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A controversa República Bahiense mantinha laços estreitos com a monarquia
Hendrik Kraay
Durante uma reunião tumultuada no dia 7 de novembro de 1837, a Câmara Municipal da cidade do Salvador declarou a Bahia “inteira e perfeitamente desligada do governo denominado central do Rio de Janeiro”. Foi o começo da Sabinada, uma efêmera experiência republicana que durou somente quatro meses. Os rebeldes militares e civis que tomaram a cidade e expulsaram o governo provincial pareciam ser republicanos. Prometeram convocar uma assembléia constituinte e elegeram um presidente e um vice-presidente.
Mas, no dia 11, o próprio vice-presidente eleito, João Carneiro da Silva Rego, que exercia a presidência na ausência do presidente, requereu que a Câmara limitasse a duração da independência à menoridade de Dom Pedro II, que terminaria no dia 2 de dezembro de 1843. Parece, como observou Paulo Cesar Souza, uma república suicida quase no seu ato de fundação.
Embora o líder principal da Sabinada, o médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, fosse considerado republicano, o governo rebelde no qual ele serviu de secretário manteve uma relação ambígua com a monarquia brasileira. Houve tiradas antimonárquicas, entre elas uma ordem que mandou apagar a inscrição no obelisco que lembrava a chegada de Dom João em 1808, pois não se devia comemorar “um déspota sanhudo e ingrato [que] veio infeccionar[-nós] com o bafo pestífero da corte portuguesa”.
No dia 2 de dezembro de 1837, a Sabinada festejou o “Glorioso Aniversário do natalício do Sn.r D. Pedro II” com salvas de artilharia, um cortejo perante a imperial efígie e a iluminação dos edifícios públicos. O Novo Diário da Bahia pediu desculpas pela falta de pompa no “regozijo público”, pois os novos soldados recrutados para defender a cidade ainda estavam sem uniformes. Um funcionário público processado depois da derrota justificou seu serviço ao governo da Sabinada dizendo que, durante a revolta, “tremulava a mesma bandeira e (...) se davam vivas a sua majestade o Senhor D. Pedro II”.
O Novo Diário da Bahia, o porta-voz do movimento editado por Sabino, publicou alguns ensaios sobre as vantagens do sistema republicano e condenou os que diziam que o Brasil não tinha condições para se tornar república. Defendeu a soberania do povo da Bahia e o seu direito de escolher a forma de governo.
Nas suas proclamações, o governo rebelde queixava-se da preponderância política do Rio de Janeiro, batia na tecla da lusofóbia e enfatizava seu amor à ordem. Prometia proteger a propriedade privada, a escravidão, a lei, a monarquia e o altar. As proclamações terminavam com vivas à Igreja, ao jovem imperador, à independência baiana (durante a menoridade), à liberdade, à liberdade da Bahia e às tropas heróicas.
De onde veio essa lealdade à monarquia? Símbolo poderoso, a monarquia estava profundamente enraizada na sociedade brasileira, como demonstrou Lília Moritz Schwarcz. Como todos os símbolos, a monarquia tinha múltiplos significados e a Sabinada podia ser considerada uma luta em torno do seu significado. No dia 2 de dezembro de 1837, não foram somente os Sabinos que festejaram o aniversário de Dom Pedro II – os legalistas também comemoraram o dia. Os governos do Regresso investiam muito no ritual e nos símbolos monárquicos como sustentáculos da ordem conservadora que tentaram implantar. A Sabinada cogitava uma monarquia liberal e federalista, e esperava que o jovem imperador, uma vez de maior idade, desfizesse os projetos do Regresso.
A independência temporária durou pouco mais de quatro meses. Assediados pelas tropas imperiais, os rebeldes não conseguiram resistir. A derrota foi um massacre. Mais de mil rebeldes – em sua maioria homens de cor – morreram contra apenas quarenta soldados legalistas nos três dias de combate em março.
Até a década de 1880, pouco se falava da Sabinada. Na crise final do Império, alguns historiadores baianos tentaram interpretá-la como precursor republicano. Henrique Praguer esperava que “o eminente e desditoso patriota baiano, Dr. Sabino, mártir da idéia federalista e republicana”, fosse considerado herói republicano como Tiradentes. A assembléia constituinte do novo Estado da Bahia declarou feriado o dia 7 de novembro; foi festejado como precursor da liberdade republicana pela imprensa baiana na década de 1890. Todavia, sempre foi um movimento ambíguo e em 1903 um jornal duvidou do sentido republicano da Sabinada, pois os sabinos cogitavam voltar ao Império quando da maioridade de Dom Pedro II. Em 1909, o historiador Braz do Amaral lamentou o “erro deplorável” da aprovação do feriado e julgou a comemoração do dia “uma imensa desgraça”.
Em 1937, Luiz Viana Filho insistiu na feição republicana do movimento e qualificou a independência interina como uma mera transigência tática. Cinqüenta anos depois, Paulo Cesar Souza preferiu qualificar o movimento como separatista e destacou seu ideário liberal, democrático, e federalista. Mais recentemente, a história social chamou atenção à luta de classe, aos conflitos raciais e à participação de escravos e milicianos negros no movimento.
Em vez de procurar um cerne de pureza republicana no meio dos atos contraditórios e da retórica ambígua da Sabinada, devemos entendê-la como parte de uma longa tradição liberal, federalista e constitucionalista cujas origens remontam à conspiração dos alfaiates de 1798, perpassem pelas lutas pela Independência na província (inclusive o levante dos Periquitos de 1824), e tiveram seu maior expoente ideológico em Cipriano Barata de Almeida. As revoltas liberais e federalistas de 1831 a 1833 deram continuidade ao movimento, que culminou na Sabinada. Não foi um movimento forçosamente republicano, embora não seja difícil apontar aspectos republicanos nele.
Para os seus integrantes, talvez, menos importava a forma do governo – monarquia ou república – do que os direitos dos cidadãos (já especificados no artigo 179 da constituição imperial, documento que parecia letra morta aos olhos do Novo Diário da Bahia), a autonomia provincial (base para uma união federalista brasileira na qual a Corte – Rio de Janeiro – não gozaria de todas as vantagens) e o domínio da sociedade baiana pelos aristocratas do Recôncavo. Enfim, queriam a liberdade ou as instituições liberais, conceitos amplos que enquadravam os anseios para uma sociedade mais justa, sem necessariamente implicarem uma república.
Saiba mais
Hendrik Kraay. Massacre em Salvador. Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em fevereiro de 2008.
Paulo Cesar Souza. A Sabinada: A revolta separatista da Bahia (1837), 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Luiz Vianna Filho. A Sabinada (a Republica bahiana de 1837). Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
Marco Morel. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de Letras da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2001.
Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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