Ao narrar a desventura sexual de uma donzela aristocrata com o criado de sua família, o filme ‘Senhorita Julia’ expõe estereótipo feminino e preconceito de classe no século XIX
Rodrigo Elias
Senhorita Julia (Fröken Julie).
Dir. Alf Sjöberg, Suécia, 1951.
When I cannot sing my heart
I can only speak my mind...
John Lennon (Lennon-McCartney), “Julia” en The Beatles (ou The White Album), 1968.
Julia não sabe o que quer. Ela é rica, bonita, de boa família, bem educada, refinada e, dentro de certos limites, libertária. Mas Julia, embora devesse, não sabe o que quer.
Durante a festa de solstício de verão, a jovem resolve se divertir com os subalternos. Um em especial, Jean, acaba se tornando alvo do seu interesse. Nascido e criado na propriedade rural do conde Carl, pai de Julia, ele sabe muito bem qual é o seu lugar dentro desta sociedade aristocrática do final do século XIX: deve obedecer aos seus superiores, mantendo a compostura que compete a alguém da sua classe inferior. Julia, entretanto, encarna as contradições de uma mulher da aristocracia: faz uso da sua posição para conseguir o que quer, mas, por ser mulher, é escrava de instintos sexuais ficcionalizados (ou seja, ela é o que chamaríamos hoje de “romântica”).
A fixação romântico-sexual de Julia por seu criado acaba sugerindo determinadas concepções sobre o que é ser mulher e o que é ser aristocrata na época em que o sueco August Strindberg escreveu a peça Senhorita Julia (1888). Montado desde então do oriente ao ocidente, o texto já foi filmado para a TV e o cinema, sendo esta versão cinematográfica do também sueco Alf Sjöberg, de 1951, a mais aclamada. Um dos grandes nomes do cinema de todos os tempos, Sjöberg levou duas vezes o prêmio principal em Cannes, inclusive por Senhorita Julia, embora tenha se dedicado prioritariamente ao teatro.
Os estereótipos de classe e gênero vão aflorando naquela noite insone regada a cerveja e vinho, na medida em que a tensão aumenta por conta da possibilidade de um desfecho dramático – a chegada do conde. Em um certo momento, ela, ciosa da sua posição, disfere, para persuadi-lo a fugir em sua companhia, agora uma moça desonrada: “Um criado é um criado.” Ele, de pronto, sentencia: “Uma puta é uma puta”.
Julia, embora em parte presa a comportamentos que seriam típicos do seu grupo social, é uma mulher – e isto, na cabeça dos homens burgueses bem educados do final do século XIX, significa ser guiado por uma concepção romântica deste tipo de ligação homem-mulher; ser homem, por seu turno, significa ter consciência sobre o caráter pragmático (ou social) destas mesmas ligações. Estes estereótipos remetem diretamente àquela concepção emergida no século XVIII, generalizada inclusive pelos romances ficcionais, que atribui ao gênero feminino uma maior susceptibilidade às emoções.
Padrões sobre o que devem ser homens e mulheres começaram a ser maciçamente divulgados no século XVIII. Naquele tempo, associavam-se a generalização do uso da palavra impressa e o efetivo surgimento de um público leitor. É neste mesmo contexto que surge o tipo de literatura ficcional que chamamos de “romance”. Este tipo de literatura vai incorporar uma nova retórica, a das sensibilidades, que estará profundamente marcada por valores morais relativos a sexo e lugar social. Esta retórica das sensibilidades, que terá nos romances o seu maior divulgador, esteve (e até certo ponto, está) amparada em uma nova representação que o homem fez de si mesmo na ordem do mundo – não mais teológica, mas propriamente humana, inclusive do ponto de vista físico.
