As decorrências e desdobramentos do racismo científico no Brasil são peças-chave que estruturam hoje a subjetividade da população brasileira. Observar como o conceito de raça, em seu sentido biológico, foi capaz de moldar ideologias vigentes, especialmente no campo da criminologia, e constantemente aperfeiçoadas para a perpetuação de uma organização social de poder e controle hegemônico é essencial para a compreensão dos problemas sistêmicos raciais que vigoram no Brasil atual. Estes problemas foram forjados ainda no momento pós-escravatura em que se formularam as primeiras justificativas para categorizar e classificar grupos da humanidade.
Dos argumentos que se apoiam no determinismo biológico para sustentar que as diferenças sociais e econômicas são herdadas e refletem a biologia, deve-se elencar algumas das fortes influências advindas deste mesmo determinismo biológico na operação do Poder Judiciário brasileiro e como se articulam as ações por ele articuladas. A concepção determinista é evidente utilidade de grupos detentores do poder, para preservação do status quo e estratificação social e neste caso, o Poder Judiciário se apropria institucionalmente da concepção.
Resultados de um projeto político, científico e religioso, as classificações hierarquizadas muito contribuíram para que hoje, no Brasil, o número de pessoas privadas de liberdade ocupe o terceiro lugar no ranking mundial. Foi através da ciência que se institucionalizou crenças e estratégias de controle pela branquitude, quando, a partir do “irrefutável”, se determinou a separação das raças em superiores e inferiores, que mais tarde configurou as concepções de crime e criminoso.
Ao tratarmos da função social da ciência, muito se acredita que a mesma se encontra em estado de neutralidade, não sendo capaz de carregar estigmas racistas, misóginos, entre outras complexidades que são estruturais na construção da nossa sociedade. Podemos considerar o objetivo político na idealização das pesquisas, onde, para a comprovação de uma ideia pré-concebida, muito dificilmente os processos de pesquisa não serão compostos por suposições enviesadas.
Sendo assim, pode-se afirmar a possibilidade da interferência dos pressupostos culturais na produção de conhecimento científico, através dos questionamentos que se buscam responder em qualquer pesquisa, que de certa forma possuem a flexibilidade de partir de diferentes premissas que compõem o pesquisador. Estas interferências geram resultados que podem impactar direta e concretamente a organização social.
A teoria do determinismo biológico está relacionada a uma certeza biológica. Pode ser lida enquanto uma crença, uma doutrina ideológica e filosófica, que coloca como comum e hereditária as ações de grupos humanos, suas características físicas, seus intelectos e comportamentos, ao mesmo tempo que classifica e categoriza esses grupos em classes específicas. Ou seja, o comportamento de um indivíduo pode ser justificado por sua composição genética, dependente de uma causalidade, estando eternamente condicionado a seguir mecanismos que não se pode tomar controle. Quando consideramos que a cultura influencia na produção de conhecimento, nota-se que o conceito de determinismo biológico é apropriado, em sua vasta maioria, por aqueles que ocupam os espaços de poder social e econômico.
No que diz respeito aos processos empíricos de comprovação dessa teoria, a craniometria se estabelece como um dos principais apoios. Como consequência dos estudos práticos de uma ciência branca, a coleta de dados ocorrida através manuseio dos crânios de pessoas de diferentes etnias e “raças”, serviu para afirmar o nível de inteligência pelo tamanho do cérebro e detalhes no formato do crânio. Essa inteligência se ordena pela hierarquização intelectual de diferentes povos, sendo o branco europeu localizado no topo da pirâmide, povos indígenas ao meio e a base composta pela população negra.
