O outrora refúgio serrano da realeza: 342 mil visitantes no ano passado / Foto: Ibram-Museu Imperial
Petrópolis, 15 de novembro de 1889. Alertado pelo telégrafo do palácio imperial de que uma sublevação militar afrontava o governo nas ruas do Rio de Janeiro, dom Pedro II deixou a cidade serrana às pressas, de trem, confiante de que bastaria uma boa conversa com o líder rebelde, marechal Deodoro da Fonseca, para apaziguar os ânimos e reconduzir a tropa à caserna. Ele estava redondamente enganado: a quartelada resultaria na instauração da República – desfecho inesperado não só para o imperador, mas também para muitos revoltosos. Dois dias depois, a família imperial rumava exilada para a Europa e a monarquia era página virada na história brasileira.
A memória dos tempos monárquicos perdura, porém, no palácio onde nunca mais o segundo imperador do Brasil colocaria os pés, morto em dezembro de 1891, em Paris. Desde 1943, o refúgio serrano frequentado pelo dono da coroa durante quase todo o seu reinado abriga o Museu Imperial, o mais visitado dos 29 estabelecimentos do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). De alternativa residencial a 60 quilômetros do calor, da agitação e dos problemas da corte, no Rio, o antigo Paço de Petrópolis, como era conhecido, foi alçado pela República à condição de referência nacional quando o assunto é Império.
O museu recebeu 342 mil pessoas em 2014, incluídos os visitantes do palácio e aqueles que participaram de atividades fora do prédio. Responsável por mais de um terço do público de todos os museus federais, o Imperial reina inconteste nas estatísticas do Ibram, seguido de longe pelos museus da Inconfidência, em Ouro Preto (MG), e o Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. O registro da visitação do museu petropolitano em 2015 indica que a procura segue em alta: somente no feriado de Corpus Christi, de 4 a 7 de junho, 9,3 mil pessoas passaram por ali, superando em 50% o movimento de igual período de 2014.
A quantidade de visitantes no ano passado, assinala o diretor do Museu Imperial, Maurício Vicente Ferreira Júnior, é maior do que a população de Petrópolis, estimada em 298 mil habitantes pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao mesmo tempo em que se constitui em referência da memória monárquica e da formação do estado nacional, assentado sobre a escravatura e a cafeicultura de exportação, o museu atiça o fascínio generalizado entre os brasileiros por dom Pedro II e pela vida aristocrática do Segundo Reinado. “As pessoas têm uma curiosidade enorme de saber como vivia o imperador”, observa Ferreira Júnior.
Pela diversidade do público, vindo de todas as classes sociais, o Museu Imperial combina a exposição de seus salões e de seu precioso acervo de móveis, objetos e obras de arte a várias atividades lúdicas e educativas no prédio principal, na parte externa e em instalações anexas. Ao longo do ano, a programação inclui mostras temporárias, dramatizações com música dos tempos imperiais, leituras pedagógicas na biblioteca infantil, visitas guiadas para escolares e apresentação do espetáculo Som e Luz, megaprodução que mobiliza efeitos especiais para recontar, fora do antigo paço, episódios e curiosidades daquele período.
“Procuramos contemplar a diversidade da sociedade, com uma gama de atividades que atendem tanto o Ph.D. quanto um indivíduo sem instrução formal”, esclarece o diretor. “É fundamental que o público entenda que o Museu Imperial é de todos os brasileiros.” O visitante típico chega em família – pai, mãe, dois ou três filhos. A procura infanto-juvenil é outro fato marcante: em 2004, guiados por monitores do museu, 70 mil estudantes em grupos conheceram o palácio e seu acervo. Na maioria, eram alunos de escolas dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul.
Gosto pela astronomia
O acervo do museu em Petrópolis reúne 300 mil itens, incluindo as peças museológicas expostas e conservadas na reserva técnica, coleções de registros documentais, livros e periódicos. O mobiliário, as peças decorativas e funcionais e as obras de arte são atrações no antigo paço, enquanto veículos à tração animal do século 19 são expostos numa edificação ao fundo, onde funcionava a ucharia – cocheiras, armazém de mantimentos, depósito de ferramentas e lugar de acomodações de escravos, cocheiros e outros trabalhadores. A essas construções somam-se outras, como o prédio do arquivo histórico, as instalações da biblioteca e uma concha acústica.
