por Paulo Antônio Pereira Pinto
Há cerca de dez anos, tenho tido o privilégio de contar com este espaço, concedido pela Universidade de Brasília, para exercícios de reflexão sobre minha vivência, entre China, Sudeste Asiático, Taiwan, Índia e, agora, Cáucaso. Peço vênia, nesta oportunidade, para a recapitulação dos “melhores momentos” destes estudos. O primeiro artigo trata do período entre 1982 e 1995, dividido entre Pequim (Brasília), Kuala Lumpur, Cingapura e Manila. Analisa o processo de abertura chinesa, consequências no plano interno e nas relações da RPC com seu entorno imediato, no Sudeste Asiático.
Assim, meus depoimentos se iniciam, a partir da década de 1980, quando começa uma nova fase na história recente da China, com processo de modernização e abertura do país ao exterior, após o período turbulento da Revolução Cultural.
Tanto no plano interno, como no externo, identificam-se, naquele momento, alterações determinadas por condicionantes da forma de pensar chinesa, cuja história é marcada por ciclos que se repetem em resposta a sucessivas novas contradições. Buscam-se, sempre, outros pontos de equilíbrio. O ocorrido na década de 1980 significava o início de nova cena de partida, de um passado recente, que estabeleceu bases para o cenário em vigor na China. Daí, talvez, o interesse quanto à reflexão sobre o que se passou, para o melhor entendimento do que está acontecendo e virá a ocorrer.
Naquele período, cabe ressaltar, não era possível deixar de sentir uma certa tristeza, pelo fato de que havia sido encerrada, na China, uma era de convicção poética maoista. A partir de 1949, acreditara-se que, em benefício do interesse comum da sociedade, centenas de milhões de pessoas poderiam ser levadas a patamar mais elevado do que o egoísmo individual.
A experiência chinesa de busca de uma sociedade igualitária encantara a muitos. Os países do Terceiro Mundo admiravam sua combatividade e auto-suficiência. Os economistas ocidentais registravam o pleno emprego atingido no campo e invejavam sua força de trabalho disciplinada, na indústria. O exercício de observação diário e o aprendizado da realidade do país, no entanto, indicavam que não se vivera na China, nas três décadas anteriores, tantos motivos de encantamento[1].
Na verdade, naquele período, perdurara o elitismo e a corrupção entre os dirigentes do partido e do governo. O lento progresso obtido na economia demonstrara não ser tão fácil, desenvolver-se com os próprios recursos, sem a infusão de investimento, tecnologia ou ajuda externa.
Em suas relações internacionais, sabe-se que a República Popular, desde sua fundação, em 1949, havia mantido um vasto exército e milícias armadas e desenvolvido a bomba atômica. A China tivera conflitos com a União Soviética e Índia e fricções com o Japão, com respeito às Ilhas de Senkaku e com o Vietnã, quanto às Spratlys. Não se tratava, portanto, de país totalmente “amante da paz”, conforme se divulgava em Pequim aos visitantes estrangeiros.
No plano interno, à medida que se conhecia melhor a real situação chinesa, ficavam diminuídos, inclusive, os ganhos considerados, por exemplo, no controle familiar – enorme. No entanto, verificava-se o custo em termos de direitos humanos, na proibição de casamentos antes dos 20 anos e obrigatoriedade de apenas um filho por casal.
Não se quer negar, no entanto, as grandes conquistas do período maoísta, nem os feitos do povo chinês. Um país que, na primeira metade do século XX, fora devastado por guerras internas, encontrava-se, no início da década de 1980, unificado, apesar das crises de liderança resultantes da Revolução Cultural.
Como era possível verificar, a China alimentava e vestia seu povo. Um esforço descomunal fora feito para construir represas, diques e sistemas de irrigação, bem como no sentido da auto-suficiência alimentar. Mas seria isso suficiente? Tais conquistas teriam que ser vistas em perspectiva.
Mao Zedong tornara a “necessidade” em “virtude”, como base de sustentação para política de auto-suficiência. Em grande parte, tratava-se de reação ao fato de que os soviéticos terem cessado toda e qualquer auxílio, a partir de 1960, levando consigo, inclusive as matrizes de fábricas cuja instalação já havia sido iniciada.
