domingo, 14 de setembro de 2014

O impacto duradouro da Primeira Guerra Mundial

A. O. SCOTT
DO "NEW YORK TIMES"

"Me sinto como um soldado na manhã após o Somme." Tirada de um capítulo da segunda temporada do seriado da BBC "Call the Midwife", esta fala chamou minha atenção recentemente como um exemplo interessante de detalhe de época. Ela é dita por um médico a uma enfermeira logo depois de fazerem um difícil parto em casa. A comparação é com uma batalha que durou quatro meses, começando em 1º de julho de 1916 em um trecho lamacento da Picardia, e que foi, na época, o episódio de combate mais sangrento da história humana, tendo gerado 60 mil baixas em um único dia de combate, apenas do lado britânico. A comparação feita pelo médico certamente é um exagero metafórico, mas representa um estilo de humor familiar, o hábito de traçar comparações entre desafios que enfrentamos regularmente e calamidades que mal conseguimos imaginar.

Mas por que escolher essa calamidade em especial? Baseado numa série popular de memórias de Jennifer Worth, "Call the Midwife" acontece no final dos anos 1950, não muito tempo depois de uma guerra que ultrapassou de longe sua antecessora em termos de escala e extensão de carnificina global. É interessante o fato de o conflito anterior estar mais imediatamente presente no imaginário desse médico e enfermeira, mais ou menos jovens. A batalha do Somme é mais acessível e possivelmente mais imediata que Dunquerque ou o Dia D.

A alusão pode exigir uma nota de rodapé hoje, mas sua presença em um programa de televisão agudamente sensível à precisão histórica é um sinal de quão profundamente a Primeira Guerra Mundial ainda está entranhada na consciência popular. Descrita em sua época como "a guerra para acabar com todas as guerras", em vez disso ela se tornou a guerra à qual todas as guerras subsequentes, e muitas outras coisas da vida moderna, parecem fazer referência. Palavras e frases antes associadas especificamente à experiência do combate no front ocidental ainda fazem parte da linguagem comum. Mal reconhecemos frases como "nas trincheiras" ou "terra de ninguém" como sendo figuras de linguagem, muito menos imagens que evocam algo que foi no passado uma forma nova de morte organizada em massa. E raramente notamos que nosso entendimento coletivo do que aconteceu em trincheiras, selvas, montanhas e desertos muito distantes no tempo e espaço do arame farpado e sacos de areia da França e Bélgica nos chega filtrado pelo sangue, fumaça e sofrimento daqueles enfrentamentos anteriores.
Reuters 
Soldados americanos posam com diferentes modelos de máscaras de gás criados pelo Laboratório de Desenvolvimento Químico da Filadélfia, em imagem de 1919.


Uma pessoa que tomou nota da influência cultural duradoura e decisiva da Primeira Guerra Mundial foi Paul Fussell, estudioso literário e veterano da infantaria da Segunda Guerra Mundial cujo livro de 1975 "The Great War and Modern Memory" ainda é uma "tour de force" de crítica erudita e intensa. Fussell, morto em 2012, vasculhou romances, poemas e livros de memórias escritos na esteira da guerra e descobriu que eles estabeleceram um padrão que continuaria válido, conscientemente ou não, por boa parte do século 20.

Muitos soldados e oficiais britânicos chegaram ao front imersos em uma tradição literária que coloriu sua percepção –uma tradição que incluía não apenas épicos marciais e romances populares de aventura, mas também alegorias religiosas e românticas como "O Peregrino", de John Bunyan. O personagem principal dessa narrativa de dificuldade desesperadora e redenção final, escrita no século 17, é visto primeiramente como "um homem trajado em trapos" e com "um grande fardo sobre as costas". É uma descrição que parecia antever o recruta exausto, saído das trincheiras, com seu uniforme maltrapilho e mochila pesada.

Esse soldado, por sua vez, depois de algumas mudanças em seu uniforme e equipamentos, percorreria as décadas seguintes, deixando para trás um conjunto de depoimentos em primeira mão surpreendentemente consistentes. Quer sejam apresentados como memórias ou ficção, os escritos pós-1918 sobre a guerra voltam sempre para os mesmos temas e atitudes. Entre eles estão a ênfase sobre o tédio e o pavor dos combates em terra; o fato de ser privilegiada a visão do soldado comum, em detrimento da de oficiais ou estrategistas; a atitude de desconfiança em relação à autoridade e a tendência a ironizar aqueles que a exercem; um senso forte da separação existencial absoluta entre aqueles que combateram e as pessoas que ficaram em casa; um pendor pelo absurdo, o sarcasmo e o humor negro, e a conclusão de que, seja qual for o desenlace ou a justiça da guerra como um todo, para o veterano de guerra individual seu legado será o cinismo e a desilusão.

Fussell identificou essas características na literatura inspirada em sua própria guerra –em "Os Nus e os Mortos", "Ardil 22" e "O Arco-íris da Gravidade"–, e elas saturam as narrativas sobre o Vietnã que se seguiram à publicação de seu livro. O título de "The Things They Carried", o ciclo de histórias autobiográficas de Tim O'Brien sobre a vida antes, durante e depois de combater no Vietnã, encerra ecos de "O Peregrino", e seu misto de prosa enxuta, naturalismo franco e terror surreal faz dele tanto um relato definitivo dessa guerra quanto uma recapitulação da Grande Guerra.

Como quase todos os outros autores homens que escrevem em inglês e já trataram do tema da guerra, O'Brien tem uma dívida evidente com Hemingway, que chegou mais perto que ninguém de definir um modelo de como ele deve ser tratado, com um trecho famoso de "Adeus às Armas":

"Havia muitas palavras que você não suportava ouvir, e finalmente apenas os nomes de lugares tinham dignidade. Certos números eram a mesma coisa, e certas datas, e estas, com os nomes dos lugares, eram só o que você podia dizer e lhes dar qualquer sentido. Palavras abstratas como glória, honra, coragem ou santificar eram obscenas diante dos nomes concretos de vilas, os números de estradas, os nomes de rios, os números de regimentos e as datas."
Photo National Army Museum 
Soldados britânicos leem notícias do conflito em um das trincheiras da linha de frente durante a Primeira Guerra.


Essa observação contundente –ela própria curiosamente abstrata, não obstante sua insistência sobre a especificidade– continuou válida ao mesmo tempo em que a geografia mudou. O imperativo de relatar o que realmente aconteceu, mesmo para um público ou posteridade incapazes de entender plenamente, gerou uma literatura repleta de nomes e datas. Verdun, Passchendaele, Gallipoli, Guadalcanal, Monte Cassino, Stalingrado, Inchon, Khe Sanh, Kandahar, Fallujah. 11 de novembro, 6 de junho, 11 de setembro.

Em 1964, 50 anos depois de a guerra começar, Philip Larkin, nascido em 1922, publicou um poema memorial intitulado "MCMXIV". Seu tema não é tanto a guerra quanto uma Inglaterra passada, feita de "rostos arcaicos" e hábitos que ficaram para trás, uma Inglaterra que deixou de existir em algum momento entre o assassinado do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 28 de junho, e o começo das hostilidades plenas e continentais, no início de agosto. O poema procura congelar o momento em que o mundo mais velho –um mundo que os pais de Larkin conheceram intimamente, mas que estava um pouco além do horizonte de sua própria memória– "virou passado sem proferir uma palavra".

"Nunca mais essa inocência", Larkin conclui, resumindo aquilo que era, então e agora, uma base crucial da visão convencional sobre a Grande Guerra, uma noção que substanciou a rejeição de Hemingway da linguagem antiga e altiva sobre honra e glória. Ao mesmo tempo em que reconhece o poder sedutor da ideia de inocência perdida, Larkin sugere que ela é complexa, até enganosa. Indivíduos como as crianças e os maridos anônimos que povoam seus versos podem facilmente ser imaginados como inocentes. Estados-nações imperiais que passaram os últimos séculos conquistando a maior parte do resto do planeta são outra história.

Isso estava muito claro para Larkin, cujo patriotismo se baseava na noção de que a Inglaterra era o pior lugar do mundo, com a possível exceção de todos os outros lugares. A primeira vez em que ele emprega a frase "nunca tal inocência", ele a qualifica com "nunca antes ou depois", sugerindo que a aura edênica particular que paira sobre os meses de 1914 que antecederam a guerra pode ser ilusória, à sua própria maneira. Deixar entender que a Grã-Bretanha (ou qualquer outro país combatente) tenha sido de alguma maneira mais inocente na véspera da catástrofe é registrar um efeito posterior da própria catástrofe.

A guerra foi tão hedionda e terrível que só poderia ter explodido numa paisagem de bondade e pureza. Ou, pelo menos, esse é um dos mitos que ela deixa para trás. Outro, defendido na época por um punhado de intelectuais de vanguarda (notadamente os futuristas italianos) e adaptada por alguns historiadores posteriores, foi que a guerra acelerou tendências já presentes na sociedade moderna: em direção à violência mecanizada, ao conflito total e à fusão de tecnologia e política.

Muitos do relatos sobre aquele verão, especialmente na França e Grã-Bretaha, destacam o tempo belo e os prazeres veranis. "Fear", de Gabriel Chevallier, um romance de combate publicado em 1930, começa com a "França despreocupada" vestindo seus "trajes de verão". "Não havia uma nuvem no céu –um céu tão otimista, azul forte." Um exemplo rematado do jogo de realidade empírica com ornamentação literária: os registros meteorológicos podem atestar a cor e claridade do céu, mas apenas a ironia cruel e corretora da retrovisão poderia inspirar a palavra "otimista".
Reuters 
Oficiais alemães na Bélgica durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917.