A peça mais concorrida é a coroa de dom Pedro II, de ouro cinzelado, ornada com 640 brilhantes procedentes de Minas Gerais e 100 pérolas – uma relíquia de dois quilos confeccionada pelo joalheiro da Casa Imperial, Carlos Marin, para a coroação e sagração do imperador, em 1841. Comprada pelo governo republicano em 1931, a obra estava num cofre do Tesouro Nacional, desde a Proclamação da República, de onde saiu em 1943 para ser exibida em Petrópolis. A de dom Pedro I, de 1,8 quilo, também de ouro cinzelado, está exposta, mas sem as pedrarias originais, aproveitadas na coroa do filho.
Na ritualística do poder monárquico, a coroa era usada somente em situações especiais, como a Fala do Trono – pronunciamento com que o monarca abria e fechava os trabalhos legislativos da Assembleia Geral. Nessas ocasiões, trajando indumentária de gala, dom Pedro II cobria-se com o manto imperial e empunhava o cetro – peças que podem ser vistas no museu. De veludo verde, com ramagens, estrelas e serpentes bordadas a ouro, o manto possui murça composta por penas de tucano e também foi feito para a coroação. O cetro, com 2,5 metros e 2,5 quilos, é decorado com ouro e brilhantes e encimado pela figura de um dragão, símbolo da dinastia portuguesa dos Bragança, a ascendência do imperador. O nome completo de dom Pedro II era quilométrico: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Bourbon.
O Museu Imperial reproduz vários cenários da rotina do monarca. Exemplo é a sala de Estado, que reconstitui o ambiente do Paço de São Cristóvão onde dom Pedro II despachava com ministros, parlamentares, diplomatas e outros visitantes ilustres. Assim como o assento imperial, talhado em dourado e forrado com veludo verde, procederam também do palácio carioca os jarros de porcelana de Sèvres com pinturas das quatro estações e imagens do imperador e de dona Teresa Cristina, e os consoles com grandes espelhos da sala.
Outro ambiente que foi caro ao filho de dom Pedro I é o gabinete de trabalho, disposto no museu à semelhança do que existia no Paço de São Cristóvão, sua residência oficial. Nesse aposento, ele passava horas lendo, escrevendo cartas a amigos e estudando ciências e idiomas. Sobre a escrivaninha exposta no museu está o primeiro aparelho de telefone usado no país, trazido dos Estados Unidos pelo monarca, em 1876, e usado na Fazenda Imperial de Santa Cruz, no Rio, para comunicação com São Cristóvão. O gabinete também preserva, além do mobiliário de época, o telescópio com que dom Pedro II, aficionado em astronomia, observava o céu.
Na sala de jantar, arrumada como se estivesse à espera dos comensais, o mobiliário em mogno, assinado por um marceneiro e tapeceiro francês radicado no Rio de Janeiro, é o mesmo que a família imperial usava em São Cristóvão. A sala de música, onde o imperador e as princesas promoviam saraus e recitais, tem como destaques uma harpa dourada Pleyel Wolff, um piano inglês do início do século 19, que teria sido de dom Pedro I, e um espineta (instrumento semelhante ao cravo) – raridade fabricada em Portugal, no século 18.
O sucesso do Museu Imperial é associado pela antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz ao anseio de nobilitação do passado que perdura no imaginário brasileiro. Professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora de As Barbas do Imperador – Dom Pedro II, um Monarca nos Trópicos (Companhia das Letras), ela lembra que o fenômeno foi assinalado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda no ensaio “O Pássaro e a Sombra”, de 1972. “O museu é uma ilha importante de nossa história”, ela diz, “mas é preciso entender de forma crítica e ver o que está e o que não está no palácio” – no caso, o império periférico que só aboliu a escravidão em 1888. Lilia destaca também o valor inestimável da papelada oficial conservada em Petrópolis.
Obras raras
Os mais de 200 mil documentos sob a guarda do Museu Imperial fazem de seu arquivo histórico um dos mais importantes do Brasil. Especializado em registros relacionados ao Império, o arquivo também preserva documentação que remonta ao século 13 e chega ao 20. Uma característica peculiar do acervo, que abrange muitas doações particulares, é sua complementaridade em relação a documentos públicos de instituições como o Arquivo Nacional e o Arquivo Histórico do Itamaraty. O do museu possui também valiosas coleções de imagens que retratam, desde os primórdios da fotografia, a cidade de Petrópolis, o Rio de Janeiro e o país.
Para os pesquisadores e outros interessados na história brasileira, o museu mantém mais de 50 mil volumes em sua biblioteca, instalada num prédio moderno nos fundos do antigo paço. O carro-chefe do acervo é composto por obras dos séculos 18 e 19, incluídas oito mil obras raras. Aos livros somam-se jornais, revistas, almanaques, partituras, relatórios das antigas províncias e ministérios e coleção de leis do Império. Entre as preciosidades estão obras dos séculos 16 a 18 e outras que pertenceram à família imperial, enfeitadas com iluminuras, e volumes que guardam anotações de leitura feitas por dom Pedro II.
