quinta-feira, 23 de junho de 2016

As duas lógicas do Império



Luiz Carlos Bresser-Pereira
Fundação Getulio Vargas. São Paulo/ SP, Brasil

Durante algum tempo acreditou-se que a globalização significava o fim dos Estados-nação; na verdade era uma etapa do desenvolvimento capitalista no qual todo o globo terrestre tornava-se coberto pela unidade político-territorial que lhe é própria: o Estado-nação ou país. O "fim dos Estados-nação" era apenas a expressão ideológica do Império Americano, de sua hegemonia no plano das ideias políticas que, com o colapso da União Soviética, chegara ao seu auge nos anos 1990. Pensou-se também que as relações internacionais seriam agora presididas pelo "soft power" americano - pela transferência para o resto do mundo dos ideais do Estado de direito e da democracia dos quais os Estados Unidos seriam a materialização na terra; na verdade, na década seguinte ficou claro que o "hard power" presidiu as guerras e intervenções no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Somália, ao mesmo tempo que seu suposto portador distanciava-se cada vez mais desses ideais: suspendia a garantia dos direitos civis no seu próprio solo e transformava a democracia americana não mais em um exemplo positivo para o resto do mundo, mas em uma indicação do quanto a qualidade da democracia pode se deteriorar quando a sociedade perde seus valores e sua capacidade de combinar conflito com compromissos e conservar sua coesão.

Ao mesmo tempo que os Estados Unidos viam desgastada sua hegemonia, a China experimentava um desenvolvimento econômico sem precedentes na história e se tornava a segunda potencia mundial, e a Rússia, que nos anos 1990, subordinada ao "Oeste", entrou no mais grave processo de desorganização e retrocesso econômico de que tenho conhecimento, a partir do início dos anos 2000 se reorganizou politicamente e se recuperou no plano econômico. E os demais países asiáticos dinâmicos, particularmente a Índia, continuam a crescer aceleradamente e a realizar o catching up - o que significava menos poder para os Estados Unidos.

Desde o século XIX os Estados Unidos tiveram como "destino manifesto" comandar o resto do mundo pelo exemplo e pelo poder econômico. Nos anos 1990 esse destino pareceu realizar-se, e os Estados Unidos procuram assumir seu papel de "Hegemon" - o nome que seus ideólogos dão à sua "missão" imperial: estabelecer a ordem liberal e democrática no mundo, garantindo assim a "pax americana" - uma paz muito relativa, porque era o próprio Império que a transformava em letra morta e, por isso, se tornava para o resto do mundo não guardião de sua segurança, mas a fonte principal da sua insegurança. Podemos falar no Império Americano, mas mais apropriado é falar no Império Ocidental, ou simplesmente no Império ou no Ocidente, porque os Estados Unidos estão aliados às demais potências ocidentais entre as quais a Grã-Bretanha e a França, donas de um amplo passado imperial. É esse Ocidente que busca atender seus interesses ou exercer sua lógica sobre os demais países - os países em desenvolvimento - usando como instrumentos seu poder econômico, seu poder militar, a teoria econômica liberal ou neoclássica, o financiamento dos déficits em conta corrente, e o uso de todo o seu imenso aparato ideológico, em especial sua universidade, seu cinema e algumas de suas ONG.

A dominação imperial moderna obedece a duas lógicas: a lógica militar da segurança nacional e a lógica econômica da ocupação dos mercados. São lógicas que existem desde que, nos séculos XVI e XVII, começaram a se definir os primeiros Estados-nação. A lógica da segurança nacional foi durante muito tempo a mais importante, porque os grandes Estados-nação estavam sempre ameaçando uns ou outros de guerra e fazendo alianças ofensivas e defensivas para realizar ou evitar a guerra. Como a guerra se fazia contra os vizinhos, a teoria ou, mais precisamente, a estratégia das relações internacionais se confundia à geopolítica: estava amarrada ao território. A segurança nacional estava diretamente associada à geografia ou às fronteiras nacionais, e se expressava na garantia e ampliação dessas fronteiras, e no acesso às matérias-primas e às rotas de comércio. Seu objeto eram principalmente os outros países ricos, ainda que também envolvessem os países em desenvolvimento. Seu pressuposto era o de que a guerra entre as grandes potências era sempre uma possibilidade concreta - um pressuposto realista que permitia que cada país tornasse públicas suas políticas orientadas para a segurança natural.