E então: "Em alguns poucos dias, a civilização foi exterminada". Esta sentença brutalmente concisa, algumas páginas depois do início de "Fear", resume a perda da inocência que será aprofundada nos capítulos subsequentes da narrativa na primeira pessoa. Mas esses capítulos também deixarão claro até que ponto essa "civilização", tão inebriada com seu discurso de glória nacional e destino heroico, seria a autora de sua própria extinção. A discrepância entre esse discurso altivo e a realidade hedionda da guerra abre um abismo na experiência humana que, segundo Fussell, nunca se fechou. "Estou dizendo", ele escreveu, "que parece haver uma forma dominante de entendimento moderno, que ela é essencialmente irônica e que ela se origina em grande parte com o debruçar da mente e da memória sobre os acontecimentos da Grande Guerra."

Acontecimentos mais recentes e a resposta imaginativa e eles podem indicar até que ponto as visões podem mudar e as recordações podem perder força. O "céu azul forte" de Chevallier inevitavelmente evoca um certo céu de final de verão sobre Manhattan, quase 13 anos atrás, em outro momento que acabaria por assinalar uma divisão entre o Antes e o Depois.

Depois do 11 de setembro de 2001, nos foi dito –dissemos a nós mesmos– que tudo havia mudado. Numa inversão curiosa da lógica da Grande Guerra, os ataques contra o World Trade Center e o Pentágono foram largamente e rapidamente vistos como tendo anunciado "a morte da ironia". O que isso quis dizer, pelo menos inicialmente, foi que um estilo cultural dominado (segundo Roger Rosenblatt na "Time", entre outros) por "desapego e caprichos pessoais" daria lugar a uma ética de seriedade e sinceridade. Mas, vistos em retrospectiva, os obituários da ironia não apenas foram prematuros como fizeram parte de uma reafirmação agressiva da inocência, um esforço coordenado para refutar a conclusão de "MCMXIV", de Larkin.

Seguiu-se uma reabilitação das palavras abstratas que Hemingway e sua geração perdida viram como tão intoleráveis. Soldados comuns passaram a ser descritos rotineiramente como "heróis" e "guerreiros", ao mesmo tempo em que seus ferimentos ou mortes eram mantidos longe das vistas do público. Este, em casa, era incentivado a fazer manifestações de patriotismo e apoio, mas também a levar adiante as rotinas otimistas do trabalho, lazer e compras, "como se" (citando Larkin) "fosse tudo uma brincadeira de um feriado de agosto".

Mas a Grande Guerra ainda não deixou por completo de estar conosco. Enquanto as guerras no Afeganistão e Iraque terminam em meio à inconclusividade sangrenta, os homens e mulheres que combateram nelas começaram a escrever, e os textos que produzem devem nos conduzir de volta à manhã após o Somme. O romance premiado de Ben Fountain "Billy Lynn's Long Halftime Walk", de 2012, extrapola a ironia para mergulhar na farsa, justapondo as experiências de um pelotão sofrido mergulhado do caos do Iraque para o espetáculo vulgar do Super Bowl, onde seu serviço militar é homenageado e explorado. O livro fica bem na companhia irreverente de "Ardil 22", ou seja, na mesma estante que "Nada de Novo no Front" e de "Fear", de Chevalier.

Enquanto isso, "Redeployment", de Phil Klay, lançado este ano, segue a linha pragmática e contundente de Hemingway e "The Things They Carried". Coletânea enganosamente modesta de contos interligados, o livro é cheio de topônimos, números e siglas militares, humor negro, frustração sexual, amizade sentimental e desprezo pela autoridade. Só pode ter sido escrito por alguém que esteve lá, se bem que, com alguns ajustes em matéria de tecnologia, jargão e clima, o "lá" pudesse igualmente bem ser Ypres ou Ramadi. E a moral poderia ter sido escrita pelo memorialista britânico Edmund Blunden, que tirou uma lição brutal de sua própria experiência na batalha do Somme: "A Guerra tinha vencido e continua a vencer".

Tradução de CLARA ALLAIN
Folha de S. Paulo

Há um século, estourava a Primeira Guerra, conflito até hoje nebuloso


MARCELO COELHO


RESUMO A responsabilidade russa, as atrocidades do exército prussiano sobre os belgas, o assassinato do arquiduque e o jogo político na Europa são alguns dos temas explorados em diversos livros recentes que investigam a Primeira Guerra, conflito que, cem anos depois de seu início, permanece ainda pouco investigado.

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Ao contrário da Segunda Guerra Mundial -que se explica pelo nazismo-, tudo é obscuro e controverso no conflito que foi de 1914 a 1918. A morte de ao menos 10 milhões de pessoas naqueles quatro anos parece ter sido um sacrifício inútil, causado não se sabe exatamente por que razão.

Os resumos de escola se contentam em mencionar o assassinato de Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, como o "estopim" da Primeira Guerra -que, em seguida, é desqualificada como um confronto entre potências imperialistas (França, Inglaterra, Rússia e, posteriormente, Itália e Estados Unidos de um lado; Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano de outro).

Sem despertar maiores torcidas no plano moral, o interesse pela Primeira Guerra termina diminuído na comparação com a luta dos Aliados contra Hitler e Mussolini; a complicadíssima crise de 1914 pode ser fascinante, mas tende a atrair sobretudo os fanáticos pelos jogos de geopolítica e pelas teorias das relações internacionais.

Vários livros vão sendo editados no Brasil por ocasião do centenário da Primeira Guerra, e podem mudar bastante essa percepção.
Foto Eduardo Anizelli/Folhapress 

Nenhum dos que serão comentados neste texto consegue superar "Os Canhões de Agosto", clássico de Barbara Tuchman publicado nos Estados Unidos em 1962 e com tradução brasileira esgotada há bastante tempo. É que, ao contrário das interpretações correntes, a historiadora americana (1912-1989) não temeu os julgamentos morais -em seu livro, condena claramente a Alemanha-, sem sacrificar por isso a precisão e o ritmo fulgurantes da narrativa.

Mesmo que seu ponto de vista se revele contestável à luz de pesquisas mais recentes -como a de Sean McMeekin, no ainda não traduzido "July 1914" [Perseus, R$ 72,30, 464 págs.; disponível também em e-books], que aponta para a responsabilidade russa na crise-, o livro de Barbara Tuchman é o melhor "estopim" emocional para quem quiser se envolver nas discussões sobre o conflito.

MILITARISMO

Ainda que todos os participantes da Primeira Guerra tenham promovido atos hediondos -com monumental destaque para o genocídio armênio, que deixou pelo menos 1 milhão de mortos, empreendido pelos turcos a partir de 1915-, mesmo antes de Hitler o militarismo prussiano acumula um currículo com o qual é difícil rivalizar.

Os alemães foram os primeiros a utilizar gás venenoso na guerra, na segunda batalha de Ypres, em 1915. Antes disso, os franceses se limitaram ao gás lacrimogêneo. Logo os combatentes trataram de se proteger com máscaras de diversos tipos. Ao cloro letal, capaz de corroer o tecido dos pulmões, a tecnologia alemã acrescentou então o gás mostarda, que atua diretamente sobre a pele.

Veio dos alemães a decisão de usar submarinos (indetectáveis à época) para atacar não só navios militares como também navios mercantes, a partir de outubro de 1914, e também transatlânticos de passageiros, como o britânico Lusitania, em maio de 1915. O navio afundou em menos de 20 minutos, matando perto de 1.200 civis.

Foram também os primeiros, na Grande Guerra, a lançar ataques aéreos contra a população urbana. Em agosto de 1914, nove habitantes da cidade belga de Liège foram mortos por bombas jogadas de um zepelim. Inicialmente vetados pelo kaiser, os bombardeios contra Londres viriam no começo de 1915.

Numa incursão inútil ao litoral britânico, o almirante Von Hipper explodiu casas de veraneio e edifícios públicos em dezembro de 1914. Era o conceito de "guerra total", ou "absoluta", que se impunha sobre as populações europeias (embora tivesse precedentes mais antigos). Não mais se acreditava que um conflito entre países dependesse só de batalhas entre soldados; tratava-se de destruir todos os recursos econômicos, humanos e morais do adversário.

ATROCIDADES

Nenhuma dessas iniciativas alemãs teve efeito comparável, na opinião pública mundial, ao das famosas "atrocidades" (o termo virou um lugar-comum) cometidas na Bélgica logo nos primeiros dias da guerra.

Era tão grande a autoconfiança da máquina militar prussiana que os invasores nem sequer cogitavam uma possível resistência do pequeno país neutro. Os planos alemães previam passar pela Bélgica rapidamente, de modo a atacar a França pelo norte, evitando a linha de fortificações que protegia a fronteira leste francesa.

Não se teve ideia melhor do que redigir um ultimato à Bélgica -que não tinha nada a ver com o que acontecia do outro lado da Europa, entre russos, sérvios, austríacos e alemães. O pequeno país do rei Alberto 1º tinha sua neutralidade garantida por um tratado internacional assinado em 1839, pela Prússia inclusive.

O tratado? "Só um pedaço de papel", na frase famosa do ministro alemão das Relações Exteriores, Theobald von Bethmann-Hollweg. Para assegurar a marcha até Paris, ele expediu uma carta aos belgas, prometendo não atacá-los e pagar por eventuais prejuízos, caso franqueassem suas fronteiras às tropas alemãs.

Já em 1904, o kaiser Guilherme 2º acenara com ganhos territoriais para a Bélgica, em caso de derrota dos franceses. De modo tipicamente descalibrado -para dizer o menos-, prometera também a "coroa da Borgonha" ao soberano belga.

Preferindo resistir a anular-se como país independente, a Bélgica logo enfrentaria uma impiedosa devastação. Os alemães não duvidavam da própria superioridade militar, mas temiam a reação de franco-atiradores.
Em "Catástrofe - 1914: A Europa vai à Guerra" [trad. Berilo Vargas, Intrínseca, R$ 49,90, 704 págs.; R$ 29,90, e-book], do jornalista e historiador britânico Max Hastings, 68, alinham-se exemplos chocantes das retaliações do exército do "kaiser" sobre a população belga.

