Angelita Silva Neto*
Quanto a modernidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto sempre se colocou como voz solitária em posição radicalmente contra a forma como se processava.[1]
Personagem que testemunhou o processo de modernização que a cidade do Rio de Janeiro passou no final do século XIX e início do século XX, Lima Barreto registou em suas crônicas vários elementos que evidenciam as rápidas transformações ocorridas principalmente no campo social. Uma vez que, através do cotidiano- matéria prima do cronista- retratou as conseqüências, dessa súbita modernização, sofridas pelas camadas populares.
As crônicas aqui estudadas fazem parte de duas obras de Lima Barreto: Vida Urbana(1961) e Marginália(2002). Nestas podemos perceber através do olhar do autor, quais eram suas preocupações e descontentamentos com a nova perspectiva de sociedade que se formava.
Com a implantação do regime republicano no Brasil, a Capital Federal- Rio de Janeiro- começou a passar por uma série de transformações que envolviam o campo econômico, político e social.
Dessa forma, “a nova filosofia financeira nascida com a República reclamava a remodelação dos hábitos sociais e dos cuidados pessoais”.[2] Rapidamente percebeu-se que as velhas estruturas do Rio de Janeiro já não eram adequadas a esse novo ritmo. Além disso, era necessário acabar com a imagem que se tinha de uma cidade insalubre e insegura.
A cidade do Rio de Janeiro começava a passar por um processo de metamorfose. Para acompanhar o “progresso” deveriam possuir uma cidade moderna. Segundo Sevcenko[3], para a realização desse projeto alguns princípios foram adotados pelos governantes: os hábitos e costumes da sociedade tradicional eram condenados; os elementos da cultura popular deveriam ser negados para não nebular a imagem civilizada criada por uma minoria burguesa; o centro da cidade deveria ser ocupado pelas camadas aburguesadas e para isso as camadas pobres deveriam ser expulsas.
A “regeneração”[4] da cidade foi completamente excludente, fazendo com que as camadas pobres sofressem arduamente as conseqüências de sua implantação:
Carência de moradias e alojamentos, falta de condições sanitárias, moléstias (alto índice de mortalidade), carestia, fome, baixos salários, desemprego, miséria: eis os frutos mais acres desse crescimento fabuloso e que cabia à parte maior e mais humilde da população.[5]
Diante desse quadro social que permeava a cidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto observava, escrevia, e opinava sobre os vários aspectos que percebia diante de tal situação. Para isto utilizava principalmente da crônica, produzindo-a com uma linguagem muito próxima do que vivemos no dia-a-dia, e sua matéria-prima trata-se exatamente desse cotidiano que é selecionado pelo cronista. Assim, não era produzida com a intenção de durar, uma vez que, era criada para o jornal, um meio efêmero. Segundo Candido[6], os escritores não tinham a pretensão de “ficar”, tinham uma perspectiva de que seriam esquecidos rapidamente, uma vez que estavam falando do dia-a-dia, com isso quase sem pretender tornou a literatura muito próxima da vida cotidiana.
A produção de Lima Barreto é um meio de fazer as denúncias do campo social, utilizando-a como uma militância. Diante disso, trás uma modificação para o romance, o conto, a crônica, que até o momento caracterizava-se pela linguagem erudita, acadêmica. Sua obra é marcada pelo informal, pela linguagem mais popular, o que veio a ser posteriormente um dos propósitos dos modernistas.
As crônicas de Lima Barreto, possuem uma descrição abrangente da cidade do Rio de Janeiro, sendo que poucos documentos da época possuem essas minúcia, além de possuir um caráter polêmico, militante e provocador, o que permite ao leitor um maior aprofundamento sobre os tema por ele mencionados. Assim, a crônica barretiana torna-se um importantíssimo documento para o historiador, possuindo uma carga elevada de informações sobre a sociedade que estava vivendo.
Encontramos nas crônicas do autor uma imagem da cidade partindo do que está compreendendo e interpretando, no momento em que ocorre a reordenação da cidade, o foco é principalmente o controle da organização social da população.