A partir daí se iniciam os processos empíricos que buscavam comprovar a teoria da inferioridade das raças. Samuel George Morton se empenha nestes processos com a medição da capacidade craniana de mais de mil crânios. Suas pesquisas foram publicadas e constataram a hierarquia da pirâmide composta por brancos ao topo, indígenas ao meio e negros na base. Outros pesquisadores apontam que os estudos de Morton não podem ser interpretados enquanto estudos intencionais, uma vez que se publica todos os processos, abrindo espaço para possíveis contestações, que foi o que aconteceu. A crítica parte da negligência de dados fundamentais para alcançar as corretas proporções do tamanho dos cérebros, como indicadores de idade, sexo, altura, etc. É com base nestas assertivas que se faz possível a visualização dos equívocos cometidos por grandes cientistas que mudam o caminho da história e determinam condições sociais para populações inteiras.
Estereótipo do criminoso no Brasil
Pensando nessas determinações sociais que se difundem, quando voltamos o olhar para as Américas, povos indígenas e africanos escravizados são classificados enquanto espécies sequer humanas, categorizados como animalescos e selvagens, enquanto o branco europeu se coloca neste lugar de lucidez advinda da raça branca, um ser racional, civilizado, cristão.
Das divergências que rondavam o racismo científico brasileiro estavam as discussões sobre a miscigenação das raças e sobre o risco de degeneração que poderiam vir a ocorrer – o mesmo perigo temido pela teoria poligenista que considera a existências de diferentes espécies humanas, o que explica as diferentes ocupações na escala social, e neste caso a miscigenação era encarada como perigo, uma vez que o poderio de uma espécie estava depositada em sua pureza, não abrindo espaço para reversão do quadro degenerativo.. São essas discussões que dão luz à ideia de embranquecimento, como possibilidade de se racionalizar sentimentos de inferioridade, supostamente afirmados pelo determinismo biológico.
Por outro lado, encontravam-se aqueles que acreditavam em uma regeneração racial através do embranquecimento, uma vez que o mesmo se desdobraria no desaparecimento de negros e indígenas. O antropólogo Kabenguele Munanga aponta para a nossa herança europeia que incapacita a construção de uma identidade que considere povos africanos e indígenas, que forjaram o Brasil (MUNANGA, 2004), e pode-se considerar que esta mesma herança é formuladora da nossa subjetividade enquanto povo brasileiro.
No Brasil, até os anos 1930 toda e qualquer reflexão científica feita sobre “raça” estava apoiada nas normas do racismo científico, mesmo que ao final do século XIX já se tinha uma perspectiva de um paraíso racial, onde o mito da democracia se fundava junto das políticas de miscigenação. Este paraíso ainda bebia das teorias de um racismo científico, inclinado para a regeneração como saída. A partir daqui, tem-se a construção de políticas sociais e econômicas que visavam a entrada de imigrantes europeus para iniciar o processo de branqueamento.
Pareada a estas políticas de embranquecimento, se fazia necessária a cooptação social para que a crença se sustentasse. A subjetividade da população brasileira moldada no objetivo de legitimar as ações do estado foi (e se é) fundamental para dar base as violências que atravessam corpos indígenas e corpos negros. Atrelado às heranças do racismo biológico, das políticas de branqueamento e do afastamento a toda e qualquer característica dos ditos degenerados, o Brasil trabalha fortemente na construção de estereótipos no período pós-escravatura.
Referente ao negro, o estereótipo social de jovem delinquente e criminoso é uma das principais construções. A colaboração do racismo científico para a formulação deste estereótipo se dispõe na relação dos estudos cranianos e a antropologia criminal, elaborada em 1876 por Cesare Lombroso, médico e criminólogo, em sua obra “O Homem Delinquente”, que colocava a criminalidade como algo inato ao ser humano, e por meio de análises das ossadas podia-se mensurar o nível dessa criminalidade. Em sua teoria, aqueles dotados de traços anatômicos específicos, tenderiam ao comportamento criminoso, e não diferente de todos os outros teóricos, estes traços eram característicos de povos julgados primitivos como negros, indígenas e ciganos. Ou seja, buscou-se afirmar que a tendência à criminalidade estava diretamente ligada à origem biológica do transgressor.