O Grande Timoneiro, então, colocou toda sua crença na “genialidade do povo chinês”. Doravante, tudo seria resolvido com a mobilização permanente das “massas”. Daí, surgiriam energias e talentos até então escondidos por sistema social opressivo. Na década de 1960, por exemplo, ampla campanha nacional encorajava simples operários a fazerem sugestões sobre inovações tecnológicas. Exageros evidentes eram noticiados a respeito do aumento de produtividade como resultado de soluções práticas obtidas nos canteiros de obras, campos agrícolas e operadores de máquinas nas fábricas.
O caráter “anticientífico” das práticas maoistas chegou ao apogeu durante a chamada Revolução Cultural, quando professores e alunos foram obrigados a curvar-se diante da “sabedoria” das massas.
Postura semelhante foi adotada nas forças armadas chinesas, onde o conceito maoista de “guerra popular” baseava-se na premissa de que “homens contavam mais do que máquinas”. Nessa perspectiva, centenas de milhares de soldados de infantaria, com armamento obsoleto, seriam capazes de derrotar um Exército soviético equipado com armas modernas. Mantinha-se, no entanto, a dissuasão nuclear, na medida em que a China não renunciava a sua própria bomba atômica.
Com a derrota do “bando dos quatro”, a China desencadeou outra campanha, desta feita para condenar a viúva de Mao, visando a acusá-la e a seus três cúmplices de Xangai pela maioria dos fracassos e fraquezas do anos anteriores. Este novo processo implicou, novamente, em notáveis exageros nas acusações. A mensagem, no entanto, era clara: os dirigentes chineses haviam tomado consciência de que suas políticas de auto-suficiência, recusa em aceitar ajuda externa e negativa à aquisição de tecnologia estrangeira haviam reduzido as taxas de crescimento e o progresso em quase todos os setores da economia.
A rejeição da ideologia passada foi feita na forma de pronunciamentos que, gradativamente, desautorizassem o autoritarismo vigente na fase que se encerrava. Enquanto isso, o corpo de Mao Zedong era reverenciado no Mausoléu, em Pequim, com todas as honras devidas ao fundador da República Popular da China. Tratava-se, no entanto, de trazê-lo a proporções humanas.
Começava o processo de estabelecer seu lugar na história, como um grande líder revolucionário, mas como um homem com menor sucesso, quando se tratou de administrar um país. Suas principais preocupações diziam respeito à eliminação dos dogmas socialistas, agora vistos como impedimento à nova marcha da China, em direção à modernização. O principal responsável pelas alterações na condução das políticas, econômica e social da China, a partir de 1978, e “Novo Timoneiro”, passou a ser o então Vice-Primeiro-Ministro Deng Xiao-Ping.
O julgamento público de Mao, no entanto, tinha dimensões restritas. Todos os erros cometidos no período de radicalização maoísta eram atribuídos a Lin Piao e ao “bando dos quatro”. Para o cidadão chinês, contudo, havia implicações óbvias: não era possível aceitar que toda a culpa fosse atribuída a um traidor e a quatro radicais – na prática, os atuais dirigentes em Pequim estavam admitindo que a “Grande Revolução Proletária Cultural” havia sido um fracasso enorme e custoso.
O próprio retorno de Deng Xiao-Ping ao poder, como Vice-Primeiro Ministro já significava uma rejeição eloqüente do julgamento de Mao, que havia dado seu apoio pessoal às duas quedas anteriores de Deng.
Não era possível ignorar, contudo, que Mao tinha razão quanto ao diagnóstico sobre os males que atingiam a China. Assim, de acordo com sua visão, o maior perigo para o país seria o retorno à estagnação imposta pela burocracia do partido e do estado. Suas soluções eram poéticas e imaginativas: uma série de campanhas para mobilizar os intelectuais – “O Movimento de Cem Flores” – a busca de um caminho mais curto para o Socialismo – “O Grande Salto Adiante” – e a provocação de uma “discórdia criativa” entre a juventude do país e a burocracia estatal – “A Revolução Cultural”.
Sabe-se, contudo, que Mao não obteve sucesso na criação do “homem socialista”. Ele pediu demais, tanto dos chineses, quanto da natureza humana.
No final da década de 1970, no entanto, todo este processo havia sido esquecido. Ficara provado que, em tese era uma boa idéia encorajar os trabalhadores a pensarem o aumento da produção com seus próprios meios. Na prática, a premissa ideológica, sobre a qual se baseava – a de que a sabedoria está consagrada nos trabalhadores – conduziu a medidas impraticáveis, como por exemplo, a utilização de máquinas antiquadas sendo utilizadas em velocidade inapropirada, provocando acidentes ou resultados negativos.
