenas as prisões ficariam superlotadas, mas também a economia seria bruscamente afetada, com boa parte da força de trabalho no cárcere.

No dia 21 de março, a adesão à chamada de Sobukwe foi maciça, tendo sido observada com sucesso em diversas townships pelo país. Em Sharpeville, uma multidão calculada entre 5.000 e 7.000 pessoas colocou-se defronte ao distrito policial, para aflição do efetivo local de vinte soldados. O pedido de reforços foi imediatamente atendido, com 130 homens, escoltados por quatro tanques Saracen, adentrando o recinto – todo cercado por arame farpado. Vôos rasantes de jatos Sabre e monomotores Harvard buscaram, sem sucesso, dispersar a multidão. Por volta das 13 horas, de acordo com relatos de testemunhas, a tentativa da polícia de deter um negro causou uma pequena confusão perto do portão de entrada da delegacia, e algumas pedras foram atiradas contra os tanques da polícia. O comandante da polícia, G. D. Pienaar, teria então ordenado seus homens a carregar os revólveres, rifles e submetralhadoras. E então, sem que a multidão tenha recebido qualquer aviso ou determinação para recuar, os policiais começam a disparar suas armas. Completamente desprevenidos, os negros bateram em retirada, desesperados. Os projéteis seguiam em sua direção, alvejando os retardatários pelas costas. Pouco mais de dois minutos depois, Sharpeville encerrava seu cenário de apocalipse. Dúzias e dúzias de mortos e feridos jaziam nas cercanias.

O comandante Pienaar, com doentia tranqüilidade, explicou a ação. “Meu carro foi atingido por uma pedra. Se eles fazem isso, precisam aprender a lição da forma mais dura.” O primeiro-ministro Verwoerd também forneceu seu aval à matança, dizendo que os manifestantes em Sharpeville “atiraram primeiro” – apesar de não terem sido encontradas armas com os manifestantes ou deixadas por eles. Presente no local, o britânico Ian Berry, fotógrafo da revista Drum, rebateu as alegações oficiais de legítima defesa. “Os policiais não estavam em perigo. Presumo que eles tenham atirado com o intuito de dar à multidão, e a toda África negra, por conseqüência, uma terrível lição.”

Comparação lisonjeira - Do resto da África ao Vaticano, o mundo civilizado repudiou com igual fervor não apenas a chacina, mas também a naturalidade com que o governo da África do Sul a encarou. William Tubman, presidente da Libéria, definiu o massacre de Sharpeville como “a mais vil, cruel e inadmissível ação na história humana.” O departamento de Estado americano classificou a violência dos policiais de Verwoed como “deplorável”, e lamentou as perdas trágicas da comunidade africana. O jornal L’Osservatore Romano, órgão de imprensa oficial do Vaticano, questionou o motivo pelo qual a polícia da África do Sul não empregou “técnicas modernas de dispersão como mangueiras de água e gás lacrimogêneo, que são usados em todos os países civilizados, ao invés de massacrar homens, mulheres e crianças indiscriminadamente”.

Pouco antes do fechamento desta edição, no dia 1º de abril, uma reunião extraordinária do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas abordou o assunto e deu origem à resolução 134 do órgão. O documento responsabiliza o governo da África do Sul pela ação e urge que a administração abandone a política do apartheid, que coloca em perigo a paz e a segurança internacionais. O primeiro-ministro Verwoerd, porém, outra vez deu de ombros. “As críticas vêm apenas dos agitadores do mundo político. As pessoas de bem estão em sua maioria quietas.” Se o chefe de estado não estivesse tão absorto em sua insanidade, veria que não é bem assim – os apupos desta vez vêm também do próprio quintal. A imprensa branca africâner, sempre nacionalista, já vinha pedindo moderação ao líder – não à toa, o Johannesburg Vaderland já sugeria, no dia anterior ao massacre, “um sistema mais simples e menos doloroso de passes”.

O Johannesburg Star, de língua inglesa, atacou Verwoerd após o derramamento de sangue. “É patética a fé do governo em metralhadoras para resolver problemas humanos básicos.” O bispo anglicano de Johanesburgo apelou “a todos aqueles que têm sentimentos humanos na África do Sul para combater as táticas policiais.” No entanto, o mais simbólico, contundente e representativo protesto contra a administração federal veio por cortesia de uma manifestação de mais de 500 estudantes brancos da Universidade de Natal, em Durban. Os jovens mandaram confeccionar cartazes nos quais, em menos de 30 caracteres e com uma lapidar frase sem verbo, resumiam a indignação de um planeta: “Hitler 1939, Verwoerd 1960”. Nada mais precisa ser dito. Mas algo precisa ser feito para que se evite, duas décadas depois, a repetição de tal aberração.
Revista Veja

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