Vinícius
Liebel[1]
A charge, enquanto parte da mídia jornalística,
pode ser considerada um elemento formador de opinião pública. Sua
força enquanto tal pode ser comprovada pela simples análise destas
fontes, na qual verificamos a crítica ou a apologia a determinada
ideologia ou governo.
Sua força é comprovada quando buscamos na teoria
psicanalítica freudiana indícios que corroboram a eficiência do
desenho humorístico enquanto meio propagandístico e influenciador
de opiniões. Freud, em sua obra O
Chiste e sua relação com o Inconsciente,
traz-nos um tratado psicanalítico sobre a natureza do humor, suas
ações e influências no inconsciente. Considerando as charges como
uma das manifestações contemporâneas mais correntes de humor,
buscamos nos apropriar deste discurso clássico e analisar como a
charge pode repercutir na consciência de um indivíduo, pela
produção do chiste e pelo riso.
O riso, para Freud, seria um liberador das emoções
reprimidas. Desta forma, por trazer o prazer da liberação do stress
emocional, a risada seria uma manifestação individual e egoísta.
“O riso compensa, em seus efeitos, o dispêndio contínuo de
energia, exigido para manter as proibições que a sociedade impõe e
os indivíduos internalizaram.”[2]
O prazer que a ato de rir traz ao indivíduo é, como toda espécie
de prazer, de alguma forma, embriagante. A embriaguez então causada
no indivíduo fortalece a idéia transmitida pelo fato desta idéia
estar acompanhada do prazer proporcionado pela risada. O próprio ato
de rir já é um indício da aceitação, por parte do indivíduo, da
idéia passada. Assim,
Ele (o chiste) ademais subornará o
ouvinte com sua produção de prazer, fazendo com que ele se alinhe
conosco sem uma investigação mal detida, exatamente como em outras
freqüentes ocasiões fomos subornados por um chiste inocente que nos
levou a superestimar a substância de uma afirmação expressa
chistosamente. Tal fato é revelado à perfeição na expressão “die
Lacher auf seine Seite ziehen” (trazer os que riem para nosso
lado).[3]
Conforme observamos, o humor seria uma das formas
de protesto ou propaganda mais eficientes que podemos utilizar. As
charges, por serem veiculadas em jornais e na grande mídia, têm um
alcance maior que um gracejo contado numa roda de amigos. Por seu
caráter mordaz, têm também a natureza da crítica e da revolta, e
é dessa característica que resulta, em grande parte, a simpatia
natural que sentimos por estes desenhos, pois
“rimos delas, mesmo se
mal-sucedidas, simplesmente porque consideramos um mérito a rebelião
contra a autoridade”[4],
o que nos passa a idéia de poder satirizar, por alguns instantes, um
poder central. O chargista poderá tratar, através de seus desenhos,
de características e críticas que não poderia tratar abertamente,
seja por conta da censura ou de convenções morais. Ao passá-las
para o desenho, está promovendo uma pequena “rebelião” contra o
objeto da crítica, e, muito provavelmente sem saber, arrebanhando
adeptos de suas opiniões pelo poder do riso.
Observaremos melhor essas colocações analisando
uma de nossas fontes e verificando tais características nesse
desenho.
THE THREE
GANGSTERS. Londres: [s.n.], 1941. 1
cartão postal: pb.
O desenho acima reflete claramente antipatia ante
os três principais membros do Terceiro Reich: Goebbels, Ministro da
Propaganda do Reich, Goering, considerado, até 1945, o segundo homem
do governo alemão, e Hitler, o Führer nazista. Veiculado em cartões
postais ingleses a partir de 1941, o desenho sobrepõe as caricaturas
de Goebbels e Goering a corpos de macacos, sugerindo que ambos
pensariam e agiriam como tal, bem como teriam semelhanças físicas.
Outro aspecto satirizante, este referido à figura de Goering, é a
ostensiva coleção de medalhas em seu peito, característica
marcante que foi utilizada por vários dos caricaturistas do
Comandante em Chefe da Luftwaffe.
A caricatura de Hitler, por sua vez, revela um
julgamento quanto ao seu instinto belicoso. A caracterização do
Führer na figura universalmente reconhecida da morte traz um aspecto
muito mais crítico que a simples ridicularização de seus comparsas
no mesmo desenho, contando também com o caráter cômico.
