quinta-feira, 17 de setembro de 2020

INQUISIÇÃO NO BRASIL: CASOS DAS HERESIAS DA COLÔNIA




Aline de Prado Moraes (Coordenadora)

Luiz Antônio Sabeh – Acadêmico da Universidade Tuiuti do Paraná

Wanessa Mareotti Ramos - Acadêmica da Universidade Tuiuti do Paraná

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Livrar as metrópoles de indivíduos indesejáveis, foi uma prática muito comum dentro da história, incluindo a de Portugal. Desde os fins da Idade Média, o banimento de homicidas, traidores, hereges e blasfemadores, entre outros, constituiu-se prática comum aplicada pelo Direito. Além de livrar as cidades dos elementos marginais também atendia a necessidade de povoamento e defesa de regiões estratégicas. Um importante desdobramento dessa prática fora, sem dúvida, o seu agregamento às políticas colonizadoras ultramarinas, pois estes delinqüentes metropolitanos agora também serviriam para colonizar as recém descobertas terras indianas, africanas e americanas[1]. Tanto é que Pedro Álvares Cabral ao retornar da terra brasílica em 1500 deixou dois degredados na terra de Santa Cruz[2].

Com a Igreja não foi diferente. Desde sua institucionalização com o imperador Constantino e  seu embasamento teórico com Santo Agostinho, tornava mais legítima sua autoridade espiritual e terrena. Desde então deflagra guerras intermináveis com os opositores do dogma cristão católico. Embuidos da autoridade terrena, não demorou muito, desde sua estruturalização a coibir de todas as formas possíveis todo e qualquer “desvio da fé”. A repressão se deu pelos mais variados métodos, indo desde a simples excomunhão, a flagelação, o banimento ou até a morte dos infiéis. Com a instauração do tribunal inquisidor na Idade Média, a Igreja criou mecanismos específicos para que se efetuassem os castigos dos  desvios da Fé.

Para melhor entender a Inquisição, deve-se levar em consideração os fatores psicológicos que motivaram a sociedade e os indivíduos, seus medos e ambições enquanto quadros da máquina religiosa do Santo Ofício. Desse modo, num mundo envolto na crença de “Reino Sagrado”, a religião foi um instrumento de normatização social e individual.

A consciência coletiva medieval era marcada por uma intensa dualidade, onde o bem era a retidão, a submissão a Deus, a vida levada com austeridade em detrimento dos prazeres carnais. A perfeição como ideal cristão deveria sempre ser seguido, utilizando-se da igreja como intermédio para alcançar Deus. Assim, o Mal era tudo o que se opunha  às regras de conduta necessárias para se atingir a plenitude do Bem.          

O banimento de hereges, feiticeiros, bígamos, entre outros para o Brasil-Colônia ocorreu para que, num conceito teológico, pudessem purgar seus pecados na nova e desconhecida terra[3].Os inquisidores portugueses não se esqueceram das “almas impuras” degredadas para o Brasil (fosse pelos crimes seculares ou eclesiásticos); muito menos dos povos que aqui viviam e que foram educados segundo os dogmas da Igreja Católica[4]. Com toda a imensidão e diversidade popular, os crimes da colônia ganhavam características peculiares.    

Por traz dos julgamentos promovidos pelo Santo Ofício, escondia-se a intenção de investigar sobre quais estruturas se calcava a fé no Brasil. Para garantir que no campo cultural tudo andava como se esperava, o inquisidor tinha o poder de dissolver qualquer tipo de sistema hierárquico da colônia e de verticalizar as relações sociais em exclusivo beneficio do Santo Ofício. O que o Santo Ofício português não contava é que, junto com a adaptação na colônia, muitos de seus desvios heréticos se transporiam à nova realidade, não simplesmente ressurgindo mas, transmutando-se em versões mestiças[5]. Um exemplo disso foi o novo e desconhecido costume gentílico[6], que embora tenha sido desde o principio caracterizado como puro e simples desvio herético, aos olhos do inquisidor era uma incógnita.      

Chegando ao Brasil, a Inquisição tinha como maior preocupação e objetivo perseguir os judeus que haviam fugido da Europa. A prova disso são os documentos da visitação do tribunal que mostram um grande número de cristãos-novos no Nordeste açucareiro, local que acabou concentrando todas as ações do Santo Ofício.

            As ações do Tribunal do Santo Ofício podem ser amplamente caracterizadas como um marco dentro da Contra Reforma, visto que no Concílio de Trento (1543/1563), a órbita das discussões girou predominantemente sob o prisma do que eram as heresias e como coibi-las, a fim de restaurar e perpetuar o dogma da  crença cristã-católica. Mesmo com um amplo leque de heresias, a obsessão maior dos inquisidores quando da chegada ao Brasil Colônia, era a busca por cristãos novos que exerciam práticas cripto-judaizandes.

Heitor Furtado de Mendonça, primeiro visitador a Bahia entre os anos de 1591 a 1593, recebeu a comissão inquisitorial. Era um homem descendente de nobres, que acabou passando  por dezesseis investigações de “limpeza de sangue”[7] antes de ser habilitado ao cargo inquisitorial. Suas capacidades de letras e de sã consciência foram testadas pelo próprio cardeal Alberto, inquisidor-geral que o nomeou para visitar o bispado do Brasil.

            Desembarcou na Bahia em 1591, acompanhado de Francisco de Souza, governador-geral recém nomeado. No dia 22 de julho iniciou-se a Inquisição brasileira, preludiada com grande pompa e cerimonial.