Com a morte de Mao Zedong e a derrubada do “Bando dos Quatro”, a China poderia, finalmente, defrontar-se com estes fatos negativos e tomar as decisões cabíveis, para superá-los.
Havia sido abandonado, no entanto, o fundamento da filosofia maoista: o “conceito hegeliano” de que a unidade deve ser dividida em duas partes e que cada situação contém em si contradições saudáveis que são necessárias para a luta e o progresso, levando, assim, à noção de luta de classes contínua e revolução permanente[2].
Segundo Mao, a China não deveria jamais permitir-se cair na complacência da “unidade” e, de acordo com esta filosofia, o “Grande Timoneiro” teve a audácia poética de desencadear uma revolução contra seu próprio governo e partido. O veredito da história será provavelmente o de que, enquanto Mao foi um dos maiores líderes revolucionários, demonstrou ser um governante menos habilidoso, uma vez que sua revolução tornou-se vencedora. Provocou, assim, severas perdas a seu país, enquanto perseguia suas visões utópicas.
Sob nova liderança, Pequim pareceria retomar a abordagem mais tradicional à forma de governança, recuperando a busca filosófica chinesa do “Caminho Real”.
Recorda-se, então, que, desde os primórdios da civilização chinesa, há 4000 anos, às margens do Rio Amarelo, que pensadores buscam equilíbrio e harmonia como forma de governança a ser chamada de “Caminho Real”, quando haveria “ordem social” em que os monarcas exerceriam suas responsabilidades e a população cumpriria seus deveres.
Nas palavras de Confúcio: “Quando um governante faz o que é certo, influenciará as pessoas, sem ordená-las. Quando o governante não faz o que é certo, seus comandos não são obedecidos”. Implícita fica a noção de que, caso a autoridade local não crie condições de governança adequadas ao funcionamento harmonioso da sociedade, os cidadãos podem ignorar o governante.
No início da década de 1980, portanto, o sentimento dominante era o de que a morte havia “humanizado” Mao Zedong e “desmitificado” a China, que, então, admitia suas limitações no trato com os grandes problemas do país.
Abertura para um Mundo de “Desordem sob os Céus”
Nos anos em que foram registradas as observações acima – entre 1982 e 1985– o cenário internacional era bipolar, com centros de poder em Washington e Moscou. Segundo classificação adotada no Ocidente, o planeta era dividido em “Três Mundos”. Os países industrializados de economia de mercado foram incluídos no Primeiro Mundo. Os de sistema econômico centralmente planificado participavam do Segundo. Os em desenvolvimento eram despachados para o Terceiro.
Durante a fase maoista, no entanto, os chineses tinham uma visão própria do globo terrestre. Este estaria dividido em duas partes antagônicas – a metade que apoiava o bloco soviético e a outra que se opunha, incluindo a China. A política externa da RPC seguia esta rigidez, baseada no pressuposto de que qualquer coisa que pudesse prejudicar os interesses de Moscou seria favorável a Pequim.
Sob a nova liderança de Deng Xiaoping, tornou-se mais pragmática também a postura chinesa no plano externo. Este “último Grande Timoneiro do século XX” – como se referem a ele alguns historiadores – apresentara, a propósito, teoria própria quanto à existência de “Três Mundos”[3].
Segundo Deng:
“A julgar pelas alterações nas relações internacionais, o mundo atual consiste de três partes, ou três mundos, que são tanto interconectados, quanto contraditórios. Os Estados Unidos e a União Soviética formam o Primeiro Mundo. Os países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina integram o Terceiro Mundo. Os desenvolvidos – sejam os do mundo capitalista ou do socialista – formam o Segundo Mundo”.
De acordo com o novo discurso chinês, o Sudeste Asiático, já então organizado por sua associação regional ASEAN (na sigla em inglês), representaria, em meados da década de 1970, exatamente o tipo de interlocutor capaz de implementar a cooperação – e refletir as contradições – entre países do Terceiro Mundo e entre estes e o Segundo Mundo, conforme defendido pela China. Assim, em oposição ao congelamento das esferas de influência das superpotências—ambas integrantes exclusivas do Primeiro Mundo imaginado pelos chineses.