Prisioneiros dos nervos
O século XVIII foi nervoso. Comumente simplificado como “Era da Razão”, foi, mais do que isso, uma descoberta da responsabilidade do homem sobre o seu destino e sobre o seu passado. Esta descoberta veio acompanhada de dois movimentos: em primeiro lugar, um mergulho no homem físico, em suas estruturas biológicas; em segundo, a constatação, ao longo de todo aquele século, de que o mundo é apreendido e reelaborado através dos sentidos. Detalhado pela primeira vez dentro de uma nova linguagem científica por Thomas Willis em 1664, o sistema nervoso humano extrapolou os interesses médicos e científicos e logo se tornou suporte discursivo para os atos políticos e literários. A estrutura nervosa humana serviu de base a um regime narrativo que definiu a relação entre escrita, leitura e ação no mundo entre os séculos XVIII e XIX. Se há razão em qualquer dimensão da vida no período, ela é resultado da naturalização de uma certeza: somos prisioneiros dos nervos.
O norte-americano George Rousseau, que tem se dedicado à história cultural do século XVIII, especialmente à interface entre literatura e conhecimento médico, propõe a existência do que chamou de uma “retórica dos nervos” no período. Percorrendo uma vastíssima literatura, principalmente inglesa, o historiador reconstrói o percurso e as apropriações feitas na linguagem científica e nas criações literárias do período da questão dos nervos. Estereótipos de classe e gênero, atitudes perante o corpo e o mundo, expectativas políticas e sociais vão precisar lidar com a grande invenção científica do período: a percepção e a análise (o tudo cognitivo) são processos neurofisiológicos.
A primeira grande clivagem desta retórica será a sua sexualização. Os nervos atuariam de maneira diferente em homens e mulheres – e a medicalização da sexualidade (notadamente a feminina) renderá tributos à associação entre o sistema nervoso e o dimorfismo sexual. Além disso, em um período de afirmação burguesa na Europa continental, ao longo de todo o século, os nervos também serão constituídos de acordo com o grupo social. Os balneários, as estâncias e todo um conjunto de tratamento neurológico (ou que supunha como tal) estarão disponíveis apenas para aqueles grupos cuja constituição nervosa será considerada mais delicada: os ricos e bem educados. Não é difícil notar esta segmentação social e de gênero no momento da emergência do romance (o que, aliás, se estenderá por outros períodos históricos): o público buscado é o das classes burguesas, e haverá também um certo direcionamento ao público feminino, o que pode ser visto inclusive na escolha das protagonistas das obras não apenas de Samuel Richardson, mas até mesmo na Juliet do marquês de Sade em Os 120 dias de Sodoma (1785). Mesmo Jane Austen, que a princípio rejeitará muito do que a ciência moderna consideraria simplificações na “teoria nervosa”, escreverá primordialmente para públicos bastante específicos. Este paradigma científico (médico-literário) que se estabelece no século XVIII não ficará imune às representações culturais no que dizem respeito às hierarquias sociais e de gênero em vigor – as distinções que até então precisavam ser justificadas por argumentos teológicos vão encontrar respaldo em uma suposta objetividade científica.
Esta verdade, construída ao longo de todo o século XVIII, está na raiz na própria exaltação da sensibilidade que veremos no programa dos românticos – um desdobramento a princípio imprevisto do programa “iluminista” de percepção do mundo através dos sentidos, que pode ser visto na Encyclopédie (1751). Assim, vemos a expansão e a apropriação de um princípio biológico-anatômico (divulgado na Inglaterra e no continente em dissertações médicas escritas em latim e em língua vulgar desde o início do século XVIII) pelo que pode ser chamado, com certas reservas, de “teoria social”, e uma difusão ainda mais significativa através de sua reelaboração literária.
A Julia de Rousseau
A obra mais significativa neste contexto de generalização de uma nova sensibilidade – que é, inclusive, paralela à própria emergência da subjetividade ocidental relacionada com a escrita e com as práticas de leitura – é de autoria do genebrino Jean-Jaques Rousseau. O nome da livro é Julia ou a Nova Heloísa, romance epistolar publicado em 1761. Trata-se da obra literária de maior circulação no século XVIII, através do qual se pôde observar não apenas uma nova relação entre obra escrita e público leitor, mas a própria construção da ficção romântica como elemento de difusão de um novo modelo de relação de gênero e, por conseguinte, de sociedade.