Foi então publicado o Edital da Fé  e o Monitório da Inquisição. Segundo o Edital, os  fiéis seriam convocados a confessar e delatar as culpas atinentes ao Santo  Ofício, tendo assim suas penas atenuadas. Concedeu trinta dias para isso (de 28 de julho a 27 de agosto), ficando estabelecido que os suspeitos de heresia seriam tratados com comedimento e misericórdia. Porém, esse fato não significou sossego entre os relatados, que ficaram sob pena de excomunhão maior. Todos deveriam confessar ou acusar as heresias e apostasias de outros, caso estas fossem pertinentes à Inquisição. Heitor Furtado utilizou-se muito de seus poderes, chegando a extrapolar as instruções de Portugal, prejudicando ou ajudando alguns réus. O Monitório informava com detalhe o que deveria ser confessado ao tribunal, sendo grande a variação de culpas relatadas. Para arrancar de seus acusados as confissões que queria ouvir, o Santo Ofício fazia desde o confisco de terras até ameaças na fogueira.

Ao ouvir as confissões dos réus, Heitor Furtado surpreendeu-se com a quantidade de heresias que eram então praticadas pelos povos, principalmente no que se refere aos costumes indígenas desta terra[8]. Sua passagem pelo Nordeste deixou marcas profundas e contribuiu para a separação de famílias e amigos.

Ao fazer uma leitura apurada e crítica da primeira visitação podemos perceber o desconcerto do inquisidor, junto ao panorama encontrado no Brasil-Colônia, já que em sua  formação especifica ignorava até então os costumes nativos aliados a mestiçagem[9] reinante. Tamanho fora o desacerto, que sua estada em terras brasílicas  tomou mais tempo do que o previsto, mais verbas do que o destinado e, ao final das contas, acabou retornando a metrópole com seus trabalhos inacabados no restante das colônias americanas. Sua desaptidão fora tanta que  não se furtou a relaxar culpas que se pensadas a posteriori eram graves  e em repreender severamente delitos leves. Não estamos considerando parâmetros éticos-politicos, mas sim pelo simples desconhecimento dos mecanismos intrínsecos na cultura colonial.

            Ronaldo Vainfas, na introdução das “Confissões da Bahia”[10], percorre um importante trajeto da história brasileira  no que tange a instauração da Santa Inquisição no Brasil Colonial. Em dois de seus livros anteriores Vainfas já procurava aprofundar-se nesses processos inquisitoriais, como por exemplo na Heresia dos Índios[11], onde tratou de maneira profunda estes processos movidos pelo Tribunal  do Santo Ofício contra acusados de cometer heresias gentílicas.

 Em suas obras, Vainfas não se detém apenas nos processos, como traça todo o histórico das culturas existentes no interior do Brasil, antes da chegada dos europeus. Tudo isso numa peculiar visão que enfatizava as contraditoriedades da cultura indígena brasileira com a cultura européia, segundo os parâmetros da religião. Essa visão híbrida da cultura gentílica/européia[12], quinhentista e seiscentista, nos brinda com uma excelente interpretação da documentação inquisitorial e abre caminho à novas perspectivas historiográficas  e desta forma traz a tona o que Serge Gruzinski  chama  de o “Pensamento Mestiço”[13]. Em outro trabalho de Vainfas, “Trópico dos Pecados”[14],  é apontado os  desvios sexuais catalogados na colônia e, como no livro Heresia dos índios, percebe uma nova categoria de desvios  que  se legitimava  por valores um tanto confusos aos olhos europeus, mas que na verdade transcendiam a estes como uma forma híbrida de cultura.

 

2. AS VISITAÇÕES

 

            A primeira visitação no Brasil foi feita entre 1591 e 1595, percorrendo Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Além da preocupação constante com os cristãos-novos, ela também tinha preocupações relativas ao protestantismo e aos comportamentos morais e sexuais não pertinentes aos dogmas católicos.

            A primeira visitação teve 187 confidentes (152 na graça e 23 fora), e a segunda, 65 (63 na graça, 2 fora). Fazendo um balanço das duas visitações, temos 204 homens e 59 mulheres que confessaram. A Inquisição era para as mulheres uma forma de se livrarem da autoridade dos maridos, uma vez que a instituição valorizava o depoimento feminino.

            Os confidentes eram, na maioria, ligados às atividades agrícolas e comerciais. No entanto, a Inquisição abrangia todas as esferas sociais, independente da etnia, faixa etária e nacionalidade. Enfim, todos eram alvo das ações inquisitoriais.  A motivação para um indivíduo realizar a confissão era o ideal de vida, de ser correto, além de ser uma forma de fugir do cotidiano. O sofrer, o pagar, eram formas de purificação, de se aproximar da perfeição. A autodesaprovação, a consciência do erro, estimulava a confissão. Outros confessavam, pois já não o faziam há tempos, e precisavam se sentir dentro da esfera da Igreja novamente. Para se mostrarem bons católicos, alguns confessavam-se periodicamente, afirmando serem seguidores fiéis.

            As principais culpas, as quais levavam uma pessoa a se confessar eram: sodomia, práticas judaicas, muçulmanas e protestantes, bigamia, adultério, feitiçaria, pacto com o demônio e leitura de livros proibidos. Na colônia, os inquisidores se deparavam com heresias novas como: práticas gentílicas, seita da Santidade e fornecimento de armas aos índios. Na primeira visitação são poucos os casos de feitiçaria e pacto demoníaco, não sendo encontrado nenhum sobre prática muçulmana.

            Têm-se, na ordem que exposta, as três maiores quantidades de pecados confessados: blasfêmias, sodomia e distorções ou omissões de práticas litúrgicas (comer carne em dias proibidos ou comida antes da eucaristia. O judaísmo só aparece após essas três. Com os judeus, Mendonça procedeu como foi instruído, enviando todos os suspeitos para serem julgados em Lisboa. Tudo isso atrasou o inquisidor, impedindo-o de visitar outros lugares que tinha sido incumbido. Comparando-se a primeira e a segunda visitação, percebe-se um aumento percentual de sodomia e blasfêmias, já o número de práticas protestantes e judaicas diminuem. Para explicar isso, uma vez que os contatos comerciais aumentavam, o que significava um crescimento de judeus vivendo na colônia, a autora defende uma maior coesão da sociedade judaica e uma menor coerção social. Na segunda visitação não há qualquer confissão acerca de gentilidades. A confissão tinha dois fins. Ao mesmo tempo que era uma forma de salvação e conforto individual, servia para manter a ordem social.