Tais desenvolvimentos induziam, desde então, à percepção de que a estrutura de poder bipolar que vinha permeando a região estaria sendo alterada em função de nova “multipolaridade”, na Ásia-Pacífico, onde quatro potências principais – os Estados Unidos, a União Soviética, a China e o Japão – teriam, doravante, sua parcela de influência.
Verifica-se, a propósito, que, desde o início da atual política de modernização da China, na década de 1980, houve desdobramentos que facilitaram o atual avanço do processo de congruência entre a área de influência tradicional da cultura chinesa e uma nova fronteira econômica da RPC .
A crescente regionalização da produção evoluía, de forma que a interação de novas tendências, como a redução nos custos da mobilidade dos fatores de produção e as economias de escala exigidas por processos produtivos crescentemente sofisticados, proporcionavam o surgimento dos chamados “tigres” ou “novas economias industrializadas”. Os efeitos de tais reajustes seriam evidentes no aparecimento de formas de relacionamento inovadoras, que incluiriam diferentes tipos de parcerias entre Japão, novas economias industrializadas no Sudeste Asiático e partes da China.
A emergência de certos países e agrupamentos regionais, sempre de acordo com esta linha de raciocínio, não se deveria a experiências isoladas, mas a fenômeno integrado, que projetaria sobre a área como um todo os benefícios da acumulação de capital e da experiência modernizadora resultante da aplicação prática de novos conhecimentos científicos e tecnológicos[4].
A estabilidade e o progresso na Ásia-Pacífico passaram a ser entendidos, por setores de opinião, como dependentes, cada vez mais, de processos de cooperação que garantissem a negociação entre suas diferentes culturas. Nesse contexto, despertavam crescente interesse os vínculos históricos entre a China e o Sudeste Asiático.
Isto porque a maioria dos países do Sudeste Asiático compartilha de passado que os inseriu, em maior ou menor escala, em esfera de influência de duas grandes civilizações: a chinesa e a indiana, que interagiram, através dos séculos, com culturas locais. O Budismo, o Islã, o Hinduismo e o Confucionismo deixaram, assim, marcas profundas que continuam a diferenciar ou aproximar pessoas.
A este mosaico de heranças culturais seculares, somou-se, mais recentemente, o colonialismo europeu que impôs pela força, novos valores e normas de organização e comportamento. A partir do término da Segunda Grande Guerra, os Estados recém-independentes da região foram divididos, pela rivalidade ideológica das superpotências, entre os que serviriam como a vitrine da economia de mercado e os que seguiriam o sistema de planejamento centralmente planificado.
Com a multipolaridade resultante do término da Guerra Fria, ocorreu o recuo das esferas de domínio de Washington e Moscou. Como consequência, no Sudeste Asiático, tornou-se possível o ressurgimento de influências político-culturais antigas, como a chinesa. Hoje, quando se discutem os efeitos da presença avassaladora da cultura de massa, resultante da globalização, os países da área buscam, em sua própria região, marcos de referência que permitam afirmar valores, idéias e crenças, consolidadas através de uma história compartilhada numa geografia determinada.
No Sudeste Asiático, nessa perspectiva, verificou-se a gestação de um novo conjunto de mudanças que afetaram não apenas a economia, através da reorganização freqüente de suas vantagens competitivas, transformações técnico-industriais nas formas de produzir e alterações na organização da sociedade. Tudo isso ocorreu, no entanto, com a preservação de valores culturais que, passando de geração a geração, garantiram uma base de sustenção do modelo que se consolidava.
Tal panorama leva alguns estudiosos, como Léon Vandermeersch[5], a contribuir para a tese de que existe uma base cultural para avaliar o fenômeno do dinamismo dos países objeto deste estudo. Isto porque, apesar de sua diversidade, em termos de extensão geográfica, população, estágio de desenvolvimento, sistema político e experiência colonial, alguns países do Sudeste Asiático possuem, em comum, conjunto de valores herdados de período de influência cultural chinesa.
Na prática, este processo de complementação/contradição – segundo o pensamento de Deng Xiaoping, citado acima – evoluiu com a busca da construção de sucessivos “building blocks”, a partir da integração do próprio sistema econômico da China. Isto levaria a moldura política regional com forte influência do ordenamento histórico em que, durante séculos, parte da área hoje situada entre Myanmar e Vietnã esteve inserida em grande arco de Estados vinculados ao Império do Centro.