Trata-se de um dos raros livros recentes a insistir na tese da culpa alemã, tese essa que teve seu auge na década de 1960 com as pesquisas do germaníssimo (e ex-nazista) Fritz Fischer (1908-1999), da Universidade de Hamburgo.

Hastings conta que, em 5 de agosto de 1914 (dois dias depois de a Alemanha declarar guerra à França), dez moradores de uma aldeia belga, incluindo uma família de cinco pessoas, foram assassinados em resposta à morte de soldados alemães. Os 118 habitantes da vila de Soumagne foram mortos com tiros ou golpes de baioneta no dia seguinte.

Os alemães avançaram até Liège: em 8 de agosto, como punição por atos de resistência, 850 civis foram executados, e 1.300 casas, destruídas pelo fogo.

O pior aconteceria em Louvain, também na Bélgica, em 25 de agosto. Um incêndio acidental colocou os alemães em polvorosa. Invadiram casas, arrastaram moradores para a rua, espancaram-nos, fuzilaram-nos, e tiveram a ideia de incendiar uma das mais valiosas bibliotecas da Europa, com 300 mil volumes. Em seguida, impediram os bombeiros de agir, destruíram 2.000 edifícios e expulsaram 10 mil habitantes de suas casas, deportando 1.500 para a Alemanha.
Tatiana Blass/Divulgação 

Casos semelhantes fazem parte, hoje em dia, da rotina de qualquer guerra; na época, justificaram plenamente a imagem dos alemães como "bárbaros", ou "hunos", no vocabulário da propaganda britânica. Contra os 6.427 civis mortos pelos alemães em 1914, segundo Hastings, contam-se apenas 101 vítimas da população alemã na invasão russa da Prússia Oriental, no mesmo ano.

O que explica tanto furor guerreiro? Hastings cita o texto de um polemista alemão em 1913, segundo o qual "a destruição impiedosa das forças inimigas é o objetivo mais humano que se possa ter, por estranho que pareça". Havendo muita consideração pelo adversário, a guerra se prolongaria demais, com prejuízo para todos.

PERSPECTIVAS

Para encontrar perspectivas menos desfavoráveis aos alemães, é preciso fechar os livros de Barbara Tuchman e Max Hastings, cuja argumentação viemos seguindo até agora.

"Os Sonâmbulos" [trad. Laura Teixeira Motta e Berilo Vargas, Companhia das Letras, R$ 69,50, 704 págs.; R$ 39,50, e-book], do britânico Christopher Clark, tem vários pontos de superioridade sobre "Catástrofe". Concentra-se sobre os antecedentes históricos da Primeira Guerra, traçando com nitidez e verve a situação política, para lá de confusa, dos países envolvidos no conflito.

Enquanto Hastings é sobretudo um historiador militar da velha guarda, apressando a narrativa da crise diplomática de julho de 1914 para contar em pormenor as batalhas travadas ao longo daquele ano, Clark ilumina a sequência de improbabilidades, cálculos errados e tensões involuntárias que iria desencadear o conflito.

Evita o "jogo da culpabilização", ou "blame game", sempre tentador num desastre de tais dimensões. "A Grande Guerra foi uma tragédia, não um crime", afirma na conclusão.

CRIME BÁRBARO

Seja como for, o livro de Clark começa com um crime bárbaro e repugnante. Não se trata, ainda, do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua mulher. Para uma descrição sensacional do atentado, a melhor leitura em português está em "O Assassinato do Arquiduque: Sarajevo, 1914, e o Romance que Mudou o Mundo" [trad. Gilson César Cardoso de Souza, Cultrix, R$ 52, 400 págs.], de Greg King e Sue Woolmans.

Mas o crime a que Clark se refere ocorreu em Belgrado, 11 anos antes. O rei Alexandre e a rainha Draga são acordados no meio da noite; é uma conspiração militar. Estão protegidos, nos aposentos reais, por uma pesada porta de carvalho -que uma carga de dinamite põe abaixo. O casal se esconde na rouparia.

Em outras partes de Belgrado, o massacre toma livre curso; dois irmãos da rainha são apunhalados, o primeiro-ministro e o ministro da Guerra são executados à queima-roupa. Por fim, o rei e a rainha serão encontrados, mortos e esquartejados. Era o fim da dinastia dos Obrenovic, notável pela brutalidade.

Toma conta do reino o representante da dinastia rival, de currículo não menos apavorante, mas seguindo um ideário supostamente liberalizante -e, principalmente, expansionista. Numa região pulverizada em pequenas nacionalidades, tentando emergir entre os destroços de dois impérios (o Otomano e o Austro-Húngaro), ganhava força o lema segundo o qual "onde há um sérvio, lá é a Sérvia".

O grupo que toma o poder após o assassinato de Alexandre e Draga tem apoio da Rússia, motivada não só por questões de identidade étnica -eram todos "eslavos"- mas também pelo afã de garantir o enfraquecimento de turcos e austríacos numa área de importância geopolítica fundamental até hoje. A saber, o lado oriental do Mediterrâneo e sua ligação com o mar Negro, capaz de prover a Rússia de portos incomparavelmente mais convenientes do que as águas geladas do norte europeu.

Os assassinos de 1903, em especial o famigerado Dragutin Dimitrijevic, o Apis (chefe da organização secreta Mão Negra e também responsável pelo serviço de inteligência do Exército sérvio) dariam inspiração e recursos para que o jovem Gavrilo Princip, nascido na Bósnia, mas de origem sérvia, disparasse os tiros de Sarajevo.

Do ponto de vista de hoje, marcado pelos atentados do 11 de Setembro, não chega a ser surpreendente que os austríacos tenham desejado reagir militarmente contra a Sérvia, cuja organização governamental estava implicada claramente em atos terroristas.

Com notável isenção, Clark lembra que não deixavam de ser legítimos os interesses da Sérvia em aumentar seu raio de independência, em meio a minorias nacionais sob o jugo dos austríacos.

Torre de Babel O regime do velhíssimo imperador Francisco José errou catastroficamente ao pretender punir a Sérvia. Seu Exército, uma torre de Babel de nacionalidades que mal e mal improvisaram um mínimo idioma alemão em comum, vinha acumulando derrotas durante todo o século anterior. Enquanto isso, a Rússia se armava e se modernizava, com entusiasmada assistência francesa.

Uma ação austro-húngara contra a Sérvia previsivelmente desencadearia uma represália russa. Sabendo disso, os austríacos enviaram à corte do kaiser, no começo de julho, uma missão encarregada de avaliar o apoio dos alemães à pretendida missão punitiva.

Obteve da Alemanha o famoso "cheque em branco", garantindo, nos termos da aliança entre os dois países, sustentação militar à invasão da Sérvia. Guilherme 2º esperava que os austríacos empreendessem uma "blitzkrieg" contra Belgrado, coisa que eles não estavam preparados para fazer. Grande parte do Exército, composto de camponeses, se preparava para a colheita do verão; quanto à metade húngara do sistema político dual do império, eram imensas as resistências a entrar em guerra.

Clark, assim como faz Sean McMeekin em sua reconstituição, dia por dia, dos mal-entendidos e hesitações da crise, é excelente ao demonstrar que, dentro de cada país e dentro do espírito de cada uma das principais lideranças políticas, nada existia de unívoco.

O kaiser tinha, com certeza, alguns parafusos a menos. Após um concerto, pegava o maestro pelo braço e lhe ministrava lições de música. Após receber um título puramente honorífico da Marinha britânica (era neto da rainha Vitória), começou a pedir informações e dar palpites sobre a organização do poderio naval alheio.

"Os Três Imperadores" [trad. Clóvis Marques, Objetiva, R$ 57,90, 600 págs.; R$ 29,90, e-book], da britânica Miranda Carter, faz a biografia conjunta, com algum excesso de fofocas familiares, dos primos George 5º (Inglaterra), Nicolau 2º (Rússia) e Guilherme 2º (Alemanha).

No plano puramente estratégico, o soberano alemão tinha sempre uma proposta absurda: numa crise entre EUA e Japão, por exemplo, ofereceu ao presidente americano um destacamento militar para guardar a costa californiana.

Enquanto os austríacos não invadiam a Sérvia, o medo passou a tomar conta de Guilherme 2º; cada dia de atraso tornava mais provável a mobilização russa em favor do pequeno país eslavo.

Por que não desistir, então?

Bem que o kaiser tentou, assim como Nicolau 2º do lado russo, mas a crise acabou chegando a um ponto em que a técnica (e os desejos) puramente militares tornavam difícil recuar.

A diplomacia significava cada vez menos. É difícil, apesar das argumentações de Clark e de McMeekin, crer na sinceridade dos esforços, ou na acidentalidade dos erros, de um personagem como Bethmann-Hollweg, ministro das Relações Exteriores alemão. Cada passo inexplicável da diplomacia alemã pode ser visto como falha profissional mas também como aposta no caminho de fazer a Rússia, e não a Alemanha, surgir como responsável pela beligerância.

"MYGOTOVY!"

Sem dúvida, a violência com que a Alemanha desencadeou o ataque à Bélgica e à França só se justifica, do ponto de vista subjetivo, pelo fato de que se sentia efetivamente acuada por inimigos a ponto de querer destruí-los.

A teoria de que a Alemanha estava "cercada" e que só desejava "um lugar ao sol" ganha argumentos no livro de Clark e, mais ainda, em "O Horror da Guerra" [trad. Janaína Marcoantonio, Planeta, R$ 89,90, 768 págs.], do escocês Niall Ferguson, pelo fato de que repetidas vezes a Inglaterra vetou empreendimentos comerciais alemães no Oriente e na África.