            Os motivos da primeira visitação ao Brasil são objeto de controvérsias acadêmicas. Anita Novinsky acredita que o objetivo principal da visitação era a perseguição e o confisco de bens dos cristãos-novos, estando estes no controle da maioria dos engenhos e do comércio naquela região, onde a produção açucareira era próspera. Sônia Siqueira faz outra leitura. Ela sugere que a visitação queria integrar o Brasil ao mundo cristão e mapear sobre que estrutura religiosa calcava-se a fé dos colonos. Vainfas, em contrapartida, defende que a visitação estava inserida dentro do processo de expansão, uma vez que as conquistas atlânticas estavam “esquecidas” pela Inquisição Lisboeta.

           

3. PURGATÓRIO

             

            O homem tem funções a desempenhar dentro do processo de obtenção da graça de Deus, etapas que se vencidas o levam a gloria divina, a condição de eleito. Para ascensão é preciso que cada indivíduo percorra um  trajeto purificante, e esse trajeto constitui um ponto intermediário entre o paraíso e o inferno, o “purgatório”[15]. Ponto este que se distingue dos extremos propostos pelo Cristianismo, ou seja, o Purgatório constitui um hiato entre o céu e o inferno, um meio termo, um desdobramento do pensamento dualista. Este desdobramento funciona como depurador da consciência, purificador de todas as faltas, permitindo com essa  pureza chegar mais próximo de  Deus.

            O Purgatório constituiu dentro da teologia medieval cristã um importante  elemento cristalizador do dogma, visto que este possibilitava a ascensão de qualquer grupo social à plenitude, sendo que anterior a isso a dualidade conceitual se aplicava também aos grupos sociais. Por essa razão o nascimento do Purgatório[16] se deu concomitante a profusão da crença cristã, não apenas  como uma necessidade política para a expansão, mas como um aprimoramento natural da crença. O que se deve levar em conta no que tange o Cristianismo como um todo e especialmente o Purgatório é o fato de  seu nascimento vir permeado de embriões inerentes à cultura popular, ou seja, pagã, o que se choca de maneira drástica com alguns elementos importantes na formação destes mesmos conceitos e que se fundamentam na cultura erudita .

No concilio de Latrão IV[17], a Igreja confirmou a existência de demônios, ou seja, legitimou o que a crença popular já cria “no mal” em oposição “ao bem”, essa legitimação deu os elementos necessários para que os desdobramentos da crença também se legitimassem 

            Para provar a existência do Purgatório, a Igreja se valeu de  algumas passagens bíblicas, das quais metaforicamente se alude a existência deste lugar de  expiação das culpas, e mesmo a própria possibilidade do perdão das faltas.  “Todo que tiver falado contra o filho do homem será perdoado. Se porém falar contra o Espirito  Santo, não alcançará perdão nem neste século  nem no século vindouro”[18].

A importância do Purgatório sem duvida foi alem do que a Igreja poderia imaginar tanto que mesmo após os questionamentos dos reformadores, a Igreja com sua  política reafirmadora do dogma conseguiu lograr êxito e legitimar a inserção definitiva  do purgatório dentro da vida das comunidades cristãs, e que perdura até os dias de hoje conjuntamente com as tradições populares.  

 

4. BLASFÊMIA E DESVIOS DOUTRINÁRIOS

           

            Para um povo que acreditava ser escolhido por Deus para difundir e defender a fé católica, a blasfêmia era muito mais do que um substantivo: era um grave pecado que feria a fé e os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana. Com isso, cabia ao Tribunal da Inquisição banir do “Reino Sagrado” tal desvio doutrinário, já que era um desprezo pensado para com Deus e exposto através de palavras.

            A agressão da fé por meio de palavras era um crime freqüente nos diários da Inquisição. Os métodos de castigo iam desde levar uma vela acesa na mão com a boca amordaçada, até ser açoitado e degredado para o interior de Portugal ou para o Brasil, ou ainda, passar a vida toda nas galés.[19] Juntamente à blasfêmia, caminhava a profanação de imagens e símbolos religiosos denominadas “blasfêmias por ações”.

            Como afirmado anteriormente, a blasfêmia era vista como um grande desvio doutrinário. Os casos que de processos doutrinários remetem a tudo aquilo que as pessoas consideravam, ou por suas próprias consciências ou pela repreensão de terceiros, como pecados e atitudes desonrosas ligadas à fé conforme os dogmas pregados pela Santa Igreja. Uma passagem da Bíblia Sagrada demonstra algumas explicações sobre a ausência de fé explícita, ou seja, uma pessoa que ainda não chegou ao conhecimento da fé religiosa e devido a isso não pode opinar pró ou contra, tendo uma ausência inculpável da fé[20]. É passagem de João 3,18: “Quem não crer já está condenado”.

 

5. PROTESTANTES

 

Durante a Idade Média, a Igreja Católica começa a ser questionada e cresce novas manifestações religiosas que contrapõem os dogmas católicos. Havia no clero demasiada desordem, desarmonizando a integridade doutrinal dos preceitos cristãos. Na esteira de acusações tão categóricas, muitos historiadores fizeram, durante muito tempo, dos abusos de todos os gêneros que então a Igreja a causa principal da Reforma.

As novas doutrinas que estavam surgindo foram denominadas de heresias, sendo severamente combatidas e tendo seus seguidores capturados. Protestando contra essa ordem religiosa, Martinho Lutero e João Calvino começam a divulgar suas doutrinas pela Alemanha, Suécia, Dinamarca, Noruega e França, reivindicando uma reforma no seio do catolicismo. A distância entre o protestantismo e o catolicismo talvez tenha surgido da mecanização que se transformou as orações católicas, perdendo seu sentido mais profundo da teologia.[21]

A maioria dos casos de manifestações protestante aconteceu quando os culpados estavam vindo ao Brasil e foram capturados por protestantes nas naus.

