Os jesuítas enxergaram longe quando priorizaram as ações pedagógicas
Patrícia Wolley
Quando se fala sobre os jesuítas, que completam 460 anos no Brasil, logo o espírito aventureiro é posto em discussão. Porém, tão importante quanto a exploração de novas terras, era a vocação natural da Companhia de Jesus para a prática da educação. Se Rousseau e os ministros dos reis perceberam, apenas no século XVIII, a importância da pedagogia como instrumento fundamental na modelagem dos comportamentos, os pragmáticos jesuítas já atentavam para isto a criação da Companhia em 1540.
Todavia, o principal mentor da ordem não foi sempre um homem de letras. Do jovem militar de família senhorial no interior da Espanha até o Mestre em Artes diplomado pela Universidade de Paris, um longo caminho foi percorrido por Inácio de Loiola. Peregrinação à Palestina, revelações interiores e perseguições inquisitoriais fizeram parte desta trilha. A exemplo de alguns de seus companheiros, como Pierre Favre e Nicolas Alonso, Inácio também foi atingido pelas inquietações humanísticas do século XVI.
Ao contrário do que o senso comum divulga, o intuito do novo instituto religioso não era inicialmente combater o avanço protestante na Europa, mas sim “levar o mosteiro para o mundo”. Não que a Companhia de Jesus deixasse de desempenhar um papel importante na reforma católica. O empenho dos jesuítas nessa direção é indiscutível. Porém, desde cedo eles mostraram-se sensíveis à necessidade de uma maior aproximação entre Igreja e fiéis, assim como perceberam a urgência em oferecer instrução à população, de uma maneira geral iletrada e atemorizada pelas pestes e incertezas do início da época moderna.
Tratava-se de uma ordem evangelística por excelência, que começara a ser moldada intelectualmente anos antes na Universidade de Paris, cujo ambiente em 1530 constituía o “incêndio da Renascença”. Em seus bancos, grandes discussões religiosas entre as concepções humanistas de Erasmo de Roterdão e Lutero chocavam-se com a tradição escolástica da Idade Média. Era lá que indivíduos como François Rabelais exibiam um espírito de crítica e deboche próprios de um tempo no qual o mundo se ampliara literalmente. Seria impossível que os pensadores permanecem indiferentes perante sua posição no mundo e mesmo quanto sua relação com Deus.
É certo que Loiola não foi um “Erasmo do catolicismo”, mas a Companhia de Jesus constituiu uma proposta religiosa renovada, que se afastava da vida monacal e dos martírios conjuntos. Texto fundador da ordem, a bula Regimini Militantis Eclesiae deixava claro que “ensinar aos meninos e rudes as verdades do cristianismo” seria um dos principais objetivos dos jesuítas. De fato, não tardou para que eles cruzassem os oceanos para pôr em prática aquela meta.
No Brasil, os jesuítas elaboraram vocabulários da língua tupi-guarani para ensinarem os rudimentos cristãos aos nativos da América Portuguesa. Praticaram um magistério público, onde a instrução era ministrada não apenas aos futuros missionários, que nunca foram tantos que não fosse preciso vir outros de fora, mas também àqueles que buscavam o ensino simplesmente para instruir-se ou para formar-se em Medicina ou Direito na Universidade de Coimbra.
Há quem diga até que o jesuíta Vicente Rodrigues pode ser considerado o primeiro professor do Brasil. Em 1549, ele estabelecia as aulas de “ler, escrever e contar” na Bahia. Quase simultaneamente, outras escolas do gênero foram instaladas no estado, além de Espírito Santo e Pernambuco. Já no ano seguinte, eram abertos os estudos de Humanidades, como lições de Latim ministradas pelo padre Leonardo Nunes no Colégio dos Meninos de Jesus da Vila de São Vicente. No século XVII, a ordem pretendeu transformar esta instituição em uma Universidade, ao estilo da que dirigia em Évora. O projeto, contudo, foi vetado pela coroa. Ainda hoje, é possível encontrar o prédio histórico do Colégio dos Meninos no Terreiro de Jesus, próximo ao Pelourinho.
O ensino jesuítico era guiado pelo Ratio Studiorum, um rigoroso programa de estudos elaborados no século XVI pela Companhia, mas a postura destes religiosos frente às questões modernas não foi homogênea. Mesmo em Portugal existia uma geração mais jovem de jesuítas que se declarava eclética em termos de conhecimento, chegando a adotar alguns elementos de física newtoniana em aula.
Dois professores de Filosofia da Universidade de Évora ilustram bem esta corrente: o padre Sebastião de Abreu, atuante entre os anos de 1750-1754, e o padre João Leitão, último jesuíta a lecionar aquela disciplina em Évora. Ambos iniciavam seus cursos apontado noções de história da Filosofia, desde os autores antigos até Newton. Em relação ao estudo dos corpos e matérias, o padre Sebastião de Abreu reconhecia que, a exemplo de Locke, “a essência dos corpos e do espírito é inacessível ao intelecto humano”. Ou seja, o conhecimento possuía limites. Existiam questões que não cabiam à teologia ou à filosofia explicar, mas aos pesquisadores descrever e compreender-lhes o funcionamento.
Em Coimbra, destacava-se a figura do padre Inácio Monteiro, que entrou para a Companhia de Jesus em 1739. No ano de 1754, quando era ainda estudante de Teologia, já ministrava aulas de matemática no Colégio das Artes. Nesta época, publicou uma obra que resumia em linguagem clara os “primeiros princípios mais necessários da matemática”. Para o agrado dos estudantes, as conclusões do autor eram ilustradas por meio de muitas gravuras e esquemas de notável tino pedagógico.
