terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Cultivando diferenças

 Tela de Kandinsky / Foto: Reprodução

  LUIS DOLHNIKOFF

A partir da última grande debacle da economia internacional, entre 2008 e 2009, que foi, inicialmente, uma crise provocada pela supervalorização imobiliária nos Estados Unidos (o chamado “estouro da bolha”), decorrente do excesso de crédito e resultado, por sua vez, da escassez de controle do sistema bancário, reinstalaram-se com mais clareza a divisão e o antagonismo de classes. Ou eles voltaram a se tornar mais evidentes, depois de anos de consumo fácil no início do novo século (nos países centrais, principalmente, mas também no Brasil, ainda que por mecanismos diversos). Com a crise, quem tinha menor renda empobreceu (pela desvalorização dos imóveis, em função da inadimplência, e pela diminuição subsequente do consumo, o que por sua vez incrementou o desemprego); e quem possuía renda maior enriqueceu, pelo aproveitamento das novas oportunidades e do próprio sistema financeiro.

As decorrentes crises europeias em Portugal, na Espanha e, principalmente, na Grécia são as manifestações mais claras dessa situação (a atual crise brasileira, infelizmente, e por mais que o governo teima em dizer o contrário, é de fabricação própria). Tudo isso resultou em uma nova clareza, ou em uma recente reclarificação, de que a vida econômica, política e social é regida e marcada por uma incessante disputa pela alocação de recursos sempre relativamente escassos – porque sempre limitados, não importa a riqueza do país.

Se tudo isso, entretanto, tornou-se matéria de primeira página dos jornais, e não apenas dos cadernos econômicos, a questão é de como a cultura – no sentido étnico e de produção e consumo de bens culturais – pode definir, municiar e reforçar as divisões entre os grupos sociais (e, portanto, suas disputas), sejam de classe, gênero ou etnia, entre outros, foi relegada a um plano relativamente secundário. O lançamento em português de uma obra já clássica da sociologia cultural (apesar de recente), Cultivando Diferenças – Fronteiras Simbólicas e a Formação da Desigualdade, organizado por Michèle Lamont e Marcel Fournier (São Paulo, Edições Sesc, 2015), pela amplitude e profundidade de seus doze ensaios, consegue o raro feito de, por si só, diminuir enormemente uma importante lacuna para a compreensão do que se poderia chamar de a grande crise contemporânea.

Clareza de exposição

Pois apesar de se tratar de uma crise feita de crises, como a financeira, a ambiental, a geracional (o relativo envelhecimento da população), a previdenciária (ligada à anterior), a de obsolescência da mão de obra pelas novas tecnologias, a de representatividade dos velhos partidos e das velhas ideologias e da própria democracia (e aqui a crise brasileira se aproxima das demais), todas elas podem ser compreendidas, e, na verdade, só podem ser compreendidas, como o resultado agudo ou agudizado, pelas circunstâncias atuais, da perene disputa entre os vários grupos sociais pela alocação de recursos. E uma das armas dessa disputa é a cultura, entendida tanto sociologicamente (etnicidade), quanto como produção cultural. Para o bem e para o mal, a cultura cultiva as diferenças grupais (enquanto é cultivada por elas). Compreendê-la é, portanto, fundamental para entender a crise contemporânea.

O livro é um conjunto de textos escritos por alguns dos mais importantes acadêmicos europeus e norte-americanos da área. Dito assim, pode parecer desestimulante. Mas a verdade é o oposto: todos privilegiam a clareza de exposição, para não falar do insuperável interesse de seus temas. Começando pelo final, e por aquele que talvez seja o texto mais instigante do livro: “Democracia versus Sociologia – Fronteiras e suas Consequências Políticas”, de Alan Wolfe, apesar de seu título longo e algo abstrato, é um sintético e iluminador ensaio sobre uma das principais questões da época, que envolve desde a discussão do sistema de cotas até separatismos como o da Catalunha – embora o texto não os discuta diretamente; ele trata, de fato, das relações entre o universal e o particular. Como defender os direitos individuais (além dos locais e grupais) e, ao mesmo tempo, os que são universais (ou deveriam ser universalizados)?