Assim com a modernização na cidade do Rio de Janeiro, uma das mudanças aconteceram na estrutura física da cidade, ou seja, aconteceu uma reurbanização de forma bem excludente. Isto tornou-se muito evidente na produção barretiana, pois encontramos signos que mostram a modernização carioca adotando sempre a concepção da burguesia. Diante disso, encontramos em uma de suas crônicas Carta de um pai de família ao doutor chefe de polícia como a política adota para modernizar a cidade atendia apenas as necessidades e perspectivas da classe dominante. Nesta crônica, o autor remete ao fato de que com a modernização da cidade as prostitutas foram retiradas dos bairros onde moravam as famílias burguesas, e foram transferidas para bairros pobres nos quais também moravam famílias, porém isto foi ignorado pelos governantes:
... de uns dias a esta parte vieram para a minha vizinhança umas “moças” que não são bem parecidas com as minhas filhas nem com as primas delas. Eu conheço mal essas cousas da vida do Rio (...) e andei indagando de que pessoas se tratava e soube que eram “meninas”, moradoras nas novas ruas, que a polícia estava tocando de lá, por causa das famílias.
“Mas, doutor, eu não tenho família também? Por que é que só as famílias daquelas ruas não podem ter semelhante vizinhança e eu posso?”[7]
Percebemos assim, que este era um dos motivos que causavam indignação em Lima Barreto ao escrever. Isto era realmente, para ele, um absurdo, fazer um replanejamento completamente voltado para a classe dominante, aumentando a diferenciação de classes. E destacamos ainda que, através desses fatos que se passam no cotidiano torna-se possível notar tamanha perspectiva de modernização que acontecia.
Na crônica Hotel 7 de Setembro o autor destaca uma obra beneficente do governo para crianças carentes. Porém, não vê vantagem nenhuma nessa doação, uma vez que, foi gasto uma quantia muito grande na construção de um hotel luxuoso, enquanto poderia ser construído abrigo para crianças pobres. É dessa maneira, que encontramos a indignação de Lima Barreto diante de alguns aspectos da política de implantação da modernidade, na qual a construção de um hotel luxuoso deixa bem exposta essa preocupação. Na citação abaixo podemos perceber a contestação do autor:
... é uma injúria e uma ofensa, feita a essas mesmas crianças, num edifício em que o governo da cidade gastou, segundo ele próprio confessa, oito mil contos de réis.
Pois é justo que a municipalidade do Rio de Janeiro gaste tão vultosa quantia para abrigar forasteiros ricos e deixe sem abrigo milhares de crianças pobres ao léu da vida?[8]
E perante essas considerações que faz sobre este fato, comenta ainda que o governo deveria ter se preocupado com as pessoas mais carentes em primeiro lugar, para depois construir obras luxuosas.
O seu primeiro dever era dar assistência aos necessitados, toda a espécie de assistência.
Agora, depois de gastar tão fabulosa quantia, dar um bródio para minorar o sofrimento da infância desvalida, só uma coisa resta à edilidade: passem bem![9]
Dessa maneira, o comportamento das pessoas também vai se modificando, vão se tornando cada vez mais semelhantes aos modelos europeus e americanos, como destaca Sevcenko “...hábito inovador de caminhar pelas ruas sozinho e às pressas era chamado de ‘andar à americana’... sobretudo a atitude de total desprendimento por tudo e por todos que estão ao redor”.[10] Através desses elementos, foi se constituindo uma caracterização para o homem moderno, que passa a ser seguida pela sociedade em geral.
Encontramos em crônicas do autor como a questão do modismo na maioria das vezes tornava-se indevida:
... quem se apresenta no trem com um guarda-pó [uma capa de pano que cobria a roupa da poeira], por mais caro que seja, mesmo que seja de sêda, como uma vestimenta chinesa ou japonesa, se não levar vaia, pelo menos é tomado como roceiro ou coisa parecida.
A moda que não se os use e exige até que se viaje com roupas caras e finas.
Entretanto, achei absurdo semelhante moda- deusa, aliás, que é fértil em absurdos. O pó das estradas de ferro continuam a existir, mesmo à noite- por que então suprimir o capote de brim que resguardava as nossas roupas dele? Por que tornar chique viajar com roupas impróprias que muito mal se defendem da poeira?[11]
Um fator que sempre chama muito a atenção do autor, como também a nossa, são as mudanças de comportamentos dos sujeitos históricos. Em várias passagens das crônicas de Lima Barreto nos deparamos com esta problemática.