Os psicanalistas defendem que o riso causado pela
figura facilitaria a apropriação destas caracterizações no
julgamento pessoal do indivíduo que a observa. Desta forma, a idéia
do autor da gravura, de que Hitler é a personificação da morte e
do mal e de que seus comandados não passam de animais seria
apropriada pelo observador.
O humor aqui utilizado tem, portanto, um
propósito: o de desmobilizar a crença pública quanto ao personagem
histórico Adolf Hitler e o sistema político que ele representa. Por
sua vez, Pierre Ansart nos coloca uma diferenciação dual na relação
do humor com a esfera política: em um sistema pluralista como a
Democracia, no qual as paixões políticas são constantemente
reprimidas e cortadas a fim de manter o equilíbrio do sistema, o
humor tem como função promover a multiplicidade de opiniões e a
descrença quanto aos elementos nocivos, mas, principalmente, evitar
as demonstrações apaixonadas das massas para com esses mesmos
elementos. Sua ridicularização estabelece uma situação de
inferioridade, um julgamento de valores no qual o ser político
torna-se bizarro e ridículo, afastando os indivíduos pela descrença
causada. Inserindo Henri Bergson na discussão, o humor trata de
promover uma homogeneização da sociedade.
Nossas fontes primárias são charges e
caricaturas produzidas em dois sistemas e conjunturas distintas,
porém, próximas se levarmos em conta a relação entre humor e
política atentada por Ansart: o regime autoritário no Brasil de
Getúlio Vargas e o regime totalitário alemão de Adolf Hitler. A
natureza dessas fontes, entretanto, apesar de pertencerem a
conjunturas semelhantes, são diferentes. Enquanto os desenhos
brasileiros são produzidos por indivíduos e veículos desligados do
Estado, a saber, por Belmonte e Chichorro, respectivamente da Folha
da Manhã, de São Paulo, e do jornal O Dia, de Curitiba, onde a
crítica velada, característica própria das charges, poderia
encontrar espaço, as charges alemãs têm seu lugar em um jornal
controlado pelo Estado nazista, o Der
Stürmer. Pautando nossa pesquisa na
caracterização do regime nazista, sua ideologia e seus líderes,
buscamos analisar de que forma as charges destes diferentes autores
cumpriam o papel propagandístico de que falamos anteriormente.
O primeiro caso analisado é o de Belmonte,
criador do personagem Juca Pato e considerado por muitos o maior
chargista brasileiro. O título é justificado, pois poucos como
Belmonte conseguiram sintetizar, em um único desenho, tantas
considerações e análises de um determinado fato ou situação.
Utilizando-se do semblante do personagem retratado ou do ambiente em
que se encontra, dos objetos que o rodeiam ou das manchetes de
jornais que evocam o assunto, o autor condensa sua opinião e sua
visão em um quadro de alguns centímetros quadrados e a apresenta ao
leitor, como podemos observar a seguir:
Fonte: BELMONTE.
Música Maestro.
São Paulo: Folha da Noite, 1940.
Aqui, Belmonte faz referência ao caráter
belicoso de Hitler, numa charge que podemos considerar uma pioneira
entre muitas outras que fariam críticas diretas e agudas em relação
ao líder alemão e sua ideologia. Neste desenho, datado de 09 de
agosto de 1940 e publicado na Folha da Noite, o Führer
é retratado como maior fomentador do conflito, acusado de alimentar
a morte através de uma grande carnificina, mantida através dos
vários bombardeios aéreos que atingiram o território britânico. O
título do desenho, “No Restaurante
‘Ao Relâmpago’”, é uma
referência direta à Blitzkrieg
promovida pelos alemães principalmente no início do conflito
mundial. Hitler como chef
do restaurante, atende aos pedidos da Morte, que exige que seu pedido
seja atendido rapidamente: “Então,
como é? Essa comida vem ou não vem?!”.
No menu do
dia, escrito no quadro abaixo da janela da cozinha, encontramos
pratos não usuais, como “consome de
Bombas, Filet de Granadas, Salada de dinamite à Krupp Stukas e
Paraquédas, RAF em churrasco, Gazes e micróbios, Whisky fervendo,
Guarda-chuva torrado, etc, etc etc, surprezas.”