É mais fácil ver, por outro lado, o que a França teria a ganhar na eventualidade de uma guerra (tratava-se de recuperar as regiões da Alsácia e da Lorena, perdidas para Bismarck em 1870), do que os benefícios à Alemanha. Se a Rússia quisesse entrar em guerra com Alemanha e Áustria em função de algum conflito balcânico, disse famosamente o francês Poincaré em 1912, "estamos prontos" a ajudar. Falou em russo: "Mygotovy!"

A certeza de que a Rússia, com ajuda francesa, militarizava-se cada vez mais foi um importante fator para o pensamento militar germânico. Melhor entrar em guerra agora do que mais tarde, raciocinava Moltke, o chefe do Estado-Maior alemão.

Ele sabia que a guerra europeia, nas condições modernas, seria prolongada e destrutiva (ao contrário, seu equivalente francês, Joffre, apostava em cargas de cavalaria e baionetas no estilo napoleônico). Mesmo representando o "fim da civilização", era uma realidade que teria de ser encarada.

Trata-se de um bom exemplo daquele "pensamento trágico" tão ao gosto dos conservadores -de qualquer país, aliás. O debate sobre as responsabilidades de cada um no morticínio é interminável. A bibliografia, mesmo em português, não cessa de aumentar.

"Os Sonâmbulos", de Clark, é o melhor da atual safra. "O Horror da Guerra", de Ferguson, formula as perguntas cruciais sobre a guerra em seu conjunto (por que as pessoas lutavam? Houve entusiasmo da população? Que país era o mais militarista?), mas peca por certa extravagância nas respostas, com marcada antipatia pela posição inglesa no conflito. O excesso de estatísticas e notas torna mais trabalhosa, ademais, sua leitura.

"Catástrofe", de Max Hastings, combina história diplomática, narrativa militar e depoimentos de soldados e civis para traçar um quadro do primeiro ano do conflito, atento à voga da "história do cotidiano", à técnica militar e à tendência recente de enfocar o desenvolvimento dos conflitos nas decisões individuais de seus protagonistas. O resultado é que o texto, apesar de muito claro, parece oscilar entre essas três perspectivas.

A vida nas trincheiras e nas regiões assoladas pelo conflito é tratada de forma engenhosa em outro livro, "A Beleza e a Dor" [trad. Fernanda Sarmatz Åkesson, Companhia das Letras, R$ 62, 520 págs.], do sueco Peter
Englund, que entrelaça histórias reais de pessoas de várias nacionalidades durante aqueles anos.

Como texto de referência, algo como um verbete de enciclopédia bastante estendido, há ainda "A Primeira Guerra Mundial" [trad. Roberto Cataldo Costa, Contexto, R$ 69,90, 560 págs.], de Lawrence Sondhaus. Até o final deste ano do centenário da Grande Guerra, certamente mais coisa será lançada nesse horizonte, já tão cheio de clarões e de fumaça.

MARCELO COELHO, 55, é colunista da Folha.
TATIANA BLASS, 34, artista plástica, é autora de "A Família Mobília" (Cosac Naify).
FOLHA DE S.PAULO

Notícias História Viva


Diários da Ucrânia

JOHN THORNHILL
DO "FINANCIAL TIMES"



Quando qualquer país se torna manchete e é convulsionado por distúrbios históricos, é difícil imaginar que a vida cotidiana continue mais ou menos como no passado. Mas mesmo em tempos de guerra, bebês nascem e os velhos morrem (de causas naturais), enquanto as pessoas com idades entre esses dois extremos se apaixonam e desapaixonam, e registram sucessos e fracassos profissionais.

O poder de "Ukraine Diaries" (Diários da Ucrânia), de Andrey Kurkov, que cobre o período entre novembro do ano passado e abril deste ano, está em entrelaçar o extraordinário e o corriqueiro. Em suas anotações diárias, o escritor fala de sua visão sobre alguns dos mais momentosos acontecimentos na história recente de seu país, mas também relata sua vida cotidiana. Como leitores, vivemos a revolução Maidan, a derrubada do presidente Viktor Yanukovych e a anexação da Crimeia pela Rússia. Mas também somos informados sobre a festa de paintball organizada por Kurkov para celebrar o 11º aniversário de seu filho, o progresso da safra de batatas em sua dacha [casa de campo], e sua visita ao hospital com a mãe, que foi passar por um eletrocardiograma. Dessa maneira, a história recente da Ucrânia se torna mais humana e real.

Como um dos mais famosos escritores ucranianos, Kurkov conquistou apreciação generalizada no Ocidente por meio de seus romances do absurdo, tais como "Death and the Penguin" (1996) e "The President's Last Love" (2007). Ele explica no prefácio que mantém um diário pessoal há mais de 30 anos e que jamais havia se sentido tentado a publicar quaisquer porções de suas anotações. Mas como homem que vive com a mulher e os três filhos em um apartamento localizado a apenas alguns quarteirões da Praça da Independência, em Kiev, ele se tornou vítima do "redemoinho da História". "De nossa sacada vimos a fumaça subindo das barricadas em chamas, ouvimos as explosões das granadas e os tiros", ele explica. "Registrei essa vida quase todos os dias, de modo que agora posso tentar relatá-la a vocês em detalhes".

Um dos temas mais notáveis do diário é a dificuldade que ele sente em compreender o que está acontecendo no país. Cabe a jornalistas e historiadores construir narrativas interpretativas. Mas os diários de Kurkov destacam o quanto é difícil interpretar a importância de eventos enquanto eles ainda estão em curso. Como homem de letras, Kurkov se sente incomodado por sua incapacidade de se expressar com clareza. Ocasionalmente, ele admite, quase lhe faltam palavras. E o tumulto político tem um custo pessoal: em dado momento, Kurkov escreve sobre ter se sentido envelhecer cinco anos em três meses.

Parte do problema é que rumores e desinformação deliberada influenciam demais a nossa compreensão. O movimento Escolha Ucraniana, que rejeita a aproximação com a Europa, conseguiu convencer muita gente de que a conversão universal à homossexualidade era condição para a assinatura do acordo de associação com a União Europeia. Em fevereiro, um dos assessores do Partido das Regiões, de Yanukovych, causou comoção ao alegar que paraquedistas norte-americanos estavam operando no oeste da Ucrânia e exigir que tanques russos fossem enviados para combatê-los. "Já posso vê-los cruzando todo o país, até a fronteira oeste, procurando soldados norte-americanos, e depois voltando para casa e pedindo desculpas pelo incômodo!", escreve Kurkov.

Revoluções podem parecer empreitadas românticas, mas, como Kurkov deixa claro, elas muitas vezes são sangrentas e confusas, e só radicalizam as pessoas, tornando mais difícil uma solução de compromisso. Sobre aquela que está vivendo, ele ouve alguém dizer que só as floriculturas e os fabricantes de velas foram beneficiados. As ruas estão enfeitadas de coroas de flores celebrando as vítimas da revolução, e o número de velas queimando nas igrejas é 100 vezes maior que o normal, ele alega. "É para que Deus possa ver com clareza o que está acontecendo na Ucrânia".

Outro tema do livro é o lamento de Kurkov pela deterioração no relacionamento entre os povos ucraniano e russo. De acordo com diferentes estimativas, há entre oito milhões e 14 milhões de pessoas de etnia russa vivendo na Ucrânia. O escritor mesmo é russo, nascido em 1961 em Leningrado mas morador de Kiev desde a infância, e claramente sente de maneira aguda esse crescente antagonismo. Ele recorda que o primeiro membro de sua família a pisar o solo da Ucrânia foi seu avô, que chegou em 1943 com o exército soviético e foi morto na batalha pela libertação de Kharkiv. "Ele morreu combatendo os fascistas, e agora ouço a palavra 'fascista' dirigida a mim porque me pronunciei, e continuo a me pronunciar, contra a corrupção generalizada organizada pelo presidente Yanukovych, de seus esconderijos".

Ao longo do diário, Kurkov expressa sua crescente indignação diante do que está acontecendo na Rússia. É quase como se um amigo que alguém conhece bem estivesse perdendo o juízo. Putin surge como um vilão de bastidores, conspirando pela "restauração da legitimidade histórica", compreendida aqui como a reconstrução da União Soviética. "Acredito que um plano como esse existisse, e que ainda exista", ele escreve. Para Putin, a Crimeia é como um diamante roubado; ele só pode se vangloriar sobre ela na escuridão, em lugar de apresentar o caso abertamente como triunfo. Mas a Crimeia claramente aparece nas reportagens meteorológicas da TV russa, em companhia do Donetsk e de Kharkiv, e sua flora e fauna estão incluídas nas classificações russas.

A ira mal contida de Kurkov se concentra naqueles que distorcem o que está acontecendo na Ucrânia. Ele escreve uma carta ao escritor russo Sergei Lukyanenko, que proibiu a publicação de traduções de seus livros em ucraniano em protesto contra o fascismo, dizendo que "fui informado de que você escreve trabalhos de fantasia. É estranho que sua imaginação não tenha poder suficiente para que você compreenda que o povo ucraniano não deseja mais viver sob um sistema de total corrupção, sob um governo analfabeto que só deixa para trás um país pilhado e falido".

Em um posfácio ao diário, escrito em junho, Kurkov sugere que a Ucrânia –como os médicos costumam dizer– está em situação estável mas crítica. Ninguém pode prever o futuro do país, ele prossegue, citando um provérbio ucraniano: "Se você quer que Deus ria, conte-lhe seus planos". Mas ele expressa amargura quanto à União Europeia, inicialmente vociferante em seu apoio aos protestos do Maidan, que mais tarde caiu no silêncio e se afastou da Ucrânia, preferindo lucrar no comércio com a Rússia. Kurkov pode ter revisto suas opiniões diante das sanções internacionais contra a Rússia anunciadas esta semana; no livro, porém, ele chega a uma conclusão sombria: "O dinheiro importa mais que a democracia", ele escreve. "Essa cínica lição ensinada pela Europa à Ucrânia inevitavelmente influenciará o futuro de meu país".