A construção do palácio imperial está na origem da criação de Petrópolis e tem como ponto de partida um decreto assinado em 16 de março de 1843 por dom Pedro II, aos 17 anos. O imperador havia sido guindado ao trono três anos antes pelo golpe da maioridade – movimento em que conservadores e liberais se uniram para entregar o governo ao príncipe adolescente, em nome da centralização do governo contra revoltas sociais que espocavam nas províncias. O decreto foi preparado pelo mordomo da Casa Imperial, Paulo Barbosa da Silva, um dos palacianos que militaram ativamente na campanha da maioridade, conhecidos como áulicos.
O decreto arrendava a fazenda legada a Pedro II pelo pai – a Córrego Seco, comprada em 1830 – ao major de engenheiros Júlio Frederico Koeler, como forma de converter a herança em fonte de renda fundiária. Ao arrendatário competia estabelecer uma povoação, “aforada a particulares”, e reservar “um terreno suficiente para nele edificar um palácio para mim, com suas dependências e jardins”, determinou o imperador. Ele também delegou a Koeler a tarefa de demarcar, para doação, “um terreno para nele se edificar uma igreja com a invocação de São Pedro de Alcântara” e para a construção de um cemitério.
O sonho do palacete de verão nos arredores da Corte havia sido herdado de dom Pedro I, que conhecera a região em 1823, quando viajou a Minas Gerais para selar apoios políticos à Independência. Comprada a Córrego Seco pela Superintendência das Imperiais Quintas e Fazendas, o primeiro imperador quis erguer no lugar o Palácio da Concórdia, em alusão à harmonia com que tencionava pôr fim à turbulência do país recém-emancipado. O arquiteto dos paços imperiais, Pedro José Pezerat, chegou a riscar o projeto da obra, que ficou no papel porque o monarca, sob pena de perder a coroa portuguesa, abdicou do trono brasileiro em nome do filho e foi para Lisboa, em 1831.
Com outro projeto, traçado por Koeler, o Palácio Imperial seria construído entre 1845 e 1862, custeado com recursos da dotação pessoal de dom Pedro II. Mas, para que o sonho se tornasse realidade, o Estado havia dado ajuda providencial em 1840, livrando a fazenda das mãos de credores do primeiro imperador, que morrera cheio de dívidas, seis anos antes, em Lisboa. Por iniciativa do deputado conservador Honório Hermeto Carneiro Leão, mais tarde Marquês do Paraná, o legislativo aprovou o dispêndio de 14 contos de réis para o resgate da propriedade, como presente a dom Pedro II pela maioridade precoce.
O palácio, de estilo neoclássico, começou a ser erguido pela ala direita, numa elevação do terreno que centralizaria o núcleo urbano de Petrópolis, denominado de Vila Imperial. Com a morte de Koeler, em 1847, o italiano Cristóforo Bonini agregou ao projeto um pórtico com colunas coríntias e jônicas encimadas pelos brasões dos Bragança e do Império. Na construção do corpo central, com dois andares, e da ala esquerda, uniram-se três arquitetos da Academia Imperial de Belas Artes – Joaquim Cândido Guillobel, José Maria Jacinto Rebelo e Manuel de Araújo Porto Alegre, que respondeu pela decoração.
Aquarela inédita
Aos olhos da nobreza europeia, assim como da elite nacional que enriqueceria com o café e se mirava no fausto da aristocracia francesa, o paço petropolitano era tido como demasiadamente acanhado e austero para um imperador. Seu piso alvinegro na entrada foi composto, porém, com mármore da italiana Carrara e da Bélgica, enquanto seus assoalhos e esquadrias usaram madeiras de lei – cedro, jacarandá, pau-rosa, vinhático – de várias florestas do Império. No pé-direito alto, as salas e os quartos ganharam decoração simples, mas elegante, com destaque para relevos em estuque que ornamentam tetos e paredes.
Para compor o jardim, dom Pedro II valeu-se do botânico francês Jean Baptiste Binot, em 1853, que combinou espécies nativas e exóticas num ambiente de biodiversidade em que magnólias e jaqueiras convivem com bananeiras de Madagascar e palmeiras australianas. Nesse cenário, Binot dispôs estatuetas de figuras da mitologia grega e uma bica d’água que ficaria conhecida como a Fonte do Sapo, onde, reza a lenda, o imperador costumava matar a sede. O também francês Auguste Glaziou, afamado por suas obras paisagísticas na Corte, daria seu toque no jardim anos depois, mas não promoveria grandes alterações no projeto original.