Os pratos servidos no restaurante “Ao Relâmpago”
trazem nomes de armamentos utilizados durante a guerra, como bombas e
granadas, e de divisões das forças armadas alemãs, como os
pára-quedistas e os Krupp Stukas.
Há ainda a referência ao guarda-chuva de Chamberlain, que no
restaurante é servido torrado. Desta forma, Belmonte coloca a
impossibilidade de paz naquele momento e a guerra como o fracasso
definitivo das negociações diplomáticas que visavam o fim das
agressões, promovidas pelo ex-primeiro-ministro inglês. De forma
semelhante ao que acabamos de expor, Belmonte se utiliza de
diferentes técnicas para manipular seus desenhos, como o cinismo, o
nonsense e
a alusão. Na crítica ao contra-senso das decisões tomadas pelos
líderes nazistas e das posições que sustentavam referentes aos
mais variados assuntos, encontramos a chave para o pensamento de
Belmonte, para a linha editorial de seu jornal e para a opinião
formada por seus leitores.
O segundo caso é o desenho humorístico de Alceu
Chichorro, jornalista paranaense e figura constante nas reuniões
intelectuais curitibanas. Assim como Belmonte, Chichorro criou um
personagem, Chico Fumaça, que ilustrava as aspirações da classe
média e que expressava as idéias do autor. A presença de Fumaça
orienta as ações nos desenhos. Seu olhar direciona as atenções do
público leitor e suas colocações passam as opiniões de seu
criador e de seu jornal.
Ao atentarmos para as charges
produzidas por Chichorro que fazem referências ao regime
nacional-socialista, podemos observar dois momentos distintos: no
primeiro, que compreende o período entre os anos de 1933, data de
ascensão de Hitler ao cargo de chanceler, e 1942, ano da entrada do
Brasil no conflito, a visão daqueles elementos é bastante branda. A
origem de tal amenidade no trato do assunto tem várias
possibilidades, que vão desde uma orientação editorial voltada ao
público curitibano, que tinha visões otimistas acerca do regime
alemão, até uma possível simpatia velada do autor para com a
ideologia nazista. As razões para este comportamento de seus
desenhos, entretanto, não passam de conjecturas.
O segundo momento que podemos visualizar é
iniciado no ano de 1942, quando o Brasil ingressa no conflito junto
aos Aliados. A partir de então, como era de se esperar, os desenhos
passam a criticar e satirizar o regime de Adolf Hitler e suas ações.
Interessante nesta fase de Chichorro é a sutileza das críticas, não
lançando mão do horrendo em suas charges, mas se utilizando sim de
um humor sadio, que beira à inocência.
ELOY. O
Dia. 15 jan. 1943.
Na charge aqui exposta, produzida no
ano de 1943, já situada, portanto, na segunda fase de Chichorro,
podemos visualizar o humor brando do autor. Baseada em notícia de
diários estrangeiros, no caso, de Estocolmo, que noticiavam que “o
estado de saúde de Hitler era precário e a conselho médico, o
füehrer (sic.) estaria usando óculos pretos”, a charge
mostra um Hitler de postura autoritária, demonstrando deter (ou com
a ilusão de deter) o poder sobre a África. A situação é
denunciada, além pela pose do líder alemão, pela placa que no
plano superior do desenho aponta para o continente africano. A ilusão
do domínio do continente negro é causada pelo uso dos óculos
escuros, que, como o título da charge proclama, causa uma “ilusão
ensombrada” à vista do Führer.
O complemento do desenho é feito pelo diálogo
travado entre Chico Fumaça e dona Marcolina, que observam Hitler: “
– Mas porque (sic.)
os óculos pretos, Fumaça? – É para
ter uma ilusão da conquista da.... África!...”.
Aqui, Fumaça cumpre seu papel de observador e de humorista, ao
satirizar a atitude do ditador e, de forma indireta, sua ambição de
conquistar aquela região.
O terceiro caso analisado nesta apresentação é
o do chargista Philippe Ruprecht, alemão que desenhava para o
semanário Der Stürmer,
editado em Nuremberg. A característica principal das charges
publicadas neste jornal é que buscavam fixar nas mentes dos alemães
os principais preceitos nacional-socialistas, dentre os quais se
destaca o anti-semitismo. Novamente recorremos a Henri Bergson ao
destacar uma “função social” para estas charges, qual seja, a
de preparar a sociedade para o extermínio dos judeus em território
alemão. O exemplo a seguir poderá ilustrar melhor esta questão.