"Ukraine Diaries: Dispatches from Kiev", de Andrey Kurkov (Vintage Digital, US$ 9,99, na Amazon, e-book).

John Thornhill é editor assistente do "Financial Times" e foi chefe da sucursal do jornal em Moscou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI
FOLHA DE S.PAULO

Notícias História Viva


Cineasta desafia censores chineses para revelar horrores da Grande Fome

Documentários de Hu Jie contam a história de estudantes cujas críticas aos excessos maoistas custaram suas vidas

TANIA BRANIGAN
DO "OBSERVER", EM PEQUIM


Para os modernos estudantes chineses, o nome não é "Grande Fome" mas "Três Anos de Dificuldades". A catástrofe continua a ser assunto tão delicado que seus livros de história não documentam quantas pessoas morreram de fome, e por quê. No entanto, mais de 50 anos atrás, no pico do desastre, alguns poucos de seus predecessores publicavam uma revista clandestina que acusava diretamente os líderes comunistas de causar a devastação. "Os mortos não tinham como contar suas histórias", diz Xiang Chengjian, um dos responsáveis pela revista. "Decidi me sacrificar... estava pronto para morrer".

A história da revista "Faísca", e da audácia dos estudantes, é o mais recente pedaço do passado da China escavado pelo documentarista Hu Jie. Seus documentários revelam os excessos maoistas dos anos 50, 60 e 70, e os extraordinários indivíduos que tentaram nadar contra a corrente.

"Quero que as pessoas tenham a chance de conhecer a história real", ele diz. Hu, um ex-soldado barbado e ainda musculoso apesar de ter passado dos 50 anos, foi demitido da agência estatal de notícias Xinhua depois de começar a trabalhar em seu primeiro filme, "Em Busca da Alma de Lin Zhao", em suas horas vagas. Lin era um jovem e talentoso dissidente que terminou executado como inimigo da revolução, e escreveu cartas usando o próprio sangue como tinta, quando estava encarcerado.

Pouco depois surgiram dois documentários espantosos sobre a Revolução Cultural. "Embora Eu Tenha Partido" relata a brutal morte da professora Bian Zhongyun, executada pelos alunos; "Minha Mãe Wang Peiying" é sobre a execução de uma mulher que pediu a renúncia de Mao Tse-Tung.

Os temas de que Hu trata são tão sensíveis que alguns dos envolvidos não os discutem nem mesmo com suas famílias. Ele convenceu uma gama notável de testemunhas a falar diante das câmeras; algumas ficam agradecidas pela oportunidade de se pronunciar depois de esconder a verdade por muitos anos.

"Estou tentando preservar todo esse material. Se essas pessoas morrerem, todas essas recordações terão desaparecido", disse Hu.

Mas há quem simplesmente se recuse a falar, e um dos entrevistados em "Faísca" se detém subitamente ao receber no meio da entrevista um telefonema que o alerta para que não fale. Desafios como esse ajudam a explicar por que a realização do filme demorou cinco anos.

"Não começo com nada preconcebido para essas filmes", diz Hu. "É um processo de descoberta, para mim. Sempre soube que havia alguma coisa lá, mas não exatamente do que se tratava. Descubro no processo de realizar o filme."

"Eu sabia que uma publicação tinha existido, mas não sabia do que ela tratava. Sabia só que pessoas tinham morrido por causa dela", ele acrescenta.

A Grande Fome foi causada pela política do Grande Salto à Frente, que Mao adotou em 1958 –um esforço para causar uma disparada na produção industrial e agrícola usando a coletivização e o zelo revolucionário.

As autoridades locais, por ambição e por medo, exageraram drasticamente o volume de suas safras; comida desesperadamente necessária no campo foi enviada às cidades e até exportada. Os quadros do partido intimidavam, espancavam, detinham e matavam as pessoas que alertassem as autoridades nacionais, roubassem comida para sobreviver ou tentassem fugir da região da fome.

Enquanto via mais e mais cadáveres se empilhando, um pequeno grupo de estudantes decidiu agir. Os dois números da revista "Faísca" –tudo que puderam publicar antes que fossem apanhados– mostravam que as comunas haviam transformado os agricultores em escravos, e protestavam contra os quadros do partido, que se banqueteavam enquanto o povo morria de fome.

"Os intelectuais chineses mantiveram o silêncio. Ninguém ousava criticar o governo", disse Hu, "Só os estudantes ousavam falar, e isso lhes custou a vida".

Hu não está sozinho em seu trabalho. Outros pesquisadores chineses tentaram documentar a catástrofe. Yang Jisheng, antigo repórter da Xinhua, passou 15 anos vasculhando os arquivos oficiais para produzir seu relato, intitulado "Lápide". Outro documentarista, Wu Wenguang, recorreu a jovens voluntários para que recolhessem depoimentos de história oral. Mas esses trabalhos não podem ser veiculados na China, e Yang vem sendo criticado recentemente por adversários que se recusam a aceitar que dezenas de milhões de pessoas tenham morrido e que o Grande Salto à Frente tenha causado essas mortes.

"As pessoas nos documentários estão morrendo por nós –se sacrificaram para nos salvar. Temos a obrigação moral de relatar suas histórias", diz Hu.

Em dado momento, ele trabalhou gravando vídeos de casamentos para bancar seus documentários; agora, ele e a mulher Jiang Fenfen vivem de suas aposentadorias. Trabalham com verba minúscula, comprando passagens para viajar em pé nos trens e se hospedando nos hotéis mais baratos. "Meu sacrifício pessoal nem merece menção, mas admiro a contribuição de minha mulher", ele diz.

Hu está perdendo um pouco de energia, ao envelhecer, e dedica mais tempo a um amor anterior, a pintura –ainda que seus quadros muitas vezes se relacionem aos temas de seus filmes. Mas espera que uma nova geração de documentaristas compreenda a importância da era que ele cobre e que assuma a tarefa que ele vem realizando.

"Se você não registrar o passado, talvez ninguém mais o faça", ele adverte.

Tradução de PAULO MIGLIACCI
FOLHA DE S.PAULO

Mil disfarces de Getúlio Vargas convergem num gesto de coerência

OTAVIO FRIAS FILHO
RESUMO O teatral suicídio de Getúlio, impelido pelas pressões políticas internas e externas sobre seu governo e ocorrido há 60 anos, fez com que o poder político do estadista perdurasse após sua morte. Últimos anos de sua vida são tema do terceiro e último tomo da biografia que lhe consagra Lira Neto, aqui resenhado.

Os efeitos políticos do suicídio de Getúlio Vargas (1882-1954), que hoje completa 60 anos, já se dissiparam há muito tempo, mas o ato continua a reverberar pela singularidade.

Trágico, violento e irrecorrível, ele discrepa dos costumes conciliatórios vigentes desde pelo menos meados do século 19, quando se fixou o padrão das revoluções com pouco ou nenhum derramamento de sangue e das transições negociadas em que parte da velha ordem se transfere como por osmose à nova (1889, 1930, 1945, 1964, 1985). Discrepa também da personalidade do suicida, conciliador-mor que encarnou como ninguém o papel de sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas. Como todo gesto extremo, terá sido preparado por uma complexa malha de causas.
Foto Marcelo Justo/Folhapress 

É sabido que Getúlio sentia atração pelo suicídio honroso, destinado a prevenir alguma condição intolerável na eventualidade de uma derrota definitiva. Pelo menos duas vezes ele mencionou a possibilidade por escrito, quando era arrastado, em outubro de 1930, após muita hesitação, à ofensiva rumo ao Rio, sem saber que resistência encontraria pelo caminho, e em julho de 1932, quando foi surpreendido pelo ímpeto da contrarrevolução constitucionalista que irrompeu em São Paulo. Um de seus filhos viria a suicidar-se em 1977, o que parece sugerir alguma propensão inata.

Para que essa atração se convertesse em ato, porém, foi preciso que todas as portas se fechassem. Com os mandantes da tentativa de assassinar Carlos Lacerda (da qual resultou a morte de um oficial da Aeronáutica) alojados em seu palácio, com o "mar de lama" que as investigações subsequentes revelaram, Getúlio enfrentava uma avassaladora campanha pela renúncia, que logo se traduziu em ultimato militar transmitido pelo próprio ministro da Guerra (Exército). Naquela madrugada de 24 de agosto de 1954, ele ainda negociou uma licença que o manteria afastado do cargo até a conclusão das diligências. Os militares, contudo, foram irredutíveis.

Relatos da época indicam um presidente amargurado, aos 72 anos, com os desmandos na família cometidos às suas costas e, ao mesmo tempo, receoso de que ela passasse a objeto de execração pública: um irmão e um filho talvez estivessem a par da preparação do atentado; outro filho vendera uma propriedade a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do palácio e mentor do crime, pago com empréstimo bancário avalizado por João Goulart, ministro do Trabalho até a véspera e afilhado político do presidente.

Num homem tão racional e metódico, mesmo os lances da paixão foram comedidos pelo cálculo. Psicologia à parte, o extraordinário nesse suicídio é seu alcance político -num derradeiro passe de mágica o velho prestidigitador inverte a maré, derrota os inimigos quando mal haviam aberto o champanhe (conforme o relato de Lacerda sobre o fatídico amanhecer) e se consagra na memória popular, comandando seu vasto eleitorado por algumas décadas desde o além-túmulo (há indícios de que ele tencionava apoiar Juscelino e seguramente gostaria de ter visto Jango ou Leonel Brizola como sucessores).