Podemos perceber como algumas características do mundo moderno estava incomodando, e além disso e talvez o que mais provocasse o inconformismo no escritor é o fato do brasileiro estar copiando de outros países fatores que o autor julga ser negativo.
Nem tudo que se constrói em nome da modernidade é aplicado e aplaudido pela população como um todo. Como no caso de Lima Barreto que faz um apelo:
Imploremos aos senhores capitalistas para que abandonem essas imensas construções, que irão, multiplicadas, impedir de vermos os nosso purpurinos crespúsculos do verão e os nossos profundos céus negros do inverno. As modas dos “americanos” que lá fiquem com êles; fiquemos nos com as nossas que matam menos e não ofendem à beleza e à natureza.[12]
Encontramos assim, em uma outra crônica uma expressividade muito grande neste aspecto de mudança de comportamento, que o próprio nome já nos dá vários significados Ex-Homem. O autor comenta o fato de alguns homens estarem mudando muito rapidamente de posicionamento. Assim, pelo contexto da crônica podemos entender este acontecimento como uma caracterização do processo de modernização, uma vez que, alguns comportamentos e atitudes dos homens eram considerados honrosos e de caráter e que posteriormente começavam a não serem mais tão significativas. Diante disso, encontramos ainda estranhamento por estarem em fase de transformação, não era visto como algo “normal”, observe uma passagem dessa crônica que expõe muito bem este aspecto:
Acontece, pois, que certos desses homens dessa forma assim tratados, de uma hora para outra mudam de orientação, avacalham-se, como se diz vulgarmente, e passam de um extremo a outro, sem nenhuma explicação.[13]
Ontem e Hoje uma crônica na qual podemos encontrar com muita nitidez, que com a modernidade novos elementos vão surgindo e a partir deles e também por novos comportamentos que sujeitos sociais vão ocupando, acaba fortalecendo a diferenciação de classes que se torna cada vez maior. Isto pode ser observado dentro dessa crônica, quando um deputado que era muito querido por toda a população, era considerado “nosso homem”, a partir do momento que ele compra um automóvel – elemento que representa a modernização- ele não é considerado mais “nosso homem” pela população, uma vez que, se sente muito superior a esta população.
Com o processo de modernização notamos, como já foi mencionado, a mudança de comportamento dos suburbanos, que apesar de não participarem diretamente de todos os empreendimentos da modernidade, sentiam e passavam por várias de suas conseqüências. Lima Barreto, faz uma crônica intitulada Bailes e Divertimentos suburbanos, na qual trás esses aspectos de mudanças e mesmo da exclusão que esse processo provoca. Menciona primeiramente como eram as festas do subúrbio, havia “...a matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida dos assados para a padaria, etc”.[14]. Além disso, comenta ainda sobre as músicas que eram tocadas nestas festas e destaca que “... nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras”.[15]
No decorrer da crônica vai dispondo de vários aspectos que sofreram transformações, uma delas é o tamanho das residências. Primeiro elas eram grandes e conseguiam acomodar várias pessoas, agora “...nas salas de visitas dos atuais mal cabem o piano (...), adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com janelas abertas”.[16] Evidenciando que não era mais possível fazer os famosos bailes. Com isso, muda-se o local de realização da festa, passando então para os clubes:
Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um conserto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam perutear em salão vasto.[17]
Porém, apesar de acontecerem mudanças, muitos elementos permanecem, notando que o que ocorre trata-se realmente de um processo. Notamos isto, nesta última parte da citação acima, na qual as mães continuam vigiando as filhas nos bailes.
Logo em seguida o autor problematiza a concepção de que essas mudanças que aconteceram era para civilizar o subúrbio, assim como acontece no restante da sociedade carioca
Passando para os pés dos civilizados, elas [as danças] são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.
Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao set carioca, que dançam one-step e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano, mas de que forma, santo Deus?[18]
Nesta passagem encontramos a diferenciação de classes, ao mesmo tempo que demonstramos completo desprezo por parte dos marginalizados pelos hábitos que a classe dominante possuía. Assim, não consegue perceber os aspectos que se dizem civilizatórios do subúrbio, que era o lugar onde morava e passou quase toda a sua vida.