O modelo amoroso surgido e difundido ali é radicalmente diverso daquele próprio ao período anterior: a família conjugal (ou “elementar”, para Radcliffe-Brown), que agora se desenhava, pressupunha uma ligação forte entre um homem e uma mulher, uma vez que o modelo familiar extenso, com todos os vínculos de parentela, não se adequava a uma sociedade burguesa industrial. O laço mais forte deve ser entre o casal, e este amor é extremamente valorizado (logo este amor, dito “romântico”, que no período anterior era associado ao adultério). Dissolvida aquela sociedade de vínculos familiares extensos (pais, avós, tios, primos...), onde a mulher podia recorrer a vários indivíduos para garantir sua existência material, a única garantia de sobrevivência será dentro do casamento. Através de uma relação voluntária, esta invenção eminentemente inglesa que é a família conjugal necessita de um cimento ideológico – neste momento o amor terá um outro valor, uma vez que pode afiançar uma ligação vitalícia.
A história de amor narrada por Rousseau em formato de cartas em Julia teve um impacto inédito sobre leitores e leitoras. Um conjunto de cartas recebidas pelos editores e pelo próprio autor revela a relação que os leitores mantiveram com os personagens, especialmente sua protagonista. As desventuras da jovem, cujo destino trágico não turva sua existência virtuosa, despertou entre homens e mulheres os mais exaltados sentimentos. Esta literatura romântica epistolar, que tinha na verossimilhança um elemento de conexão com a “vida real” dos leitores, assume um papel ainda mais relevante quando o seu autor é Rousseau. Seus textos, ficcionais ou não, eram lidos como exemplos para a vida, o que dará a Julia um papel ainda mais destacado como modelo, do valor do sacrifício para que se mantenha uma existência “correta” – no caso, a realização plena do amor dentro do casamento. Como explicou Robert Darnton em um clássico estudo sobre a recepção de Julia, as cartas endereçadas pelos leitores do livro revelam a centralidade destes elementos: “amor, casamento, paternidade – os grandes eventos de uma pequena vida e o material de que a vida era feita em toda parte, na França.” Se Rousseau não foi o primeiro a causar “epidemias de emoção” na Europa, Julia fez com que os leitores quisessem – e tentassem, de fato – viver aquelas vidas.
A partir daí – desta identificação entre público e obra ficcional – desenharam-se as chamadas “patologias literárias”, uma série de efeitos na vida real a partir de reações aos romances. Os mais conhecidos destes efeitos são a “febre Werther” e o “bovarismo”, índices de uma psicogênese propriamente contemporânea relacionada aos modelos propagados pela literatura. Os suicídios “por imitação” que se sucedem à leitura do livro de Goethe ou o descolamento da existência “real” suscitado pela obra de Flaubert apenas confirmam o que já foi classificado como “recepção produtiva” de um texto literário, desencadeado pela Julia de Rousseau. Esta “norma”, uma espécie de elaboração e implantação de padrões sociais a partir de modelos literários, será observada durante todo o século XIX, a partir de velhos e novos romances, e a psiquiatria vai descrever esta decalcomania, que no limite chegava ao crime passional e ao suicídio. O texto literário, a partir da personagem rousseauniana, havia se tornado cosmografia, e as obras de grande impacto publicadas posteriormente, quando tratam da questão da virtude relacionada à questão do gênero e dos afetos, vinculam leitura e performance.
A Julia do filme
Strindberg ocupa lugar especial na literatura e na dramaturgia escandinavas da segunda metade do século XIX, ao lado de Hans Christian Andersen e Henrik Ibsen, e seu trabalho também está na raiz do teatro realista moderno, com seus questionamentos e suas críticas em relação à moralidade burguesa. Ele escreveu Senhorita Julia sob o impacto de uma conturbada relação com o grande amor da sua vida, a jovem baronesa (e atriz) Siri Von Essen, que tinha 24 anos quando ele a conheceu e ficou apaixonado. Julia, sua personagem, tal como retratada no filme de Sjöberg, é uma mulher de linhagem nobre que foge ao padrão reservado para o seu gênero e sua classe: sua mãe, de origem plebeia e encantada pelos ideais de “emancipação feminina” do final do século XIX, escapa ao controle do conde e impõe uma série de subversões na ordem da casa e da família. Julia é resultado destas subversões , e sua trajetória e destino revelam, em alguma medida, uma postura misógina do autor.