Na primeira etapa dessa construção de blocos, logo após ao desaparecimento de Mao Zedong, integrou-se o próprio sistema econômico chinês. Em seguida, foi permitida a abertura de cidades costeiras ao comércio internacional, com a criação das Áreas Econômicas Especiais, onde foram adotadas práticas de economia de mercado dentro de um sistema centralmente planificado mais amplo. Os blocos seguintes foram surgindo ao longo do rio Yantze, até chegar a Xangai, onde se situaria a “cabeça do dragão”[6].
Gradativamente, houve a consolidação de Hong Kong e Macau no sistema produtivo da RPC. A crescente integração econômica – e futuramente política – com Taiwan será o passo seguinte. A expansão da fronteira econômica chinesa em direção ao Sudeste Asiático será a fase posterior, que está sendo facilitada pela existência, ao Sul da China, de uma rede de indivíduos com origem étnica comum, chamados “chineses de ultramar”, que têm como referência uma mesma identidade cultural.
Assim, gradativamente, chegar-se-ía a uma futura congruência entre a área de influência tradicional da cultura chinesa e uma nova fronteira econômica da RPC.
Este último desenvolvimento ocorreria através de um fenômeno de “cross fertilization”[7], caracterizado por intercâmbio de referenciais de valores, entre aquela área considerada historicamente como situada na periferia do Império do Centro e a RPC.
O conjunto de transformações ocorreu de forma a sugerir, mesmo, a emergência de um novo paradigma regional. Isto porque, por um lado, a existência de uma base cultural chinesa servia de plataforma de sustentação para um processo de cooperação com o Sudeste Asiático.
Por outro, haveria os tipos de contribuições seguintes:
os países bem sucedidos como a “vitrine do Capitalismo no Sudeste Asiático” – a exemplo de Cingapura – indicariam os rumos para o aperfeiçoamento da “economia socialista de mercado”, com características chinesas, ora buscada pelo programa de modernização da RPC;
a persistência do Vietnã em manter seu sistema central de planejamento, ao mesmo tempo em que adota “práticas de economia de mercado”, reforça a proposta chinesa de preservar a vertente “socialista” entre as medidas que estão sendo crescentemente adotadas, no programa de modernização da República Popular da China; e
o esforço de composição constante no sentido da manutenção da harmonia e convivência pacífica entre a população de origem chinesa e os de fé islâmica na Malásia e Indonésia serve como inspiração para exercício semelhante a ser promovido na região central da RPC, principalmente na província de Xinjiang, onde há expressivo contingente de muçulmanos. Outrossim, estende-se a necessidade de relacionar-se com novas Repúblicas, como a do Tajiquistão, onde predomina a mesma religião.
A tese de que estaria em curso tal desenvolvimento considera que, quando se fala em influência político-cultural chinesa, se tem em conta os efeitos dessa herança histórica na ação das sociedades civis, como facilitador do processo da cooperação entre a China e o Sudeste Asiático[8].
Não estão sendo consideradas, portanto, iniciativas de “políticas de Estado”. Isto porque, tanto na China, quanto no Sudeste Asiático, o conceito de Estado evoluiu em diferentes estágios, sempre a partir da perspectiva de que o centro de tudo era a figura do dirigente local, desvinculada de um espaço geográfico definido. A concepção chinesa, ademais, sempre atribuiu importância fundamental aos laços sanguíneos, como marco de referência para a soberania do Imperador. As fronteiras eram definidas em termos de população, sem levar em conta limites territoriais.
O interesse quanto à reflexão sobre o tema deve-se à influência que a emergência de um bloco político de interesses recíprocos e de mega proporções – como o representado pela China e o Sudeste Asiático – exercerá no ritmo de integração e cooperação na Ásia-Pacífico, um dos laboratórios de modernidade do planeta. Ademais, existe a possibilidade de que laços culturais possam vir a ser fator determinante na expansão de fronteira econômica na área em questão, em oposição ao exercício da força como garantia de esfera hegemônica, conforme ocorrido, com freqüência, em outras partes do mundo.
O processo de abertura da China, na década de 1980, portanto, foi facilitado por conjunto de reciprocidades entre a RPC e o Sudeste Asiático, que, ao consolidarem seu relacionamento, desenvolvem projeto regional com agenda de preocupações próprias.