ATENTADO

Ao contrário do suicídio, o atentado é quase inexplicável. De sua execução desastrada, Lacerda emergiu como mártir vivo (fora ferido no pé) conclamando os militares a fazer justiça ao colega de farda assassinado. Mesmo que o crime fosse bem-sucedido, porém, naquele ambiente exasperado as consequências seriam devastadoras para o governo, sobre o qual recairiam as suspeitas pela eliminação do principal inimigo de Getúlio na imprensa. Por rústicos que fossem, é estranho que os autores da trama não se dessem conta disso.

Atentado e suicídio formam o clímax do terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto,"Getúlio - Da Volta pela Consagração Popular ao Suicídio (1945-1954)" [Companhia das Letras, R$ 49,50, 430 págs.], agora lançado, completando uma empreitada de 1.654 páginas. Ali, esse autor que gosta de explorar peripécias e lances pitorescos, mas trata seu material com exatidão escrupulosa, dá a versão dos condenados, apresentada anos depois do episódio.

As confissões teriam sido obtidas sob coação. Os dois acusados apenas seguiam Lacerda, em busca de algo que o comprometesse. Quando, na madrugada de 5 de agosto, o major Rubens Vaz estacionou na rua Tonelero e Lacerda desceu do carro para entrar no prédio onde morava, um dos réus teria se aproximado para anotar o número da placa, sendo interpelado pelo militar, que também saíra do carro. Seguiu-se uma luta entre ambos; Lacerda, que mal entrara no prédio, começou a atirar, atingindo por engano o major. Um segundo tiro, desferido pelo acusado com quem se atracava, matara o oficial. O inquérito teria sido uma fantástica farsa.

São mínimos os indícios em apoio dessa versão. Lira Neto os registra com gosto, contente por envolver acontecimento tão mítico nessas fumaças de mistério: a arma de Lacerda, que de fato disparou, não foi periciada; os boletins médicos do ferimento no pé desapareceram. Mas o biógrafo endossa a versão oficial, sustentada por todas as evidências disponíveis, entre elas o relato de três jornalistas do "Diário Carioca" que por acaso viram a cena a poucos metros de distância (um deles, o vizinho Armando Nogueira, foi o primeiro a reportá-la). É preciso uma sólida fé em teorias conspiratórias para acreditar que não houve atentado.

GUARNIÇÃO

A guarda pessoal, que na época tinha 83 integrantes, havia surgido em 1938. Numa noite de maio daquele ano, seis meses depois do golpe em que Getúlio se fez ditador, um destacamento integralista (espécie de fascismo católico-tropical) invadiu o Palácio Guanabara com o objetivo de assassiná-lo e tomar o poder. O assalto foi rechaçado pela guarnição e por auxiliares do autocrata, mas a fuzilaria se prolongou enquanto o Exército e a Polícia Especial demoravam, de forma suspeita, a enviar reforços.
Foto Marcelo Justo/Folhapress 

Benjamin Vargas, irmão mais novo de Getúlio, teve papel crucial na defesa do palácio naquela madrugada e parece ter sido responsável pelo fuzilamento sumário, nos próprios jardins do Guanabara, de uma dezena de golpistas presos quando o ataque foi debelado ao amanhecer.

Em 1932, esse mesmo irmão se pusera à frente de um batalhão de voluntários, recrutado entre capangas e apaniguados da família Vargas em São Borja para combater os paulistas. Nesse batalhão, que numa arruaça de fronteira chegou a invadir território argentino, figurava Gregório Fortunato, o futuro Anjo Negro, a quem foi confiada, depois do assalto integralista, a missão de chefiar o bando convertido em guarda permanente dedicada à proteção do ditador.

Lira Neto narra incidentes espantosos durante a ditadura do Estado Novo em que Bejo -como o irmão atrabiliário e alcoólatra era chamado em família- provoca desafetos em boates, dá tiros a esmo, chega a ferir terceiros e continua impávido. Certa vez mandou sequestrar e espancar um jornalista; o assecla encarregado da tarefa seria mais tarde um dos dois condenados pela execução do atentado contra Lacerda. Nesse submundo provinciano em que se cruzavam compadrio e delinquência, em que o hábito caudilhesco da violência se ampliara na impunidade garantida pela ditadura, formou-se o "mar de lama" que tragou o mandato democrático de Getúlio.

CARTA-TESTAMENTO

Mas, como no movimento entre tese/antítese/síntese, atentado e suicídio somente se resolvem no terceiro elemento mítico dessa narrativa, a carta-testamento, também ela objeto de controvérsia duradoura. Existem duas versões desse texto.

A primeira, manuscrita certamente pelo próprio Getúlio, é mais curta. Seu tom é apressado, algo prosaico, e certas passagens exalam ressentimento. O autor reclama da "fraqueza de amigos que não me defenderam" e da "felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei". O fecho é pedestre e anticlimático: "A resposta do povo virá mais tarde...".

A segunda versão, datilografada, logo distribuída e replicada à exaustão nas rádios e jornais, foi a que passou à história. É uma magnífica exortação política, escrita com simplicidade intensa e solene. Sua qualidade literária quase faz esquecer o quanto ressoa de demagogia nacionalista e de culto à personalidade em seu teor.

"Não me acusam, me insultam, não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa." Feitas as negativas desse introito, que valem por uma refutação, o texto relembra que, depois de "decênios de espoliação", o autor se fez chefe da Revolução de 1930, instaurou "um regime de liberdade social", foi deposto e retornou ao governo "nos braços do povo".

Passa a enfrentar a resistência de grupos "nacionais e internacionais" ao aumento do salário mínimo, à restrição nas remessas de lucros para o exterior, à criação da Eletrobras. Vinha lutando "mês a mês, dia a dia, hora a hora" -o tempo da narrativa só se acelera- até concluir: "Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue", o que confere uma ressonância cristã ao sacrifício feito em nome do povo e que sela sua aliança ("uma chama imortal") com o líder imolado.

Segue-se uma saraivada desconcertante de antíteses: "Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém". No último parágrafo, uma série de frases curtas, sincopadas, prepara o crescendo de suspense que se desata no majestoso traslado da sentença final: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".

Parece haver algum consenso entre os historiadores quanto à sequência de eventos. Getúlio faz anotações para uma carta que deixaria caso as circunstâncias o forçassem ao suicídio. Lira Neto conta que Alzira, sua filha e secretária, diz ter visto essas anotações uma semana antes entre os papéis do presidente que, interpelado por ela, desconversou, atribuindo-as a um momento de "desabafo". Essa versão já dizia que "velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor".

Em algum momento daqueles dias, Getúlio discute o assunto com o jornalista José Soares Maciel Filho, amigo e redator de seus principais discursos, a quem pede que redija uma segunda versão, como haviam feito em outras ocasiões. Maciel, que na juventude fora aluno do filósofo Benedetto Croce na Itália e depois criara um jornal no Rio para sustentar a Revolução de 30, era um ideólogo nacionalista que ocupou cargos altos na burocracia getuliana. Para tranquilizar o assessor, é plausível que o presidente tenha alegado reservar o texto para uma situação extrema que provavelmente nunca ocorreria.

CENÁRIO

Claro que todo esse cenário é apenas a condensação teatral de um drama muito maior. O raio de manobra do governo vinha se estreitando, conforme era tracionado por uma dinâmica de polarização entre forças econômicas e interesses sociais contraditórios, que Getúlio (como Jango 20 anos mais tarde) tentou conciliar enquanto conseguiu.

Como sempre, o cobertor era curto. O país precisava de recursos externos para investimentos em infraestrutura, mas a prodigalidade que os americanos haviam mostrado na Segunda Guerra e no começo da Guerra Fria, quando era prioritário manter boas relações com o Brasil, cedera lugar, a partir de 1952, a uma atitude mais dura e à exigência de que os empréstimos tramitassem menos via governos e mais via instituições privadas, o que reclamava um "ambiente de negócios", como se diria hoje, mais amigável.

O foco das tensões era o regime de câmbio, que sofreu idas e vindas no período, conforme o governo cedia às pressões estrangeiras, aos exportadores de café ou aos importadores nacionais. Programas de estabilização financeira (encetados pelos sucessivos ministros da Fazenda, Horácio Lafer e Oswaldo Aranha) eram solapados pela necessidade política do governo de ceder às demandas crescentes. A economia crescia a uma taxa média anual próxima a 6%, mas a inflação, que estivera em 8% no quadriênio anterior, chegou a cerca de 20% anuais no mandato de Getúlio.

Pelo flanco sindical, o governo era acossado por greves e pela radicalização do semiclandestino Partido Comunista, que, em mais uma reviravolta determinada por Moscou, rompera com Getúlio e adotava uma política de agitação operária. Em maio de 1954, o presidente concedeu o controvertido reajuste de 100% no salário mínimo, elevando-o a valor real próximo ao de hoje, quando a renda per capita é quase cinco vezes maior que a da época.

O governo, entretanto, mantinha controle sobre o Parlamento, onde a Câmara dos Deputados votou, em junho de 1954, um pedido de impeachment do presidente, derrotado pelo placar de 136 votos contrários e apenas 35 a favor.

A oficialidade militar, impregnada pelas divisões que cindiam a opinião pública e alvoroçada pela perda de poder aquisitivo dos soldos, ainda abrigava um setor "progressista", simpático ao nacionalismo do presidente ou ao menos apegado ao regime constitucional de 1946. O assassinato do major Vaz gerou uma catarse corporativa que fez a balança de forças pender pelo afastamento, via renúncia ou deposição.

Getúlio fora um oportunista por excelência, adotando os disfarces ideológicos que mais lhe convinham a cada conjuntura, mas seria um equívoco ignorar a linha de continuidade a estruturar essa trajetória cujas aparências parecem tão mutáveis.