 

6. JUDAÍSMO

 

A partir do crescimento do Cristianismo e com o fortalecimento da Igreja, os clérigos e reis assumiram uma postura controladora perante qualquer forma de cultura oposta aos preceitos cristãos. A Igreja Católica, além de assegurar seu poder na sociedade, visava a “consolidação da ortodoxia e unidade religiosa”[22].  Um dos mecanismos utilizados pela Igreja para estes fins foi a criação do Tribunal do Santo Ofício, que veemente combateria as heresias existentes entre os cristãos.

A conversão de verdadeiros cristãos ao Judaísmo, o retorno às Leis de Moisés -  daqueles que já haviam sido batizados cristãos - e o acolhimento e proteção a estes, eram consideradas heresias e apostasias. Segundo o frei Nicolau Eymerich em seu Manual dos Inquisidores7, “os cristãos que aderem ao Cristianismo e os judeus que, convertidos ao Cristianismo retornam depois de algum tempo, à execrável seita judaica, são hereges e devem ser vistos como tais. Tanto uns quanto outros renegaram a fé cristã assumida através do batismo. “Se querem renunciar ao rito judaico sem renunciar ao Judaísmo nem fazer penitência, serão perseguidos como hereges impenitentes8 pelos bispos9 e inquisidores, que os entregarão para serem queimados.”10 Aos que acolherem acusados de Judaísmo, é reservado o mesmo tratamento que é dado a estes, ou seja, são hereges e devem ser condenados. Através da bula Turbato Corde, criada pelo Papa Nicolau IV (1288-1292), também são considerados hereges aqueles judeus que, direta ou indiretamente, auxiliam alguém a retornar às Leis de Moisés. Este último fato consuma-se quando a pessoa participa de cerimônias ou mantém hábitos da fé judaica.

 

7. BIGAMIA, ADULTÉRIO E SOLICITAÇÕES

 

A Igreja estava preocupada em definir os fundamentos da doutrina católica e reafirmar o valor sacramental do matrimônio. A solução encontrada foi ocorreu através do Concílio de Trento (1545-1563), que estabeleceu regras para as uniões conjugais. Para as transgressões das leis sagrada do matrimônio na colônia, dois fatores contribuíram essencialmente: a mobilidade geográfica  inerente ao desejo de construir uma nova vida em um novo espaço e as mudanças nas regras matrimoniais frente aos costumes e rituais tradicionais do casamento. Os primeiros povoadores conheciam dois tipos de matrimônio legal “o casamento a porta da Igreja” e o “casamento presumido”, sendo que este último resultava de uma convivência prolongada e foi confundido com o concubinato após o Concílio de Trento.

Uma vez comprovado o delito, punia os leigos com penas pecuniárias, prisão e degredo. Os religiosos eram privados de benefícios e funções, além de serem excomungados.

No Brasil, os bígamos eram na maioria do sexo masculino, imigrantes que tinham se casado no Reino e depois se casando novamente na colônia. Apenas 5% dos casos denunciados chegavam ao julgamento completo em Lisboa. Por motivos de demora na correspondência transatlântica, eram os visitadores pastorais que se encarregavam da maioria desses casos em vez de passa-los à Inquisição.

 

8. SODOMIA

 

Para os tribunais do Santo Ofício, a sodomia era um crime tão péssimo e horrendo, sendo indigno de ser nomeado. Além das Ordenações do Reino e dos Regimentos do Santo Ofício, a sodomia era punida também pelas constituições dos arcebispados que zelavam pela pureza da religião e pelos bons costumes[23]. Considerada uma heresia, os adeptos dessa prática nefanda sofreram perseguições que se intensificaram a partir dos séculos XIII e XIV. Tanto é que o século XVII em Portugal é considerado “o século de ouro da repressão sobre sodomitas”. A perseguição aos sodomitas foi superada apenas pelos cristãos-novos judaizantes, sendo o segundo maior grupo de hereges a serem reprimidos pela Inquisição. A conseqüência foi a de que a maioria dos acusados foram desterrado e mandado para as galés [24].

No Brasil, as práticas somíticas foram encaradas de maneira  mais leve pelos inquisidores, devido ao fato de que os próprios índios, segundo a visão européia, eram dados a praticas sexuais tidas como pecado, para a Inquisição, seria mais difícil para um homem não cair na tentação, já que as Américas eram vistas como a terra dos pecados. Segundo Geraldo Pieroni, a heresia da sodomia residia na profanação da ordem natural determinada pela criação cósmica: um só homem e uma só mulher unidos por Deus mediante o sacramento do matrimônio. A única prática legítima é a relação sexual entre esposos, objetivando a procriação[25].

 


 

[1] PIERONI, Geraldo. Os excluídos do Reino: A Inquisição Portuguesa e o Degredo para o Brasil Colônia. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. Cap. I “A Expulsão dos Indesejáveis uma prática comum na historia”, p 24.

[2] AMADO, Janaina / FIGUEIREDO, Luís Carlos . Brasil 1500- Quarenta Documentos. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000, Doc.  06  “Carta de Pero Vaz de Caminha” , p. 114. 

[3] PIERONI, Geraldo. Purgatório Colonial: Inquisição Portuguesa e Degredo no Brasil. Além-Mar / estudos luso-brasileiros: Lisboa, 1994.  

[4] Os índios brasileiros, por exemplo,  por serem considerados pelos portugueses como povos não civilizados (segundo o “conceito europeu de civilização”) só poderiam ser julgados por “Desvios da Fé”, desde que fossem catequizados. Ou seja, na ausência da catequese estes eram considerados incapazes de responder por seus atos, por mais ”bárbaros” que sejam estes.   

[5] GRUZINSKI, Serge.  O Pensamento mestiço.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 2 “ Misturas e Mestiçagens”.

[6] Gentílico, termo referente a gentil, que para os portugueses tinham o mesmo significado que  índio.

[7] A investigação de limpeza de Sangue, consistia em averiguar em pormenores se o candidato ao cargo de inquisidor, não tinha, descendência mesmo que muito remota com judeus, muçulmanos, ou seguidores de qualquer outra crença, que não a católica.  