CONCLUSÃO
A partir do processo de abertura, na década de 1980, a evolução social na China inicia novo ciclo histórico, em obediência ao paradigma ditado pela tradição chinesa. Nessa sequência, acontecem mais consensos do que compromissos. Há novas “cenas de partida” que se sucedem [9]. A RPC superava, naquele momento, o ponto de equilíbrio alcançado pelo princípio socialista, segundo o qual “de cada um de acordo com suas habilidades e a cada um de acordo com suas necessidades”. Seguindo a tradição confucionista, a busca da estabilidade social deveria, então, recorrer a novos fundamentos.
Segundo especialistas no assunto, Mao não teria sido um líder na concepção de Confúcio. Pois, não abraçou as normas ditadas pela “li”, que estabelecem a conduta adequada à ordem social. Teria agido no estilo de um “Macaco Rei”, liberando forças de “luan” (desordem e rebelião) para mobiizar a população e manter-se no poder. Assim, na essência do pensamento maoista se encontrava a rejeição à concepção confucionista de estabilidade. O progresso, para Mao, só poderia ser obtido pela luta contínua e permanente.
Deng Xiaoping, no entanto, personificou o retorno da China à tradição confucionista, no sentido de que caberia ao líder benevolente buscar o caminho certo para a estabilidade, segurança e o estabelecimento de forma de governança que favorecesse o progresso. Sua liderança proporcionou, também, a consolidação do relacionamento entre a China e o Sudeste Asiático, em função dos laços históricos, mencionados no decorrer do texto, que têm sido capazes de garantir a inserção internacional chinesa atual em universo de influência cultural do antigo “Império do Centro”[10].
Por precaução, cabe seguir identificando se predominam, hoje, na sociedade chinesa, normas ditadas por “li” ou se há riscos de “luan”.
[1] Tais observações decorrem do fato de o autor ter servido na Embaixada do Brasil em Pequim, no período de 1982 a 1985, quando era leitor assíduo das revistas semanais “Far Eastern Economic Review” e “Asiweek”, editadas, então, em Hong Kong, entre as poucas fontes de informação sobre o que se passava na China.
[2] Vide “Mao prend le Pouvoir”, por Roland Lew, Éditions Complexe 1981.
[3] “Teng Hsiao-Ping, a Political Biography”, por Chi Hsin. Cosmos Books. Ltd. 1978.
[4] Tais observações decorrem do fato de o autor ter servido, no período de 1986 a 1995, no Sudeste Asiático, sucessivamente, nas Embaixadas do Brasil em Kuala Lumpur, 86-88, Cingapura, 89-90, e Manila, 91-95. Durante estes nove anos, participou de numerosos seminários e conferências em centros de estudos estratégicos destas capitais.
[5] “Le Nouveau Confucionisme” – Léon Vandermeersch, Le Débat – número 66, septembre-octobre 1991.
[6] O “China Institute of Contemporary International Relations”, em estudo intitulado “China’s Economic Reform and Opening-up”, publicado em abril de 1993, menciona que: “To vitalize the domestic economy and to open it to the outside world are two inseparable and basic parts of China’s economic restructuring and are also an important expression of the socialism with Chinese characteristics. The opening up and development of Pudong Area in Shanghai will make it a “dragon-head” to lead the economic development of the Yangtze Delta and even the whole Yangtze River valley. Shanghai will become a “Hong Kong” on the Chinese mainland and resume its position as one of the international economic, financial and trade centers”.
[7] Segundo “The Random House Dictionary of the English Language, Second Edition Unabridges”, “Cross fertilization” pode ser entendido como : “interaction or interchange, as between two or more cultures, fields of activity or knowledge, or the like, that is mutually beneficial and productive”.
[8] Pereira Pinto, Paulo Antônio – A China e o Sudeste Asiático, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2000.
[9] Vide Pereira Pinto, Paulo Antônio, “Iruan nas Reinações Asiáticas”, Editora Age, Porto Alegre,2004. O autor procura associar sua participação na batalha judicial para o retorno do menor brasileiro Iruan Ergui Wu, retido em Taiwan, ao Rio Grande do Sul, com a forma de negociação cultural com o universo de influência chinesa, do qual a ilha de Formosa faz parte.
[10] Denominação usada pelos chineses de outrora para definir sua posição hegemônica na Terra.
Paulo Antônio Pereira Pinto é Diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriormente, como Cônsul-Geral em Mumbai, entre 2006 e 2009 e, a partir de 1982, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. Na década de 1970 trabalhou, na África, nas Embaixadas em Libreville, Gabão, e Maputo, Moçambique e foi Encarregado de Negócios em Pretória, África do Sul. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com).
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