No princípio, no quadro do colonialismo de 1850-1950, a lógica econômica tinha uma grande área de intercessão com a lógica da segurança nacional, e era fácil de ver. Com a independência das colônias da Ásia e da África, o Império muda suas estratégias, e sua lógica econômica torna-se mais complexa e menos clara para os povos dominados. Ainda que a exploração de recursos naturais estratégicos continue importante, ela é essencialmente a lógica da ocupação dos mercados internos dos países em desenvolvimento. O mercado interno é o ativo fundamental de cada Estado-nação, é o mercado com que contam suas empresas, e, portanto, é a base sólida sobre a qual se realiza seu desenvolvimento. Mas por isso mesmo é um ativo imensamente cobiçado pelo Império.

A ocupação dos mercados internos dos países em desenvolvimento pelos países ricos se realiza de duas maneiras: pela troca desigual (a troca de bens e serviços de alto valor adicionado per capita por bens e serviços de baixo valor adicionado per capita) e pelos investimentos das empresas multinacionais voltadas para seu mercado interno, que, na verdade, pouco contribuem para o desenvolvimento econômico na medida em que as entradas de capitais a que estão associados implicam a sobreapreciação de longo prazo da taxa câmbio e uma alta taxa de substituição da poupança interna pela externa.

É dentro desse quadro geral que Luiz Alberto Moniz Bandeira escreveu seu último livro, A segunda guerra fria - uma ampla análise da geopolítica americana com especial ênfase para o Oriente Médio, a Ásia Central e o Norte da África, embora também se interesse por toda a Eurásia cujo heartland está situado na Ásia Central constituída pelo Cazaquistão, a Armênia, a Geórgia, o Azerbaijão, o Quirguistão, o Tadjiquistão, o Turcomenistão, o Uzbequistão e a Sibéria Ocidental. Essa região é estratégica não apenas porque é dotada de grandes reservas de petróleo e de gás natural, mas também por sua localização central entre a Europa, a China e a Índia. Para sir Halford John Mackinder, em conferência pronunciada no início do século XX em Londres, o país que controlasse a Ásia Central teria condições de projetar seu poder em toda a Eurásia.

Grande parte dessa região estava sob o poder do Império Russo, mas, como era essencialmente dominada pela fé muçulmana, a União Soviética nunca logrou integrá-la, não obstante todos os seus esforços. Assim, quando a União Soviética entrou em decomposição, as nações dominadas se tornaram Estados-nação independentes. E se tornaram imediatamente um dos objetivos básicos da política americana de ocupação de mercados.

Mais precisamente, já no governo Carter (1977-1981), seu grande estrategista internacional, Zbigniew Brzezinski, reconhecia que a contenda entre os Estados Unidos e a União Soviética não era entre duas nações, mas entre dois impérios. Entretanto, parte da União Soviética estava localizada na Ásia Central, enquanto os Estados Unidos estavam muito distantes, em uma condição estratégica privilegiada por estarem defendidos por dois grandes oceanos, mas em uma posição que dificultava sua influência sobre a Ásia e, mais amplamente, sobre a Eurásia constituída pela Europa e a Ásia. Conforme nos conta Moniz Bandeira em seu notável livro, "Brzezinski induziu o presidente James E. Carter a abrir um terceiro front da Guerra Fria, instigando contra Moscou os povos islâmicos da Ásia Central" (p.33). Brzezinski acreditava que a guerra santa (Jihad) contra os soviéticos que haviam se instalado em 1979 no Afeganistão abria a oportunidade da intervenção americana em nome dos direitos humanos e da democracia.

É então que veremos o Império intervir no Afeganistão de uma forma que hoje pode parecer absurda; mas, afinal, o que é o absurdo para os impérios? Depois do ataque terrorista às torres gêmeas de Nova York, em 2001, o fundamentalismo islâmico seria identificado com o terrorismo e daria origem a uma guerra imperial preventiva, a "guerra ao terrorismo", que atingiu o Afeganistão e o Iraque nos anos seguintes. Mas nos anos 1980,

os Estados Unidos, sob a orientação de Zbigniew Brzezinski, encorajaram o ressurgimento do fundamentalismo islâmico, com o objetivo de desestabilizar a União Soviética a partir das repúblicas muçulmanas da Ásia Central. Foram a CIA, o Inter-Services Intelligence do Paquistão e o serviço de inteligência da Arábia Saudita que institucionalizaram o terrorismo em larga escala, com o estabelecimento de centros de treinamento no Afeganistão. (p.37)

Só alguns anos depois o terrorismo entraria na agenda do presidente Ronald Reagan (1981-1989) como nova ameaça a enfrentar.