[8] VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[9] GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 2 – “Misturas e Mestiçagens”.

[10] Ronaldo Vainfas (org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[11] VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial.  São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

[12] Hibridismo Cultural, corrente defendida por  vários historiadores que vislumbram a história enquanto um processo de misturas , e destas misturas nascem novas e híbridas culturas.

[13] GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 2  “Misturas e Mestiçagens”.

[14] VAINFAS Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1997. 

[15] Purgatório – Lugar de purificação das almas dos justos , antes de admitidas na bem-aventurança.

[16] O Nascimento do Purgatório, titulo de um livro do historiador Jaqques L’ Goff, que trata do histórico da idéia do Purgatório, num longo período da história. ( Editora Estampa, 1982 )   

[17] CONCÍLIO DE LATRÃO IV / 11 a 30 de novembro de 1215 /   Papa Inocêncio III (1198 - 1216)

Principais decisões:

- a condenação dos albigenses e valdenses;
- condenação dos erros de Joaquim de Fiore, que pregava o fim do mundo para breve, apoiando-se em falsa exegese bíblica;
- declaração da existência dos demônios como sendo anjos bons que abusaram do seu livre arbítrio pecando;
"Com efeito, o Diabo e outros demônios foram por Deus criados bons em sua natureza, mas se tornaram maus por sua própria iniciativa" (DS 800).
- a realização de mais uma cruzada para libertar o Santo Sepulcro de Cristo, em Jerusalém,
 que se achava nas mãos dos muçulmanos;
- a profissão de fé na Eucaristia, tendo sido então usada a palavra "transubstanciação".
- a obrigação da confissão e da comunhão anuais.
- fixou normas sobre a disciplina e a Liturgia da Igreja.

[18] Mt 12.32

[19] As galés eram sentenças de trabalhos forçados, uma espécie de prisão.                          

[20] HARING, Bernard. A Lei de Cristo: teologia moral. Volume II. São Paulo: Ed. Herder, 1964.

[21] LUIZETTO, Flávio. Lutero e Calvino. A Contra-Reforma e os jesuitas. São Paulo: Ed. Contexto, 1998.

[22] PIERONI, Geraldo. Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 92.

7 Directorium Inquisitorum. Escrito em 1376.

8 Aquele que mesmo sob a forte pressão do julgamento, não confessa e não abjura sua fé.

9 Referente ao período em que a inquisição era regida pela autoridade regional, o episcopado.

10 EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1993. p. 58.

[23] PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição Portuguesa e o Degredo para o Brasil Colônia. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 133.

[24] VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colônia. p. 535.

[25] VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colônia. p. 535.

Retratos da modernidade no cotidiano carioca pelo olhar de Lima Barreto


O hotel Avenida, ao fundo, à direita, destaque na recém-inaugurada Avenida Central: o Rio do prefeito Pereira Passos se espelhava em Paris (Crédito: Divulgação)

 

Angelita Silva Neto*  

 

 

Quanto a modernidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto sempre se colocou como voz solitária em posição radicalmente contra a forma como se processava.[1]

 

 

Personagem que testemunhou o processo de modernização que a cidade do Rio de Janeiro passou no final do século XIX e início do século XX, Lima Barreto registou em suas crônicas vários elementos que evidenciam as rápidas transformações ocorridas principalmente no campo social. Uma vez que, através do cotidiano- matéria prima do cronista- retratou as conseqüências, dessa súbita modernização, sofridas pelas camadas populares.

As crônicas aqui estudadas fazem parte de duas obras de Lima Barreto: Vida Urbana(1961) e Marginália(2002). Nestas podemos perceber através do olhar do autor, quais eram suas preocupações e descontentamentos com a nova perspectiva de sociedade que se formava.   

Com a implantação do regime republicano no Brasil, a Capital Federal- Rio de Janeiro- começou a passar por uma série de transformações que envolviam o campo econômico, político e social.

Dessa forma, “a nova filosofia financeira nascida com a República reclamava  a remodelação dos hábitos sociais e dos cuidados pessoais”.[2] Rapidamente percebeu-se que as velhas estruturas do Rio de Janeiro já não eram adequadas a esse novo ritmo. Além disso, era necessário acabar com a imagem que se tinha de uma cidade insalubre e insegura.

A cidade do Rio de Janeiro começava a passar por um processo de metamorfose. Para acompanhar o “progresso” deveriam possuir uma cidade moderna. Segundo Sevcenko[3], para a realização desse projeto alguns princípios foram adotados pelos governantes: os hábitos e costumes da sociedade tradicional eram condenados; os elementos da cultura popular deveriam ser negados para não nebular a imagem civilizada criada por uma minoria burguesa; o centro da cidade deveria ser ocupado pelas camadas aburguesadas e para isso as camadas pobres deveriam ser expulsas.

A “regeneração”[4] da cidade foi completamente excludente, fazendo com que as camadas pobres sofressem arduamente as conseqüências de sua implantação:

Carência de moradias e alojamentos, falta de condições sanitárias, moléstias (alto índice de mortalidade), carestia, fome, baixos salários, desemprego, miséria: eis os frutos mais acres desse crescimento fabuloso e que cabia à parte maior e mais humilde da população.[5]   

 

Diante desse quadro social que permeava a cidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto observava, escrevia, e opinava sobre os vários aspectos que percebia diante de tal situação. Para isto utilizava principalmente da crônica, produzindo-a com uma linguagem muito próxima  do que vivemos no dia-a-dia, e sua matéria-prima trata-se exatamente desse cotidiano que é selecionado pelo cronista. Assim, não era produzida com a intenção de durar, uma vez que, era criada para o jornal, um meio efêmero. Segundo Candido[6], os escritores não tinham a pretensão de “ficar”, tinham uma perspectiva de que seriam esquecidos rapidamente, uma vez que estavam falando do dia-a-dia, com isso quase sem pretender tornou a literatura muito próxima da vida cotidiana.