FIPS. Der
Stürmer,
ago 1934. Nuremberg.
In BYTWERK, Randall. Julius
Streicher
– Nazi Editor of the notorious anti-semitic newspaper Der Stürmer.
New York,
Cooper, 2001. p.
84.
Visualizamos então a técnica da associação
sendo utilizada na difamação do povo judeu. Aqui, um morcego que
carrega a estrela de Davi no peito e que tem as feições
características do indivíduo judeu representado nas charges de
Rupprecht, surge nos céus espalhando terror e morte no seu caminho.
O título, Der Vampyr[5],
já demonstra a conotação que a charge pretende imprimir: a do
judeu sugador e aproveitador. A
legenda ratifica esta idéia ao dizer Vom
Teufel in die Welt gesegt er stets die Völker quält und hekt[6].
Em linhas gerais, o significado da
frase evoca uma qualificação dos judeus como povo do inferno, cuja
principal ação no mundo abençoado, ou seja, o mundo germanizado,
seria a de atormentar e sugar os cidadãos arianos. As charges do Der
Stürmer se prestavam, portanto, para a
degeneração do alvo (principalmente os judeus, mas também
comunistas, católicos e maçons) através da utilização de um
humor grosseiro, com alusões diretas, valendo-se de títulos e
legendas para melhor transparecer sua intenção. Trata-se de um
produto destinado a um público muito definido, qual seja, o ariano
adepto ou simpatizante das idéias nazistas, em especial do
anti-semitismo, e predisposto a acatar as opiniões expostas.
A partir destes três casos aqui analisados,
podemos tirar algumas conclusões. Com o Der
Stürmer a população alemã passou a
“ver” a quebra da harmonia social que os judeus promoveriam e,
como não havia a possibilidade deste “erro” se corrigir sozinho,
passou-se a aceitar a idéia da extirpação deste “corpo estranho”
da sociedade. Em
outros termos, o humor de Rupprecht serviu como uma alavanca para o
ódio dos arianos para com os judeus, não se dirigindo à
“inteligência pura”[7],
como pregava Bergson, mas a um dos sentimentos mais recônditos do
ser humano, qual seja, o ódio. A busca era por uma uniformização
das idéias raciais e da moral do povo alemão, negando nesse
processo a moral cristã, judaica ou qualquer outra e impondo a moral
do Partido Nazista, processo acelerado e intensificado pelo Terror
empreendido pela polícia secreta e pelas outras formas de propaganda
empregadas, como panfletos e discursos radiofônicos.
De forma semelhante, através do riso, Belmonte e
Chichorro buscaram transmitir a visão da ruptura que os nazistas e
suas idéias impunham à harmonia européia e mundial. Em seus casos,
entretanto, as palavras e as imagens não eram direcionadas aos
instintos ou às emoções dos ouvintes, mas sim à percepção
racional destes diante das denúncias feitas pelos autores. Em outras
palavras, eram direcionadas à inteligência pura. Porém, da mesma
forma, visavam minar aqueles que tinham simpatias pelo Nazismo ou
simplesmente arrebanhar a opinião dos indiferentes. Buscavam também,
portanto, uma homogeneização da sociedade através da uniformização
de sua mentalidade.
Neste sentido, as charges têm seu lugar no espaço
público, na arena de discussões. Sua função de expositora e de
formadora de opiniões permanece marcante, seja como crítica a um
governo ou como apoio ao mesmo, seja em Democracias ou Ditaduras. Da
mesma forma que os chargistas atuaram nas décadas de 30, combatendo
ou alicerçando políticas governamentais, hoje ainda se destacam na
formação da opinião popular, aliando-se ao poder vigente ou a ele
se opondo; as charges continuam tendo grande atração para os
leitores e ainda possuem a capacidade de influenciar, de alguma
forma, a sociedade.
[1]
Mestrando no curso de Pós-graduação em História pela
Universidade Federal do Paraná.
[2]
Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso – A
representação humorística na história brasileira: da Belle
Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo. Cia das Letras,
2002. P. 23.
[3]
FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente.
Rio de Janeiro. Imago, 1977. p. 123.
[4]
Ibid. p. 125.
[5]
Trad. O Vampiro.
[6]
Trad. Do demônio no mundo abençoado ele sempre agita e atormenta o
povo.
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