Sua aversão à democracia parlamentar, sua concepção do Estado centralizado como indutor do desenvolvimento e do equilíbrio entre classes e regiões, até mesmo sua prudência em matéria fiscal e a inclinação por um regime plebiscitário que mantivesse o líder por tempo indefinido no poder -tais aspectos integram uma doutrina à qual permaneceu constante, emanada do pensamento positivista do francês Auguste Comte (1798-1857).

No final do século 19, essa doutrina, adaptada por discípulos brasileiros, desempenhou forte influência na mentalidade republicana, especialmente a gaúcha. Naquele Estado, facções positivistas e liberais chegaram a se enfrentar em duas guerras civis (1893-5 e 1923). Influência parecida aconteceu na mesma época em outros países latino-americanos, e diga-se de passagem que o recente "bolivarianismo" tem suas raízes nesse mesmo substrato.

Em linguagem marxista, as teorias de Comte refletiam na França uma parcela do pensamento burguês engajada na universalização de direitos que a Revolução de 1789 apregoou, mas intimidada pela ameaça à propriedade representada pelas insurreições operárias de 1848 e 1870. Era preciso patrocinar mudanças dentro de um curso dirigido, "racional" (a doutrina exercia peculiar fascinação sobre engenheiros e militares). Tais ideias vinham a calhar quando transplantadas ao contexto de uma elite hostil ao bacharelismo, dissidente e autoritária, reformista e conservadora, como aquela que produziu o estadista Getúlio Dornelles Vargas.

ENFOQUE

Panorama tão amplo escapa, como não poderia deixar de ser, aos propósitos do biógrafo; seu enfoque sempre minucioso está concentrado no círculo íntimo do presidente. Neste terceiro volume, o narrador utilizou os rascunhos que Alzira Vargas preparou para seu segundo livro de memórias, nunca publicado, assim como as numerosas cartas que trocou com o pai, entre 1945 e 1950, quando ele cumpria seu ostracismo como estancieiro na fazenda de São Borja e ela atuava, no Rio de Janeiro, como sua articuladora.

Além de filha devotada e secretária diligente que lhe providenciava roupas, remédios e charutos, Alzira parecia possuída, como o pai e ao contrário de certos parentes, pela paixão da política enquanto responsabilidade pública. Era também uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiavélico, o que torna a leitura da correspondência muito instrutiva.

Suas metáforas, extraídas do léxico feminino, são quase sempre tiradas divertidas nas quais ela informa o pai sobre o que se passa na corte do presidente Dutra -a famosa "copa e cozinha"- para então abrir o leque das opções a seu ver disponíveis e declarar-se à espera de ordens. Lira Neto revela que Samuel Wainer foi enviado para a famosa entrevista com Getúlio ("voltarei como líder de massas") ao que tudo indica numa manobra engendrada pela filha no Rio.

Anos mais tarde, na última reunião ministerial que Getúlio presidiu, às primeiras horas do 24 de agosto, seriam dela e de Tancredo Neves as vozes categóricas a favor de retomar pela força o mandato prestes a ser usurpado, prendendo imediatamente os generais insubordinados.

PROTAGONISTAS

Se há muito de cinematográfico no andamento dos livros de Lira Neto, não resta dúvida sobre quem são os protagonistas dessa história, que vai sendo ocupada do meio para o fim pela preciosa relação entre um pai declinante e sua filha dileta -até que o delicado fio que prende esse Lear a sua Cordélia se rompa na torrente final da tragédia.

No entanto, parece que foi faltando tempo ao autor (o trabalho inteiro consumiu cinco anos), de modo que o terceiro e o segundo volume, embora admiráveis, talvez não alcancem o nível primoroso do primeiro nem tenham sua originalidade, favorecida por tratar da fase inicial, menos divulgada, da vida do personagem.

Ele foi assunto de diversas abordagens biográficas, em geral oficiosas (a própria Alzira escreveu a sua, "Getúlio Vargas, Meu Pai", publicada em 1960). Em 1974, o criterioso historiador John W. Foster Dulles, biógrafo de Lacerda e filho do secretário de Estado norte-americano entre 1953 e 1959, publicou "Getúlio Vargas: Biografia Política". Mais recentemente, o historiador Boris Fausto lançou seu excelente e conciso "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (2006).

Apesar desses antecessores ilustres, é provável -devido às ambições narrativas, ao rigor documental da imensa pesquisa e ao desengajamento do ponto de vista- que a biografia de Lira Neto assuma a posição de obra definitiva sobre o personagem por longo tempo, moldando a visão das próximas gerações de estudiosos, leitores e espectadores.

PRESENTE

Quanto ao leitor atual, não será ele tentado a ver analogias inquietantes entre aquele passado nem tão remoto e o presente? O PT em vez do PTB, Lula em vez de Getúlio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB no lugar da UDN, o PMDB no do PSD -a demagogia, a corrupção, a direita golpista-; será que estamos presos ao mesmo círculo que se repete? Mas basta ressaltar as diferenças mais importantes para concluir que essa identidade é aparente.

Em 1954, o capitalismo estava enraizado no país de modo ainda mais precário do que hoje, quando uma proporção maior da sociedade e do território foi incorporada a sua dinâmica e absorveu parte de seus benefícios. Em última análise, o sentido histórico da ditadura militar (1964-85) foi exatamente forçar pela violência uma trégua nas lutas sociais, que permitisse a acumulação destinada a completar a tarefa iniciada desde os anos 1930, a modernização capitalista.

Lamentamos as metrópoles atulhadas e a depredação da natureza, mas foi esse processo vertiginoso que trouxe a mortalidade infantil de 128 óbitos por mil nascimentos (1955), por exemplo, aos atuais 14, e a expectativa de vida dos 45 anos (1950) aos atuais 75, ambos índices objetivos de melhora nas condições coletivas de vida.

Por motivos que extrapolam esta resenha, mas que decorrem em parte do amadurecimento institucional após tantas aventuras frustradas, o Exército deixou de ser o fio desencapado da política, que potencializava os impasses até conduzi-los a soluções de força. A estrutura constitucional passou a funcionar porque a trama de interesses na economia e na sociedade se tornou mais forte e complexa. Por falta de respaldo suficiente, direita e esquerda exaltadas tiveram de abandonar há 40 anos qualquer tentativa séria de golpismo.

As relações com os Estados Unidos também evoluíram, conforme nossa dependência daquela economia se tornou menor, de maneira que uma posição nacionalista se traduziria, hoje, mais em termos de competição por mercados e tecnologias do que nos moldes tradicionais de uma resistência anti-imperialista.

O maniqueísmo ideológico dos anos 1950 se dissolveu numa espécie de centrismo tecnocrático, administrativista, no qual as alternativas, por mais encarniçada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, não passam de versões um pouco mais à esquerda ou à direita -precisamente como PT e PSDB na atualidade, separados por divergências mais de grau e estilo do que de essência.

OTAVIO FRIAS FILHO, 57, diretor de Redação da Folha, é autor de "Seleção Natural - Ensaios de Cultura e Política" (Publifolha) e da coletânea teatral "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify).
ZED NESTI, 44, artista plástico, participa da 2ª Mostra do Programa de Exposições 2014, no Centro Cultural São Paulo até 26/10.
FOLHA DE S.PAULO

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O malcheiroso molho que Roma adorava



DIAS LOPES
 JADIASLOPES@GMAIL.COM

Questão de gosto. Os romanos gostavam de temperar a comida com um molho de peixe, conhecido pelo cheiro forte e sabor concentrado e picante.

Revelações preciosas sobre o garum, o molho de peixe que temperava a comida diária dos romanos, acabam de ser publicadas por uma autoridade em história da Roma Antiga. No livro Pompéia - O Dia-a-dia da Mítica Cidade Romana (Esfera dos Livros, Lisboa, 2010) a pesquisadora britânica Mary Beard mostra que a cidade do golfo de Nápoles, soterrada no ano 79 d.C. pelo vulcão Vesúvio, foi um importantíssimo centro de preparação e comércio daquele produto.

Os romanos o apreciavam, apesar do cheiro forte, do sabor concentrado e picante, da fama desabonadora com a qual chegou até nós. O escritor latino Plínio, o Velho, que por coincidência morreu sufocado pelo Vesúvio, tentando salvar vítimas da catástrofe, qualificou-o de "líquido de peixe podre". Mary Bread tem informações substanciosas sobre a família de Aulo Umbrício Escauro, um produtor e comerciante de garum, de Pompéia, que enriqueceu graças à atividade.

Os romanos despejavam o molho em tudo. A difusão do livro do gastrônomo latino Marco Gavio Apício, De re coquinaria, fez com que a posteridade o considerasse romano. Estudiosos contemporâneos, porém, acreditam que o molho foi inventado pelos fenícios, a partir de influência asiática. Eles realmente o preparavam em uma da suas colônias, a cidade de Cádiz, no sul da Espanha.

A arqueóloga italiana Eugenia Salza Prina Ricotti, no livro Ricette della Cucina Romana a Pompei - e Come Eseguirle (L’Erma di Pretschneider, Roma, 1993) vê semelhanças entre o garum e o molho vietnamita nuoc nam e o tailandês nam pla. Os molhos de peixe ainda são populares no Sudeste Asiático.

Outros autores lembram que os gregos já apreciavam o garum e o introduziram na cozinha dos povos helenizados. Teriam sido eles os transmissores da receita aos romanos. A designação do molho viria de garon, nome grego de um peixe utilizado no seu preparo.

Certos detalhes do garum dos romanos permanecem desconhecidos, até porque as receitas, além de imprecisas, variavam bastante. O produto de melhor qualidade era feito à base de peixe caro e, alcançando preço alto, tornava-se objeto de contrabando. De modo geral, elaborava-se o molho em vasos de cerâmica. Acrescentava-se um ou muitos peixes, sempre com o sangue e as vísceras, ou vários frutos do mar. A seguir, colocava-se sal, temperos e se deixava fermentar e apodrecer ao sol durante meses. Algumas receitas levavam vinho; outras azeite ou água do mar. Resultavam diferentes tipos de molho.