A produção de Lima Barreto é um meio de fazer as denúncias do campo social, utilizando-a como uma militância. Diante disso, trás uma modificação para o romance, o conto, a crônica, que até o momento caracterizava-se pela linguagem erudita, acadêmica. Sua obra é marcada pelo informal, pela linguagem mais popular, o que veio a ser posteriormente um dos propósitos dos modernistas.

As crônicas de Lima Barreto, possuem uma descrição abrangente da cidade do Rio de Janeiro, sendo que poucos documentos da época possuem essas minúcia, além de possuir um caráter polêmico, militante e provocador, o que permite ao leitor um maior aprofundamento sobre os tema por ele mencionados. Assim, a crônica barretiana torna-se um importantíssimo documento para o historiador, possuindo uma carga elevada de informações sobre a sociedade que estava vivendo.

Encontramos nas crônicas do autor uma imagem da cidade partindo do que está compreendendo e interpretando, no momento em que ocorre a reordenação da cidade, o foco é principalmente o controle da organização social da população.

Assim com a modernização na cidade do Rio de Janeiro, uma das mudanças aconteceram na estrutura física da cidade, ou seja, aconteceu uma reurbanização de forma bem excludente. Isto tornou-se muito evidente na produção barretiana, pois encontramos signos que mostram a modernização carioca adotando sempre a concepção da burguesia. Diante disso, encontramos em uma de suas crônicas Carta de um pai de família ao doutor chefe de polícia como a política adota para modernizar a cidade atendia apenas as necessidades e perspectivas da classe dominante. Nesta crônica, o autor remete ao fato de que com a modernização da cidade as prostitutas foram retiradas dos bairros onde moravam as famílias burguesas, e foram transferidas para bairros pobres nos quais também moravam famílias, porém isto foi ignorado pelos governantes:

... de uns dias a esta parte vieram para a minha vizinhança umas “moças” que não são bem parecidas com as minhas filhas nem com as primas delas. Eu conheço mal essas cousas da vida do Rio (...) e andei indagando de que pessoas se tratava e soube que eram “meninas”, moradoras nas novas ruas, que a polícia estava tocando de lá, por causa das famílias.

“Mas, doutor, eu não tenho família também? Por que é que só as famílias daquelas ruas não podem ter semelhante vizinhança e eu posso?”[7]

 

Percebemos assim, que este era um dos motivos que causavam indignação em Lima Barreto ao escrever. Isto era realmente, para ele, um absurdo, fazer um replanejamento completamente voltado para a classe dominante, aumentando a diferenciação de classes. E destacamos ainda que, através desses fatos que se passam no cotidiano torna-se possível notar tamanha perspectiva de modernização que acontecia.

Na crônica Hotel 7 de Setembro o autor destaca uma obra beneficente do governo para crianças carentes. Porém, não vê vantagem nenhuma nessa doação, uma vez que, foi gasto uma quantia muito grande na construção de um hotel luxuoso, enquanto poderia ser construído abrigo para crianças pobres. É dessa maneira, que encontramos a indignação de Lima Barreto diante de alguns aspectos da política de implantação da modernidade, na qual  a construção de um hotel luxuoso deixa bem exposta essa preocupação. Na citação abaixo podemos perceber a contestação do autor:

... é uma injúria e uma ofensa, feita a essas mesmas crianças, num edifício em que o governo da cidade gastou, segundo ele próprio confessa, oito mil contos de réis.

Pois é justo que a municipalidade do Rio de Janeiro gaste tão vultosa quantia para abrigar forasteiros ricos e deixe sem abrigo milhares de crianças pobres ao léu da vida?[8]

 

E perante essas considerações que faz sobre este fato, comenta ainda que o governo deveria ter se preocupado com as pessoas mais carentes em primeiro lugar, para depois construir obras luxuosas.

O seu primeiro dever era dar assistência aos necessitados, toda a espécie de assistência.

Agora, depois de gastar tão fabulosa quantia, dar um bródio para minorar o sofrimento da infância desvalida, só uma coisa resta à edilidade: passem bem![9]

 

Dessa maneira, o comportamento das pessoas também vai se modificando, vão se tornando cada vez mais semelhantes aos modelos europeus e americanos, como destaca Sevcenko “...hábito inovador de caminhar pelas ruas sozinho e às pressas era chamado de ‘andar à americana’... sobretudo a atitude de total desprendimento por tudo e por todos que estão ao redor”.[10] Através desses elementos, foi se constituindo uma caracterização para o homem moderno, que passa a ser seguida pela sociedade em geral.

Encontramos em crônicas do autor como a questão do modismo na maioria das vezes tornava-se indevida:

... quem se apresenta no trem com um guarda-pó [uma capa de pano que cobria a roupa da poeira], por mais caro que seja, mesmo que seja de sêda, como uma vestimenta chinesa ou japonesa, se não levar vaia, pelo menos é tomado como roceiro ou coisa parecida.

A moda que não se os use e exige até que se viaje com roupas caras e finas.

Entretanto, achei absurdo semelhante moda- deusa, aliás, que é fértil em absurdos. O pó das estradas de ferro continuam a existir, mesmo à noite- por que então suprimir o capote de brim que resguardava as nossas roupas dele? Por que tornar chique viajar com roupas impróprias que muito mal se defendem da poeira?[11]

  

Um fator que sempre chama muito a atenção do autor, como também a nossa, são as mudanças de comportamentos dos sujeitos históricos. Em várias passagens das crônicas de Lima Barreto nos deparamos com esta problemática.

Podemos perceber como algumas características do mundo moderno estava incomodando, e além disso e talvez o que mais provocasse o inconformismo no escritor é o fato do brasileiro estar copiando de outros países fatores que o autor julga ser negativo.