Foi já no governo deste último que o governo americano adotou como estratégia de dominação o regime change para instalar em todo o mundo. Nos anos 1960 os Estados Unidos não hesitaram em apoiar os golpes militares na América Latina, porque viram nos regimes militares a garantia de que não haveria na região novas revoluções socialistas como acontecera em Cuba. Mas nos anos 1980 a União Soviética fora neutralizada, e a democracia se revelava a melhor garantia não para a ocorrência de revoluções socialistas, mas de revoluções nacionalistas que impusessem limites a ocupação dos seus mercados. Conforme nos informa Moniz Bandeira,

o Conselho de Segurança Nacional elaborou um projeto para a promoção da democracia e induziu o Congresso a criar, em 1983, o National Endowment for Democracy, com o objetivo de operar como parte do programa de diplomacia pública e financiar uma cadeia de organizações não governamentais e governamentais, relativamente autônomas, ajudando o treinamento de grupos de political warfare, e encorajar o desenvolvimento da democracia. (p.39)

A partir desse momento a democracia deixava de ser um regime político superior, deixava de ser uma conquista do povo contra o liberalismo das elites que identificava a democracia com a "tirania da maioria", deixava de ser um bem fundamental, para ser um instrumento de dominação do Império. Não importa que o país não estivesse maduro para a democracia, não importa que a democracia nos países pobres implicasse, na prática, o domínio de uma oligarquia. O que importa é diluir o poder nesses países e, assim, evitar que ocorram revoluções nacionalistas, não obstante nenhum país tenha até hoje realizado sua revolução nacional e industrial no quadro da democracia.

É por meio da definição das diretrizes maiores da política externa americana, que, nas setecentas páginas de seu livro, Moniz Bandeira monta o cenário no qual ele narra, com detalhe, as infinitas intervenções imperiais dos Estados Unidos no resto do mundo nos vinte anos seguintes ao ataque terrorista que sofreu: intervenção na Somália, na Argélia, intervenção "humanitária" em Kosovo, intervenção no golfo de Áden, nos países em torno do mar Cáspio, no Cáucaso, na Geórgia, na Ucrânia, no Afeganistão, no Egito, na Líbia. A construção de uma rede mundial de bases militares; o uso de mercenários contratados por grandes empresas privadas; a estratégia subversiva do professor Gene Sharp implementada pelo governo George W. Bush (2004-2009); a desestruração e violento retrocesso da Rússia sob o amigo Boris Yeltsin e sua recuperação sob a liderança do "inimigo", Vladimir Putin; a estratégia para desagregar a China; o subsídio da CIA ao Dalai Lama; a invasão do Iraque; a intervenção na Síria; o significado escatológico da Grande Síria para o islamismo e seu papel explicando a entrada na guerra civil de grupos jihadistas, incluindo a al-Qa'ida - o inimigo maior dos Estados Unidos.

A segunda guerra fria completa e aprofunda a questão do papel imperial dos Estados Unidos, iniciada em Formação do Império Americano (2005). Não cabe agora resenhar em detalhe essa grande história do presente e desse relato ponto por ponto do imperialismo americano, no qual ele revela um profundo conhecimento do mundo árabe e do mundo muçulmano, cujas origens e principais características estão discutidas no capítulo 21. Ele discute as guerras no Afeganistão e no Iraque, observando que a cold revolutionary war no Oriente Médio, na qual os Estados Unidos ainda se mantinham na legalidade a fim de capitalizar a opinião pública internacional, evoluiu pouco depois para a hot revolutionary war. "O objetivo dos Estados Unidos e das demais potências ocidentais era assumir o controle do Mediterrâneo e isolar politicamente o Irã, aliado da Síria, bem como conter e eliminar a influência da Rússia e da China no Oriente Médio e no Magreb" (p.372). Tudo, naturalmente, feito em nome da paz e da democracia. Conforme assinala Moniz Bandeira,
o presidente George W. Bush, no discurso do State of the Union, em 2 de fevereiro de 2005, após ufanar-se do resultado de sua política "in the spread of democracy" no Iraque e no Afeganistão, acentuou que os Estados Unidos, "to promote peace in the broader Middle East", deveriam confrontar países que continuavam a abrigar terroristas e buscar armas de destruição em massa. (p.372)