Ao final da crônica é como se fizesse um próprio desabafo, além de encontramos a perspectiva de que os suburbanos vão procurando meios para mascararem a dura realidade que estavam vivendo:
Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...[19]
Encontramos ainda uma passagem que trás uma crítica muito contundente com relação a vontade de reproduzir um modelo de cidade que não se adequa ao Rio de Janeiro:
A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos.[20]
Dessa maneira, encontramos claramente a revolta do autor com a questão, da implantação de modelos exteriores indevidamente e consequentemente a exclusão dos negros do espaço urbano, fato que não seria possível diante da realidade brasileira.
Acabamos encontrando em vários momentos esses aspectos excludentes da modernidade. Em País Rico existe a constatação de muitos elementos modernos que a sociedade carioca desfrutava, mas devemos destacar que nem todos os membros dessa sociedade poderiam conviver com esses elementos. Notamos assim, que Lima Barreto se contraria principalmente com este aspecto, pois mesmo não podendo partilhar de todos elementos ditos modernos, acabam sofrendo várias conseqüências dos mesmos.
Destacamos que Lima Barreto faz uma reflexão sobre este aspecto em sua obra, mostrando a pobreza das pessoas no Rio de Janeiro que viviam amontoadas em pequenos locais.
Tendo em vista, esta proposta da política de excluir as pessoas de acordo com a ordem burguesa, acaba provocando situações diversas, como a atração de várias classes sociais de outros Estados para o Rio de Janeiro. Percebemos, ainda a mudança da população rural para a cidade. Tendo a perspectiva de que ... O campo é a estagnação; a cidade é a evolução.[21]
Lima Barreto em E o tal Balázio? comenta sobre a criação de um marco para comemorar o aniversário da fundação da cidade do Rio de Janeiro, criticando o fato de criarem um monumento moderno como símbolo e não algo que realmente representa o que aconteceu. Ressalta ainda, que não são apenas as grandes realizações que trazem aspectos representativos. Este fato é assim narrado pelo autor:
Deixou de ter a singeleza que era de esperar tivesse, para ser uma coisa cerebrina de uma agulha de granito ponteada com uma bala de canhão moderno, simbolizando assim as lutas que se travaram na fundação da cidade.
Se essa simbolização fôsse necessária, creio eu que melhor seriam arcos, flechas, tacapes, mosquetes, arcabuzes, balas esféricas dos velhos canhões de retrocarga, que êsse balázio cilindrocônico que é quase de anteontem.[22]
Se voltarmos um pouco na questão da desigualdade social, e mais especificamente na população pobre que foi obrigada a morar nos morros, devido aos projetos de reurbanização como já foi mencionado, encontramos a chamada “política sanitária”. Esta era uma forma, segundo os governantes do momento, de seguir o processo de modernização, uma vez que esta classe social correspondia às “fezes sociais” não devendo assim compor o quadro social da cidade que era considerada como modelo.
Existe assim, uma ligação direta entre modernidade e a elite, ou seja, mudanças que visam os interesses da burguesia. E uma das principais preocupações era de manter o poder que possuíam dentro do Estado. Diante dessa perspectiva, Lima Barreto confecciona suas críticas:
É muito justo que vocês queiram ganhar dinheiro; é muito justa essa torpe ânsia burguesa de ajuntar níqueis; mas o que não é justo, é que nós, todo o povo do Brasil, de prestígio a você, ministro e secretário de Estado, para nos matar de fome.[23]
Portanto, muitos elementos da modernidade foram modificando todo o cenário de uma sociedade, aqui em específico a sociedade carioca no final do século XIX e começo do século XX, notamos como o impacto da turbulência das transformações foi significativo para as pessoas que por ela passaram.
Chamamos a atenção para o fato de Lima Barreto ser um sujeito completamente envolvido em meio a este processo. Assim, freqüentemente tece críticas revoltosas com relação a maneira que a modernidade ia acontecendo, deixando muito evidente todas as desigualdades que existem dentro da sociedade. Encontramos sutilmente em algumas crônicas, em outras de maneira bem mais expressante, como existem contrastes entre os elementos modernos ditos tecnologicamente avançados e pertencentes ao mundo europeizado com a realidade dos suburbanos cariocas.