Nem tudo que se constrói em nome da modernidade é aplicado e aplaudido pela população como um todo. Como no caso de Lima Barreto que faz um apelo:

Imploremos aos senhores capitalistas para que abandonem essas imensas construções, que irão, multiplicadas, impedir de vermos os nosso purpurinos crespúsculos do verão e os nossos profundos céus negros do inverno. As modas dos “americanos” que lá fiquem com êles; fiquemos nos com as nossas que matam menos e não ofendem à beleza e à natureza.[12]

 

Encontramos assim, em uma outra crônica uma expressividade muito grande neste aspecto de mudança de comportamento, que o próprio nome já nos dá vários significados Ex-Homem. O autor comenta o fato de alguns homens estarem mudando  muito rapidamente de posicionamento. Assim, pelo contexto da crônica podemos entender  este acontecimento como uma caracterização do processo de modernização, uma vez que, alguns comportamentos e atitudes dos homens eram considerados honrosos e de caráter e que posteriormente começavam a não serem mais tão significativas. Diante disso, encontramos ainda estranhamento por estarem em fase de transformação, não era visto como algo “normal”, observe uma passagem dessa crônica que expõe muito bem este aspecto:

Acontece, pois, que certos desses homens dessa forma assim tratados, de uma hora para outra mudam de orientação, avacalham-se, como se diz vulgarmente, e passam de um extremo a outro, sem nenhuma explicação.[13]

 

Ontem e Hoje uma crônica na qual podemos encontrar com muita nitidez, que com a modernidade novos elementos vão surgindo e a partir deles e também por novos comportamentos que sujeitos sociais vão ocupando, acaba fortalecendo a diferenciação de classes que se torna cada vez maior. Isto pode ser  observado dentro dessa crônica, quando um deputado que era muito querido por toda a população, era considerado “nosso homem”, a partir do momento que ele compra um automóvel – elemento que representa a modernização- ele não é considerado mais “nosso homem” pela população, uma vez que, se sente muito superior a esta população.

Com o processo de modernização notamos, como já foi mencionado, a mudança de comportamento dos suburbanos, que apesar de não participarem diretamente de todos os empreendimentos da modernidade, sentiam e passavam por várias de suas conseqüências. Lima Barreto, faz uma crônica intitulada Bailes e Divertimentos suburbanos, na qual trás esses aspectos de mudanças e mesmo da exclusão que esse processo provoca. Menciona primeiramente como eram as festas do subúrbio, havia “...a matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida dos assados para a padaria, etc”.[14]Além disso, comenta ainda sobre as músicas que eram tocadas nestas festas e destaca que “... nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras”.[15]

No decorrer da crônica vai dispondo de vários aspectos que sofreram transformações, uma delas é o tamanho das residências. Primeiro elas eram grandes  e conseguiam acomodar várias pessoas, agora “...nas salas de visitas dos atuais mal cabem o piano (...), adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com janelas abertas”.[16] Evidenciando que não era mais possível fazer os famosos bailes. Com isso, muda-se o local de realização da festa, passando então para os clubes:

 

Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um conserto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam perutear em salão vasto.[17]

 

Porém, apesar de acontecerem mudanças, muitos elementos permanecem, notando  que o que ocorre trata-se realmente de um processo. Notamos isto, nesta última parte da citação acima, na qual as mães continuam vigiando as filhas nos bailes.

Logo em seguida o autor problematiza a concepção de que essas mudanças que aconteceram era para civilizar o subúrbio, assim como acontece no restante da sociedade carioca

Passando para os pés dos civilizados, elas [as danças] são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.

Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao set carioca, que dançam one-step e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano, mas de que forma, santo Deus?[18]

 

Nesta passagem encontramos a diferenciação de classes, ao mesmo tempo que demonstramos completo desprezo por parte dos marginalizados  pelos hábitos que a classe dominante possuía.  Assim, não consegue perceber os aspectos que se dizem civilizatórios do subúrbio, que era o lugar onde morava e passou quase toda a sua vida.

Ao final da crônica é como se fizesse um próprio desabafo, além de encontramos a perspectiva de que os suburbanos vão procurando meios para mascararem a dura realidade que estavam vivendo:

Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...[19]

 

Encontramos ainda uma passagem que trás uma crítica muito contundente com relação a vontade de reproduzir um modelo de cidade que não se adequa ao Rio de Janeiro:

A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos.[20]

 

Dessa maneira, encontramos claramente a revolta do autor com a questão, da implantação de modelos exteriores indevidamente e consequentemente a exclusão dos negros do espaço urbano, fato que não seria possível diante da realidade brasileira.

Acabamos encontrando em vários momentos esses aspectos excludentes da modernidade. Em País Rico existe a constatação de muitos elementos modernos que a sociedade carioca desfrutava, mas devemos destacar que nem todos os membros dessa sociedade poderiam conviver com esses elementos. Notamos assim, que Lima Barreto se contraria principalmente com este aspecto, pois mesmo não podendo partilhar de todos elementos ditos modernos, acabam sofrendo várias conseqüências dos mesmos.

Destacamos que Lima Barreto faz uma reflexão sobre este aspecto em sua obra, mostrando a pobreza das pessoas no Rio de Janeiro que viviam amontoadas em pequenos locais.

 Tendo em vista, esta proposta da política de excluir as pessoas de acordo com a ordem burguesa, acaba provocando situações diversas, como a atração de várias classes sociais de outros Estados para o Rio de Janeiro. Percebemos, ainda a mudança da população rural para a cidade. Tendo a perspectiva de que ... O campo é a estagnação; a cidade é a evolução.[21]

Lima Barreto em E o tal Balázio? comenta sobre a criação de um marco para comemorar o aniversário da fundação da cidade do Rio de Janeiro, criticando o fato de criarem um monumento moderno como símbolo e não algo que realmente representa o que aconteceu. Ressalta ainda, que não são apenas as grandes realizações que trazem aspectos representativos. Este fato é assim narrado pelo autor:

Deixou de ter a singeleza que era de esperar tivesse, para ser uma coisa cerebrina de uma agulha de granito ponteada com uma bala de canhão moderno, simbolizando assim as lutas que se travaram na fundação da cidade.