Sem esperar o término da obra, dom Pedro II tratou logo de ocupar o palácio, em 1849. Três anos depois se daria ali uma reunião social, por certo a primeira em que o imperador, aos 26 anos de idade, proporcionaria a seus convivas um sarau de indelével encantamento, registrou o idealizador e primeiro diretor do Museu Imperial, Alcindo Sodré, ao descrever, na edição de 1940 do anuário do museu, a relação do monarca com Petrópolis. O imperador e a família desfrutavam de longas estadas no refúgio serrano, onde dom Pedro II dedicava-se a estudos de ciências, hebraico e árabe, despachava e recebia visitantes.
Pela assiduidade das estadas imperiais na serra, o palácio ambientou incontáveis episódios marcantes do Segundo Reinado. Em 13 de maio de 1888, um ano e meio antes de o imperador receber a notícia da revolta que redundaria na República, foi do Paço de Petrópolis que a princesa Isabel saiu, após almoçar com os filhos, para ir de trem ao centro do Rio a fim de sancionar a Lei Áurea, aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado. Encerrada a cerimônia, com o Paço da Cidade (atual Paço Imperial, na Praça 15) cercado pela multidão em festa, a regente do país subiu a serra a tempo de jantar com a família no palácio.
À princesa Isabel caberia o Paço de Petrópolis como herança após a morte do imperador, em 1891, na cidade de Paris. Ela alugaria o imóvel, de 1893 a 1908, às religiosas de Notre Dame de Sion, que instalaram no local um educandário para filhas da elite republicana. De 1909 a 1939, o prédio abrigou outro colégio católico, o São Vicente de Paulo. Nesse ano, o palácio foi comprado pelo Estado para ser doado ao governo federal a fim de sediar o museu – ideia que Alcindo Sodré, ex-aluno do São Vicente, martelava nos ouvidos do presidente Getúlio Vargas durante as frequentes estadas presidenciais em Petrópolis.
Getúlio oficializou a criação do Museu Imperial em 29 de março de 1940 por meio de decreto-lei, e ele passou a ter, entre suas atribuições, “recolher, ordenar e expor objetos de valor histórico ou artístico referentes a fatos e vultos dos reinados de dom Pedro I e, notadamente, de dom Pedro II”. Nomeado diretor, Sodré supervisionou a restauração do prédio, executada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, precursor do Iphan), e se lançou, com uma equipe de técnicos, à busca, em palácios e repartições públicas federais, de objetos que haviam pertencido à família imperial.
Na reconstituição de ambientes do palácio e na identificação de peças que o ornamentavam, Alcindo Sodré teve a ajuda de Manuel Augusto Velho da Mota Maia, filho do médico do imperador, Conde da Mota Maia. Pai e filho haviam integrado a comitiva que acompanhou a família imperial rumo ao exílio. Sodré também instalou a biblioteca e o arquivo histórico, que receberiam depois documentos e livros de herdeiros da princesa Isabel. A essas doações o museu juntaria muitas outras, abarcando obras de arte, objetos e registros documentais de colecionadores como os magnatas Guilherme Guinle e Lineu de Paula Machado e o banqueiro e historiador Tobias Monteiro.
O museu abriu as portas em 16 de março de 1943, no centenário de Petrópolis, inaugurado por Getúlio. Possuía acervo modesto, se comparado com o volumoso conjunto de móveis, quadros, esculturas, objetos decorativos variados, documentos e material bibliográfico que seria formado nas décadas seguintes. A maioria desses bens procedeu dos paços imperiais do Centro, São Cristóvão e Santa Cruz, no Rio de Janeiro, e de instituições como o Itamaraty, Tesouro Nacional, Casa da Moeda, Museu Nacional e Palácio do Catete, sede da Presidência até 1960. E, além das doações de colecionadores, antigas peças da família imperial foram adquiridas em leilões.
A mais recente aquisição, arrematada numa casa de leilões de Paris, é um retrato de dom Pedro II em creiom, de 1841, posto à venda por herdeiros remotos da princesa Isabel. A obra, acredita o diretor do museu, foi um estudo para a cunhagem, não realizada, de moeda alusiva à coroação do imperador. O museu também segue recebendo doações – a última, em julho, foi a caderneta de viagem do inglês William Rickford Collett, com anotações de sua passagem pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais, em 1948. Doada pelos herdeiros, a obra inclui um aquarela inédita da construção do Paço de Petrópolis.
FRANCISCO LUIZ NOEL
Revista Problemas Brasileiros
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