O mundo moderno sendo encarado como um mundo cheio de turbulência, complicado:
Nesse atropelo que vivemos, neste fantástico turbilhão de preocupações subalternas poucos têm visto de que modo nós nos vamos afastando da medida, do relativo, do equilíbrio, para nos atirarmos ao monstruoso, ao brutal.[24]
Podemos encontrar ainda um sentimento de estranhamento e de mesmo de revolta, quando menciona a reforma feita na cidade do Rio de Janeiro, para que ele se modernizasse. Esta reforma implicaria na mudança da aparência física da cidade principalmente, para isto muitos moradores foram retirados do centro da cidade para que largas avenidas fossem implantadas. Algumas obras que foram realizadas para demonstrar um grau de modernização muito elevado, nunca foram utilizadas. A mudança no Rio de Janeiro, não aconteceu apenas nas estruturas, como também no comportamento das pessoas. Podemos observar na crônica A derrubada, um protesto de Lima Barreto contra a forma que se realizaram essas mudanças:
Mas, uma coisa que ninguém vê e nota é a contínua derrubada de árvores velhas, vestutas, fruteiras, plantadas há meio século, que a aridez, a ganância e a imbecilidade vão pondo abaixo com uma inconsciência lamentável.
Nós subúrbios, as velhas chácaras, cheias de anosas mangueiras piedosos tamarineiros, vão sendo ceifadas pelo machado impiedoso do construtor de avenidas.[25]
Nas crônicas de Lima Barreto esboça-se muito bem a forma banal que a modernidade foi sendo implantada no Rio de Janeiro. Um dos temas encontrados para começar as críticas foram às enchentes. Desde esta época as enchentes faziam estragos no Rio de Janeiro, com isso comenta sobre a “nova engenharia”:
De há muito que a nova engenharia municipal se deveria ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.
O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar a mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.
Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.[26]
A crônica permite-nos, como já mencionamos anteriormente, problematizarmos o cotidiano. Com isso, a cada uma delas encontramos elementos que simbolizam os acontecimentos do dia a dia carioca. Assim, o historiador através da representação identifica na crônica um documento muito significativo. Ou seja, ao trabalharmos com a literatura, percebemos como esta comporta as representações do social. O autor a todo momento busca um referencial, onde está vivendo, para produzir suas reflexões. Notamos portanto, que “as representações do mundo social não são o reflexo do real nem a ele se opõe de forma antitética, numa contraposição vulgar entre imaginário e realidade concreta.”[27]
* Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná
[1] BARBOSA, Francisco de Assis. Prefácio. In: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989. p.15
[2] SEVCENKO, Nicolau. A Inserção Compulsória do Brasil na Belle Époque. In: Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo.: Brasiliense, 1989. p.28
[3] Ibid., p.30
[4] Termo utilizado pelos governantes da época justificando as transformações que a cidade passava.
[5] Ibid., p.52
[6] CANDIDO, Antônio (et al.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992.
[7] LIMA BARRETO, Afonsos H. Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.96
[8] LIMA BARRETO, Afonsos H. Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>. Acesso em dezembro de 2002. p.5
[9] Ibid., p. 6
[10] SEVCENKO, Nicolau. A Capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: História da vida privada no Brasil. vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.551
[11] Ibid., p.13
[12] Ibid., p.122
[13] Ibid., p.108
[14] IDEM, Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>. Acesso em dezembro de 2002. p.18
[15] Ibid., p.18
[16] Ibid., p.18
[17] IDEM, Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>. Acesso em dezembro de 2002. p.18
[18] Ibid., p.19
[19] Ibid., p.21
[20] IDEM, Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.83
[21] IDEM, Marginália. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>. Acesso em dezembro de 2002. p.55
[22] IDEM, Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p78/79
[23] Ibid., p.119
[24] IDEM, Vida Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.121
[25] Ibid., p.29
[26] Ibid., p.77
[27] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade nacional. In: Discurso histórico e narrativa literária. Campinas, SP. Ed. da UNICAMP, 1998.
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