A mãe de Julia, a condessa Berta, foi educada segundo os princípios da liberdade e da igualdade das mulheres em relação aos homens. Era contrária ao casamento e não queria ter filhos – aliás, tenta o suicídio ao descobrir que estava grávida. Quando Julia vem ao mundo, os pais (por decisão da mãe) decidem que ela será o exemplo perfeito de que uma mulher vale tanto quanto um homem: é tratada ao longo da infância como um menino, é vestida como tal, cuida dos cavalos, ara a terra, mata bezerros, caça. Na propriedade da família, os homens passam a desempenhar (toscamente) as tarefas geralmente atribuídas às mulheres, como lavar roupas, fiar, cuidar da cozinha; as mulheres desempenham (impropriamente) as tarefas atribuídas aos homens, como recolher e transportar feno. A inversão de papéis quase resulta na ruína da fazenda.
O pai de Julia, então, se livra do “feitiço” feminista da sua companheira e permite que a menina seja o que se entende por menina, deixando, por exemplo, que ela brinque com a sua boneca. Quando o conde começa a agir dentro de uma “normalidade” esperada por seus iguais – como realizar uma recepção para que os seus pares reconheçam a sua união matrimonial – Berta paga um amante para pôr fogo na casa. O pai, ao tomar conhecimento da trama, tenta o suicídio – trata-se de um homem nobre, de constituição nervosa delicada.
A Julia de Sjöberg é a trágica contradição entre o modelo de virtude difundido pela Julia de Rousseau e a sua contestação supostamente feminista. Rompe o compromisso com o noivo de boa estirpe após humilhá-lo feito um cão; se envolve com um criado após renunciar o destino do amor marital “normal” preconizado para as mulheres da sua categoria; é tomada pelo arrependimento e pelo desespero quando a sua situação corre o risco de vir a público. A saída? O suicídio, sugerido pelo pragmático amante.
Outras Julias
Senhorita Julia continua sendo montada e filmada. Ao longo dos séculos XX e XXI, tem recebido atenção na Europa, na Ásia e nas Américas. Além da versão clássica, foi vivida na TV por Helen Mirren em 1972, voltou ao cinema em 1999 e terá mais uma versão na grande tela lançada em 2014, dirigida por Liv Ulmann e trazendo no papel título Jessica Chastain. Só em São Paulo, há atualmente duas montagens da peça em cartaz. Com ênfase em elementos distintos, do conflito interno a partir dos afetos às contradições políticas e sociais, a obra de August Strindberg continua a perguntar sobre o que esperamos da vida em sociedade.
Entretanto, há diversas Julias. Algumas ainda padecem das patologias literárias e buscam a conformação das suas vidas a partir de padrões que são externos – a própria idéia de vida enquanto projeto e realização, com uma agenda, no fim das contas é uma ficcionalização autobiográfica, uma tentativa de enquadramento narrativo de existências que só podem ser caóticas (e as inseguranças dos indivíduos em relação a futuros afetivos, profissionais ou econômicos talvez decorram um pouco disso). Estas Julias, que se parecem com as da ficção, escolheram ser aceitas.
Outras Julias, entretanto, talvez não se enquadrem nestes padrões. Talvez busquem na existência não um enquadramento a partir de expectativas (a repetição na vida de um texto já escrito), mas se movam sem um sentido teleológico, sem agenda, sem um preenchimento de vazios que foram criados a partir de modelos que lhes foram narrados. Estas outras Julias, as que se parecem mais com pessoas reais, escolheram viver.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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