Se essa simbolização fôsse necessária, creio eu que melhor seriam arcos, flechas, tacapes, mosquetes, arcabuzes, balas esféricas dos velhos canhões de retrocarga, que êsse balázio cilindrocônico que é quase de anteontem.[22]

 

            Se voltarmos um pouco na questão da desigualdade social, e mais especificamente na população pobre que foi obrigada a morar nos morros, devido aos projetos de reurbanização como já foi mencionado, encontramos a chamada “política sanitária”. Esta era uma forma, segundo os governantes do momento, de seguir o processo de modernização, uma vez que esta classe social correspondia às “fezes sociais” não devendo assim compor o quadro social da cidade que era considerada como modelo.

Existe assim, uma ligação direta entre modernidade e a elite, ou seja, mudanças que visam os interesses da burguesia. E uma das principais preocupações era de manter o poder que possuíam dentro do Estado. Diante dessa perspectiva, Lima Barreto confecciona suas críticas:

 

É muito justo que vocês queiram ganhar dinheiro; é muito justa essa torpe ânsia burguesa de ajuntar níqueis; mas o que não é justo, é que nós, todo o povo do Brasil, de prestígio a você, ministro e secretário de Estado, para nos matar de fome.[23]

Portanto, muitos elementos da modernidade foram modificando todo o cenário de uma sociedade, aqui em específico a sociedade carioca no final do século XIX e começo do século XX, notamos como o impacto da turbulência das transformações foi significativo para as pessoas que por ela passaram.

 Chamamos a atenção para o fato de Lima Barreto ser um sujeito completamente envolvido em meio a este processo. Assim, freqüentemente tece  críticas revoltosas com relação a maneira que a modernidade ia acontecendo, deixando muito evidente todas as desigualdades que existem dentro da sociedade. Encontramos sutilmente em algumas crônicas, em outras de maneira bem mais expressante, como existem contrastes entre os elementos modernos ditos tecnologicamente avançados e pertencentes ao mundo europeizado com a realidade dos suburbanos cariocas.

O mundo moderno sendo encarado como um mundo cheio de turbulência, complicado:

Nesse  atropelo que vivemos, neste fantástico turbilhão de preocupações subalternas poucos têm visto de que modo nós nos vamos afastando da medida, do relativo, do equilíbrio, para nos atirarmos ao monstruoso, ao brutal.[24]

 

Podemos encontrar ainda um sentimento de estranhamento e de mesmo de revolta, quando menciona a reforma feita na cidade do Rio de Janeiro, para que ele se modernizasse. Esta reforma implicaria na mudança da aparência física da cidade principalmente, para isto muitos moradores foram retirados do centro da cidade para que largas avenidas fossem implantadas. Algumas obras que foram realizadas para demonstrar um grau de modernização muito elevado, nunca foram utilizadas. A mudança no Rio de Janeiro, não aconteceu apenas nas estruturas, como também no comportamento das pessoas. Podemos observar na crônica A derrubada, um protesto de Lima Barreto contra a forma que se realizaram essas mudanças:

 

Mas, uma coisa que ninguém vê e nota é a contínua derrubada de árvores velhas, vestutas, fruteiras, plantadas há meio século, que a aridez, a ganância e a imbecilidade vão pondo abaixo com uma inconsciência lamentável.

Nós subúrbios, as velhas chácaras, cheias de anosas mangueiras piedosos tamarineiros, vão sendo ceifadas pelo machado impiedoso do construtor de avenidas.[25]

 

Nas crônicas de Lima Barreto esboça-se muito bem a forma banal que a modernidade foi sendo implantada no Rio de Janeiro. Um dos temas encontrados para começar as críticas foram às enchentes. Desde esta época as enchentes faziam estragos no Rio de Janeiro, com isso comenta sobre a “nova engenharia”:

 

De há muito que a nova engenharia municipal se deveria ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar a mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.

Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.[26]

 

A crônica permite-nos, como já mencionamos anteriormente, problematizarmos o cotidiano. Com isso, a cada uma delas encontramos elementos que simbolizam os acontecimentos do dia a dia carioca. Assim, o historiador através da representação identifica na crônica um documento muito significativo. Ou seja, ao trabalharmos com a literatura, percebemos como esta comporta as representações do social. O autor a todo momento busca um referencial, onde está vivendo, para produzir suas reflexões. Notamos portanto, que “as representações do mundo social não são o reflexo do real nem a ele se opõe de forma antitética, numa contraposição vulgar entre imaginário e realidade concreta.”[27]  

           


 

* Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná

[1] BARBOSA, Francisco de Assis. Prefácio. In: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989. p.15

[2] SEVCENKO, Nicolau. A Inserção Compulsória do Brasil na Belle Époque. In: Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo.: Brasiliense, 1989. p.28

[3] Ibid., p.30

[4] Termo utilizado pelos governantes da época  justificando as transformações que a cidade passava.

[5] Ibid., p.52

[6] CANDIDO, Antônio (et al.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992.

 

[7] LIMA BARRETO, Afonsos H. Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.96

[8] LIMA BARRETO, Afonsos H. Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>.  Acesso em dezembro de 2002. p.5

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[9] Ibid., p. 6

[10] SEVCENKO, Nicolau. A Capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: História da vida privada no Brasil. vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.551

 

[11] Ibid., p.13

[12] Ibid., p.122

[13] Ibid., p.108

[14] IDEM, Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>.  Acesso em dezembro de 2002. p.18

[15] Ibid., p.18

[16] Ibid., p.18

[17] IDEM, Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>.  Acesso em dezembro de 2002. p.18

[18] Ibid., p.19

[19] Ibid., p.21

[20] IDEM, Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.83

[21] IDEM, Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>.  Acesso em dezembro de 2002. p.55

[22] IDEM, Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p78/79

[23] Ibid., p.119

[24] IDEM, Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.121

[25] Ibid., p.29

[26] Ibid., p.77

[27] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade nacional. In: Discurso histórico e narrativa literária. Campinas, SP. Ed. da UNICAMP, 1998.