O primeiro líquido a emergir da fermentação era o garum. Após a filtragem, estava pronto para o consumo. O líquido do fundo se chamava allec. Também se destinava à culinária, apesar do prestígio menor.

Mary Beard conta que Escauro trabalhava junto com a família. Elaborava e vendia vários tipos de molho. Descobre-se isso lendo as inscrições nas ânforas que o vulcão não quebrou. "O melhor molho de peixe", anuncia uma delas, obviamente em latim. "Também (as inscrições) chamam a atenção das versões (do garum) só de cavala, que eram as mais apreciadas pelos connaisseurs desta iguaria", diz Mary Beard. Segundo ela, como o molho exalava mau cheiro durante a feitura, preparavam-no junto à costa, em vasos enormes de cerâmica.

A loja da cidade fazia a distribuição, guardando-o em seis enormes dolia (vasilhas de barro) e colocando-o em recipientes menores na hora de vender. Mary Beard descreve Escauro como um vitorioso novo rico. "Em meados do século I (...), seu filho com o mesmo nome havia alcançado um dos postos mais elevados do governo da cidade, como um dos dois duoviri anuais", escreveu ela. Foi salto prodigioso. Os duoviri ou duumviri eram importantes magistrados da Roma Antiga. Eleitos em dupla, supervisionavam os negócios públicos, interferiam em delicadas questões administrativas e políticas. Nada desprezível para uma pessoa que subiu na vida à custa de "líquido de peixe podre".
Jornal O Estado de S. Paulo

O manual de campanha eleitoral da Roma Antiga


Maria Cristina Fernandes

Do Valor

Como ganhar uma eleição
Por Maria Cristina Fernandes

O título é o nome de um livrinho escrito 64 anos antes de Cristo. É de grande utilidade na temporada eleitoral que se inicia. Políticos, marqueteiros e estrategistas de campanha sempre se serviram dele. Por razões inversas, o texto também pode ser de grande serventia para o eleitor.

Sua leitura é especialmente esclarecedora para saudosistas de um tempo que nunca existiu. Os conselhos de Quinto Túlio Cícero mostram que política nunca se escreveu com 'p' maiúsculo. Talvez porque seja feita por gente. Sem conhecê-la, o eleitor se torna presa fácil do discurso de que só os bem-aventurados são capazes de fazer a política maiúscula, aquela da mitologia.

O autor é o irmão mais novo de Marco Túlio Cícero, um advogado de 42 anos com ambição de se tornar cônsul, o mais alto posto da república romana. Descendem de um rico comerciante do sul de Roma que mandou os filhos estudar filosofia e oratória na Grécia.

Marco Túlio torna-se um grande orador nos tribunais mas, para chegar a cônsul, precisa enfrentar as resistências da aristocracia fornecedora de dirigentes da república. Quinto manda seu irmão repetir para si mesmo: "Sou um 'outsider'. Quero ser cônsul. Esta é Roma".

O voto era direto, secreto e masculino, mas o sistema eleitoral conferia mais peso aos nobres. "Nunca deixe que o tomem por um populista", diz Quinto Túlio ao traçar a estratégia de aproximação do irmão com a aristocracia. Deveria ficar claro para os nobres que todo movimento em direção ao povo se devia a tática eleitoral.

Marco Túlio não deveria se deixar intimidar pelos concorrentes de sangue azul. Um tinha tido a propriedade confiscada por dívida e comprara uma escrava para lhe prestar serviços sexuais. Outro matara o cunhado, molestava jovens garotos e corrompia juízes nos tribunais. Essas questões não precisam ser explicitadas mas os adversários devem saber que são conhecidas. Estava lançado aí o primeiro tijolo das fábricas de dossiês.

Esta é a primeira parte da campanha. Em que o candidato se assenhora de sua ambição e se torna amigo dos mais aquinhoados de dinheiro e poder para não ser por eles barrado. Numa disputa eleitoral, diz Quinto, há duas tarefas: assegurar o apoio de seus amigos e ganhar o do público: "Você ganhará o dos amigos com gentilezas, favores, conexões, disponibilidade e charme".

Marco Túlio Cícero deve lhes dizer nunca lhes ter pedido nada antes e que chegara a hora de fazê-lo. "Faça-os saber que se você ganhar a eleição agora você estará em dívida com eles".

O irmão não deve filtrar aliados pelo caráter. Numa campanha, diz o irmão, você não deve ter vergonha de cultivar amigos com gente de quem nenhuma pessoa decente se aproximaria - "Você será um tolo se não o fizer". Nasciam as diretrizes das megacoalizões eleitorais.

A segunda parte da campanha deve tratar de ganhar o povo. O primeiro passo é conhecer as pessoas pelo nome. Num eleitorado de 141 milhões a tarefa é em parte feita pela propaganda na TV. Gente do povo é escolhida a dedo para representar na TV segmentos do eleitorado com quem o candidato deve mostrar intimidade.

Chamar os eleitores pelo nome não basta. Eles precisam saber o que vão ganhar com sua eleição. Por isso, Quinto diz que o irmão não deve ter o pudor de prometer, ainda que mais tarde seja necessário convencer os eleitores de que não foi possível cumprir o prometido.

O mais prudente, diz Quinto, é ser vago em relação às promessas. Dizer aos nobres que manterá seus privilégios, aos empresários que assegurará a estabilidade de seus negócios e ao povo que sempre esteve e estará ao seu lado. "A parte mais importante da campanha é levar esperança às pessoas e atrair seus bons augúrios", diz Quinto. Mas seu irmão deveria saber que não seria capaz de fazê-lo se confiasse facilmente nas pessoas. "A política é cheia de falsidade, deslealdade e traições".

Marco Túlio Cícero elegeu-se cônsul. Durante seu governo, um dos adversários derrotados conspirou para derrotá-lo. Cícero desbaratou a conspiração e persuadiu o Senado a declarar guerra ao adversário. Quinto foi eleito para o mais alto cargo da magistratura, cargo que só perdia para o de cônsul, em poder e prestígio. Depois foi governador na província romana que se tornaria a Turquia. Os irmãos Cícero tinham dominado os códigos para conquistar e exercer o poder na república romana, mas não sobreviveriam à guerra civil que daria início ao Império. No ano 43 A.C. seriam assassinados.
http://jornalggn.com.br/

Manual do Candidato às Eleições: Marketing político existe há 2 mil anos



Manual da Roma antiga ensinava a candidato como se comportar para ganhar votos

Felipe Van Deursen

“Você deve constituir amizades de todos os tipos: nomes ilustres, os quais conferem prestígio ao candidato; magistrados, para garantir a proteção da lei. (...) Isso requer conhecer as pessoas de nome, usar de certa bajulação.” Tá, parece, mas não é uma cartilha encontrada nas coisas de um dos mais de 19 mil candidatos às eleições deste ano.

Trata-se de um trecho do Manual do Candidato às Eleições, escrito em 64 a.C. em Roma, por Quinto Túlio Cícero. O autor preparou o manual (Commentariolus Petitionis, no original em latim) para seu irmão, Marco Túlio Cícero, ilustre orador e político que naquele ano se candidatava ao posto máximo da República romana: o de cônsul. O manual, embora curto, tinha conselhos valiosos para Cícero conseguir ser eleito. Fortalecer amizades já existentes e conquistar novas, cobrar favores prestados a quem pudesse ajudar na campanha, decorar o maior número de nomes possível, sorrir para todos, ser generoso, fazer promessas mesmo sabendo que não cumpriria todas, pedir votos na rua, estar sempre cercado de multidões, falar a língua do povo e tornar públicos os podres dos adversários.

“Em Roma, onde havia poder havia corrupção”, afirma Laura Silveira, especialista no assunto e doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “E naquela época da República, como era preciso conquistar todos os setores representados no Senado, as dicas eleitoreiras do manual deveriam ser de grande utilidade.” E foram: Marco Túlio Cícero acabou eleito.


Você Sabia
2006? Não: era 64 a.C.
Podres do passado foram explorados na campanha
Felipe Van Deursen

A eleição em 64 a.C. e o mandato de Marco Túlio Cícero no consulado foram marcados por desavenças políticas, golpes baixos, acusações e grandes discursos. Embora o manual tenha ajudado, Cícero não precisou de muito esforço para ser eleito. Seus maiores rivais, Antônio e Catilina, eram homens de passados condenáveis. Quinto Túlio sugeriu explorar isso (“Ambos desde a juventude assassinos, ambos libertinos”, escreveu). Por isso, mesmo não sendo aristocrata, Cícero tinha a confiança da elite.Antônio também foi eleito (eram duas cadeiras de cônsul, com votações anuais) e reconciliou-se com Cícero. Catilina, no entanto, candidatou-se de novo, perdeu e conspirou contra Cícero, sem sucesso. Liderou um exército revolucionário e acabou morto, em 62 a.C. O cônsul condenou à morte os membros da conjuração, mas foi exilado por abuso de poder. Vinte anos depois, o triunvirato formado por Caio Otávio, Marco Antônio e Lépido afastou os irmãos Cícero da política. Os dois foram mortos.


Falam por si
Alguns trechos do manual

Imagem é tudo

“Apesar de os dons naturais valerem muito, (...) um perfil bem forjado pode falar mais alto que a natureza.”

Promessas

“Se você promete (o que o eleitor pede), essa raiva é incerta, futura e se instala em bem poucos. Mas se você nega, provoca irritação no ato e em muitos.”

Rabo preso“Não quero que você ostente isso (a corrupção dos adversários) diante deles de maneira a parecer que já planeja uma acusação, e sim que, pelo simples medo disso, você consiga com facilidade aquilo que busca.”
Revista Aventuras na História