No processo de dominação imperial não bastam o poder econômico e o poder militar; é necessário também o poder ideológico, que o Ocidente já tem naturalmente, porque suas sociedades nacionais mais desenvolvidas são o ideal a ser alcançado. Dado esse fato, a hegemonia ideológica está assegurada, desde que os países em desenvolvimento não percebam que, para alcançar esse objetivo, a melhor forma não é simplesmente copiar as atuais instituições dessas sociedades, mas copiar as estratégias desenvolvimentistas que elas usaram para realizarem sua revolução nacional e industrial e se desenvolverem. Como nos países em desenvolvimento há políticos, líderes associativos e intelectuais que sabem desse fato, e defendem o nacionalismo econômico, o Império precisa de estratégias adicionais. Entre elas Moniz Bandeira assinala o papel desempenhado pelas ONG. Conforme ele nos diz,
ademais das intervenções armadas da OTAN - a carranca militar do cartel ultraimperialista das potências ocidentais, as chamadas organizações não governamentais constituíram uma das armas empregadas pelos Estados Unidos, com a colaboração da União Europeia, para promover a political warfare, mobilizando [na Primavera Árabe] multidões, com o pretexto de fomentar o desenvolvimento da democracia, o que significava regime change, i.e., derrubar governos e instalar regimes favoráveis aos seus investimentos e interesses estratégicos. (p.538)

No final dessa frase o historiador Moniz Bandeira menciona as duas lógicas do Império ou do Ocidente - a lógica da segurança nacional e a da ocupação dos mercados internos. Em seu livro as duas lógicas estão sempre presentes. Será que elas fazem sentido hoje? Elas faziam sentido no passado, porque o imperialismo e as colônias tinham legitimidade social? Será que fazem hoje, em um mundo global no qual não existem mais colônias formais porque os povos se libertaram, em um mundo no qual um grande número de países se tornou democrático e vê o imperialismo como condenável? Em um mundo no qual todos os mercados estão relativamente abertos?

Não acredito que a lógica imperial da segurança nacional faça hoje sentido. A lógica dos mercados está bem estabelecida no mundo, e nenhum país deixará de vender petróleo ou qualquer outro produto para os países ricos pelos preços de mercado. Um país em desenvolvimento só o faria se houvesse uma guerra entre duas potências, e ele estava associado a uma delas. Mas hoje a probabilidade de guerras entre grandes potências é mínima, senão zero. A lógica da geopolítica, que fazia tanto sentido no primeiro século do imperialismo moderno, no século do imperialismo britânico e francês (1850-1950), hoje já não faz sentido. Os custos de guerras para os grandes países são muito maiores que os eventuais benefícios. Por isso, estou convencido de que o imenso custo que hoje os Estados Unidos têm com suas bases instaladas em todo o mundo, com todo o seu aparato militar, e com todas as intervenções que realizam no mundo subdesenvolvido visando o regime change é um custo desnecessário. A guerra do Iraque deixou esse fato definitivamente comprovado. Por isso hoje muitos cidadãos americanos reprovam esses custos e essas guerras imperiais. Por isso o presidente Barak Obama, em 2013, teve apoio da opinião pública quando se recusou a iniciar a guerra contra a Síria e quando fez um primeiro acordo com o Irã.

Já a lógica econômica da ocupação dos mercados internos dos países em desenvolvimento continua a fazer todo o sentido para o Ocidente. As vantagens que esse Ocidente imperial obtém ao abrir seus mercados internos para suas exportações e garantir para si uma troca desigual são muito grandes. Mas provavelmente maiores são os ganhos que eles obtêm ao ocupar esses mercados com suas empresas multinacionais. Os investimentos dessas empresas pouco contribuem para o crescimento dos países em desenvolvimento, já que, devido à apreciação cambial que causam, existe uma elevada taxa de substituição da poupança interna pela externa. Na verdade, a maioria desses investimentos, que não trazem tecnologia nem contribuem para as exportações, é prejudicial aos países em desenvolvimento. Entre os países ricos, esse investimento não é prejudicial porque a parte do mercado interno que um país cede é compensada pela parte que o outro país cede. Mas nas relações de investimento entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento não existe essa reciprocidade.

Mas o Império vê suas duas lógicas como intrinsecamente ligadas, e, não obstante a resistência cada vez maior que os países em desenvolvimento fazem, não mudam suas políticas. Para terminar, ilustrando esse fato, cedo a palavra ao nosso notável historiador:
o inimigo visível/invisível, necessário ao complexo industrial-militar, continua o mesmo que o presidente George W. Bush havia reanimado para justificar o ataque ao Afeganistão: o terrorismo, configurado pela al-Qa'ida, o monstro Frankenstein como o denominou o general Pervez Musharraf, ao acusar os Estados Unidos, a Arábia Saudita e seu próprio país, o Paquistão, de havê-lo criado. (p.599)

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getulio Vargas (SP). @ - bresserpereira@gmail.com
Revista Estudos Avançados

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