No tocante às suas tendências doutrinais, Inácio Monteiro se definia como eclético, visto que, segundo suas palavras, “um verdadeiro filósofo não se submete ao despotismo de nenhum autor”. Contudo, ao contrário de outros com postura semelhante, Inácio Monteiro ia além, chegando mesmo a ser irônico em relação à posição da Igreja ao conhecimento dito “moderno”. Ao abordar o sistema de Copérnico em seu curso, dizia: - Se a igreja determinasse que as escrituras sagradas devessem ser entendidas literalmente, ‘ficará certíssimo o descanso da Terra’. Mas, até agora nem declarou a Igreja ou propôs como de Fé a inteligência literal dos textos referidos, nem o descanso da Terra.
O fim: um novo começo
Além da América, os jesuítas foram a todos os continentes conhecidos na sua época, alcançando também a Ásia e África. A ordem entendia o ensino como um meio não só de instruir, mas também de preparar o espírito para o entendimento sincero da religião. Inicialmente, a Companhia de Jesus mostrou-se ainda um instrumento importante de legitimação das monarquias católicas, sobretudo por meio das atividades missionárias desenvolvidas nos domínios ultramarinos.
Porém, no século XVIII, os jesuítas tornaram-se incômodos, quase uma espécie de poder paralelo. E essa influência advinha do magistério que exerciam e do conseqüente controle alcançado junto às elites letradas de toda a Europa e domínios coloniais. A ordem religiosa personificava o poder político da Igreja que os monarcas pretendiam sujeitar às suas aspirações. Isto a tornava alvo de críticas por parte de seus antagonistas no século das luzes, fossem pensadores ou homens de política, como o marquês de Pombal. Ambos associavam a ordem ao obscurantismo, a um conhecimento ultrapassado, baseado na escolástica aristotélica (subordinando do conhecimento à Teologia) e desligado da realidade.
Sob a acusação de conspiradores, praticantes do crime de lesa-majestade, ladrões de ouro e portadores de riquezas ilícitas, os jesuítas foram expulsos do Império Português em 1759. Esse foi apenas o primeiro de muitos outros atos que atormentariam o instituto até a sua dissolução definitiva em 1773 por ordem Papa Vicenzo Antonio Ganganelli, de tradição franciscana. A decisão foi fruto de um conclave das Cortes Espanhola e Francesa dos Bourbon. As motivações políticas ficam evidentes no documento Breve Dominus ac Redemptor, que sela o término da Companhia por esta levar seus membro “a se erguer contra as outras Ordens religiosas, contra o Clero secular, as Academias, as Universidades, os Colégios, as Escolas públicas, e contra os próprios Soberanos que os haviam acolhido e admitido em seus Estados".
Obscuros, resistentes às inovações, rivais políticos dos reis, “donzelões intransigentes” no dizer de Gilberto Freire, a polêmica ordem religiosa só seria restaurada em 1814, após as reviravoltas políticas promovidas pela Revolução Francesa. Contudo, a desconfiança lançada pelas novas idéias liberais em relação às ligações entre a Igreja e o poder civil tornou esse processo de reconstrução difícil, lento e irregular.
O tema da restauração e atuação da Companhia de Jesus no mundo contemporâneo é ainda pouco debatido e estudado. Pistas oportunas são oferecidas pelo historiador inglês Jonathan Wright. Em “Jesuítas: missões, mitos e histórias”, obra publicada pela editora Relume Dumará, o autor afirma que os jesuítas só retomaram oficialmente as atividades em Portugal no ano de 1829, mas logo sofreram novo exílio devido aos tumultos liberais de 1834, quando D. Pedro I, tão autoritário por aqui, consolidou o constitucionalismo português.
A partir de 1858, os jesuítas foram readmitidos gradativamente nas terras lusitanas, sofrendo novo revés na primeira década do século XX. Wright registra ainda superficialmente a ojeriza dos velhos filhos de Santo Inácio aos comunistas, assim como as simpatias que alguns membros da ordem nutriram pelo nazismo alemão. Entretanto, em especial no Brasil e na Ásia, a Companhia de Jesus permaneceu fiel ao espírito humanista de estudos e conhecimento. Um exemplo é o Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus em Belo Horizonte, hoje Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Este Centro constituiu-se a partir de diferentes instituições da ordem espalhadas pelo Brasil, tais como a Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo (RJ), instituída em 1941, e a de Teologia, fundada no ano de 1949, em São Leopoldo (RS).
Em 1982, as faculdades se reuniram no centro de estudos da capital mineira “com a finalidade de formar-se em centro comum de estudos para as províncias jesuítas do Brasil, aberto a outras províncias fora do país, ao clero, às congregações religiosas e a leigos”. Um dos destaques dessa instituição jesuítica é a Biblioteca Pedro Vaz, que possui rico e amplo acervo de obras raras, inclusive exemplares dos volumes originais da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert.
Mocinhos ou vilões? Traidores régios ou injustiçados? Politicamente atuantes ou colaboradores indiretos do holocausto? Aos historiadores não cabem julgamentos definitivos, apenas reflexões e análises. Mas o fato é que a história da Companhia de Jesus se confunde com a própria trajetória do mundo ocidental nas épocas moderna e contemporânea. Tortuosa e irregular por excelência, como toda História dos homens e das instituições.
Revista de História da Biblioteca Nacional