Para a afirmação de que os criminosos possuíam características físicas, biológicas e psíquicas em comum, foram feitas análises em mais de 25 mil detentos em penitenciárias europeias e mais de 400 autópsias. Destas análises, Lombroso concluiu características como assimetria craniana, crânios menores, face ampla e larga, estatura alta, mãos, entre outros fatores que aparecessem no indivíduo estudado eram os que declaravam a criminalidade nata.
Justificativas da anormalidade do criminoso e o controle social
Nas descrições das características apresentadas por Lombroso, o atavismo se faz necessário para a constituição da anormalidade do criminoso. Mas o que viria a ser um ser atávico? Basicamente, atávico é aquele cuja predisposição ao crime se apresenta de forma inata, uma genética favorável e hereditária que atravessa gerações. Esta colocação serviu de fundamentação para a subjetividade da população brasileira se debruçar nos estigmas racistas que colocam os negros neste lugar de degeneração sem qualquer possibilidade de “cura”, e também de legitimar ações de instituições de controle que traduzem a população negra a um inimigo social.
Para nos depararmos com o cenário nacional de hoje, certamente que os estudos eugênicos de Lombroso foram abraçados para a formulação do pensamento criminológico brasileiro que buscava entender as transgressões e os transgressores.
O grande equívoco aqui colocado, seja ele intencional ou não, é o enfoque que se dá ao estudo da criminologia com base em aspectos físico-biológicos, sem elencar fatores importantíssimos como a desigualdade social e todos os problemas advindos dela. Sendo assim, a cultura criada em volta das discussões que buscavam compreender as ações dos criminosos, eram sustentadas por raízes excepcionalmente eugênicas e, consequentemente, racistas. Os desdobramentos destas raízes são as principais fontes de violências que reverberam nas atualidades com a criação massiva de presídios e políticas de criminalização das práticas da população negra, com o aumento populacional do cárcere, composto por maioria negra, número de morte de pessoas negras e periféricas pela polícia militar, entre outros fatores como condições honestas de existência que lhes são negadas.
Para a efetivação destas ações, o Poder Judiciário se faz uma das instituições mais influentes, uma vez que o mesmo “é a instância que possibilita e assegura as condições de exploração que um grupo de indivíduos exerce sobre outro na sociedade”, (RAUTER, 2004, pg. 19). É justamente o Poder Judiciário, juntamente com a medicina social, com as polícias, entre outros, que atua na manutenção dos mecanismos de opressão fazendo jus às teorias que remontam o racismo biológico sem levar em consideração os problemas estruturais que marcam o país que perdurou a escravidão por mais de 400 anos. São estas mesmas teorias que circunscrevem corpos negros, tornando-os passíveis de qualquer tipo de violência vide seu estigma de raça inferior, animalesca e selvagem. Para estes cabem as jaulas dos presídios que não são contestados pela sociedade civil. Cabem as “balas perdidas” nos morros, favelas e vielas de todo o Brasil. Cabem inúmeras possibilidades violentas no simples ato de caminhar na rua.
Dos saberes formulados pelo racismo científico, as práticas judiciárias se tornam instrumentos que validam os processos teorizados. A associação da anormalidade ao criminoso, que forja a subjetividade da população brasileira, obtém sucesso justamente pelos avanços e modificações do racismo biológico que se justifica também pelos hábitos, vícios e comportamentos, segundo o criminologista italiano Enrico Ferri.
Com este discurso de degeneração calcado nos aspectos físico-biológicos, tem-se criada a proposta de eliminação daquele que além de socialmente inferior, é um inimigo a ser combatido, através do aumento de penas, pela repressão das leis. Tudo em nome da supremacia branca, da manutenção do status quo, e da continuidade da aniquilação do povo preto, devidamente legitimado pela subjetividade objetivamente formada da população brasileira.
Por Alice de Carvalho
Bibliografia
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MUNANGA, K. O negro na sociedade brasileira:resistência, participação e contribuição. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2004.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016.
RAUTER, C. Criminologia e subjetividade no Brasil. Instituto Carioca de Criminologia, 2003.
SCHWARCZ, L. K. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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