O universalismo dos direitos necessita sempre agredir a autonomia (e, portanto, a liberdade) do indivíduo e do grupo? A autonomia do grupo e do indivíduo é necessariamente avessa à universalidade dos direitos? Grupos de grupos majoritários (como bairros brancos nas cidades americanas) têm eventualmente direito de defender o que julgam seus direitos? Grupos de grupos minoritários (como os negros nessas mesmas cidades) têm sempre, a priori, o direito de afirmar o que consideram os seus? As diferenças devem sempre ser valorizadas? Os particularismos podem ser uma ameaça? Eles precisam, afinal, ser defendidos e reforçados, ou negados e transpostos? Idealmente, ambos... Trata-se, enfim, de como lidar com demandas que, para além das ideias feitas e das ideologias, demonstram ter méritos tão inquestionáveis quanto à primeira vista inconciliáveis. Uma das questões mais complexas, controversas e fundamentais da época, que o texto aborda com profunda lucidez.

Material empírico

Nesse sentido, ele é uma síntese do livro – que trata de temas centrais do campo minado ideológico dos debates culturais e políticos (ou seja, sobre políticas) sem concessões a nenhum argumento e a nenhum lado, através da reafirmação da racionalidade da discussão, apoiada em vasto material empírico. O resultado é maior do que a soma das partes, como indicam os títulos das seções: “A Institucionalização das Categorias Culturais”, “Alta Cultura e Exclusão”, “Recursos para a Demarcação de Fronteiras: O Caso do Gênero e da Etnicidade”, “A Exclusão e a Organização Política”.

A abrangência de temas em torno do tema central do livro permite desde um ensaio que parece escrito para a atual situação político-ideológica brasileira (“Cidadão e Inimigo como Classificações Simbólicas: O Discurso de Polarização da Sociedade Civil”, de Jeffrey Alexander) a outro que aborda de forma esclarecedora uma das mais esquivas questões da arte moderna: a pintura abstrata (“O Público para a Arte Abstrata: Classe, Cultura e Poder”, de David Halle). Mais uma vez, como no caso de “Democracia versus Sociologia” (e das próprias seções do livro), o texto é melhor do que o título. Pois enquanto um parece geral e abstrato (com perdão do trocadilho), o outro é específico e concreto, pontuado por vários insights. O mais importante e surpreendente (ou talvez não) é o que demonstra, por entrevistas criteriosamente representativas, estarem as mais consagradas generalizações sobre o público de arte abstrata equivocadas (relacionando-a ao “capital cultural” das classes altas, por envolver educação superior e formação estética, que por sua vez reforçariam seu “capital social”).

Enquanto os principais pintores abstratos, como Mondrian e Kandinsky, “[alertaram] contra produzir obras que são mera decoração”, demonstra-se que os mais sofisticados consumidores de pintura abstrata, representados pela elite material e cultural do Upper East Side, de Manhattan, vizinhos e frequentadores de “quatro dos mais importantes museus de arte do mundo” (MoMA, Guggenheim, Whitney e Metropolitan), gostam de arte abstrata por ser decorativa. O que não parece muito mais complexo do que os representantes de classes operárias também entrevistados, que não gostam dela por não ser figurativa.

“‘O domínio da vida social é essencialmente um domínio de diferenças’ [Marcel Mauss]: [...] um dos desafios mais importantes que encaramos hoje é compreender como criamos fronteiras e quais as consequências sociais de tais ações”. Após 11 de setembro de 2001 e, mais ainda, após 2008, um mundo que parecia caminhar para o fim das fronteiras (cujos exemplos maiores são a queda do Muro de Berlim e a criação da União Europeia), tanto geopolíticas quanto socioeconômicas e culturais, reverteu seu rumo. Cultivando Diferenças – Fronteiras Simbólicas e a Formação da Desigualdade tornou-se, infelizmente, mais atual e mais importante.
Revista Problemas Brasileiros

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