Ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas UPPs impôs aos moradores um estado de exceção
Vinicius Esperança
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), política desegurança pública implantada no Rio de Janeiro desde 2008, representam uma nova forma de ocupação do território por agentes do Estado. Trazem em seu conceito a ideia de presença policial permanente, associada a algumas práticas de policiamento comunitário. Seu objetivo principal seria a retirada das armas e a repressão ao tráfico de drogas. Mas o que se observa é que essa política de ocupação inclui o controle moral da vida e do cotidiano dos moradores.
No processo de ocupação do Complexo do Alemão pelo Exército (2010 a 2012), e posterior implantação de seis UPPs na região (quatro dentro deste conjunto de favelas), duas situações simbolizam as tensões provocadas por essa estratégia: a negociação para liberação de eventos culturais e as abordagens policiais àqueles que têm “atitudes suspeitas”.
Produtores culturais locais tiveram que negociar com policiais militares a liberação ou a recusa de eventos envolvendo bebida e música, em especial os bailes funk. A polícia se utiliza deste dispositivo para controlar os espaços e as relações sociais da comunidade. Ao atribuir qualidades morais a eventos, comportamentos e tipos de festa ou música, a polícia torna-se gestora moral da vida social da favela. Quando esta situação é questionada, surge o argumento de que há situações que podem ser permitidas em outros lugares, mas não lá – o que caracteriza a aplicação da lei em estados de emergência ou exceção.
O controle dos eventos passou a ser usado pela PM como moeda de troca. “Caso se comportem e sigam as regras, permito; se não, proíbo tudo”, afirmou um comandante da UPP Nova Brasília, em abril de 2013. Fica evidente que o comando da UPP se apresenta como um regulador de questões que vão muito além do policiamento. Não existem, nos regulamentos internos, normas para dar um mesmo padrão aos procedimentos policiais. Cabe ao comandante – que a esta altura é um gestor da favela – decidir aquilo que é permitido ou não. As decisões passam a depender de seu gosto pessoal por determinado tipo de evento. Na fala dos comandantes e policiais, o baile é visto como local da desordem, da prostituição e das drogas – onde o tráfico mantém consagrado o seu domínio.
Ao negociar politicamente a permissão ou a proibição dos eventos, a polícia exerce uma nova ordem jurídica, segundo a qual certos indivíduos são submetidos a leis próprias daquele território, e uma forma particular de regulação do cotidiano é exercida através do comando da UPP. O comandante se torna o soberano, a incorporação da própria lei: ele a cria, executa e pune o seu descumprimento.
A expressão “atitude suspeita” se aplica principalmente a homens reunidos em grupo, em bares ou esquinas (“de vagabundagem”, nas palavras de um soldado), ou a homens que se assustam ou baixam o olhar quando veem a aproximação de um grupo de policiais. Incontáveis abordagens policiais a indivíduos em “atitude suspeita” reforçam o ambiente de tensão. Nas patrulhas pelos becos e pelas vielas de comunidades como Nova Brasília, Alemão, Coqueiros e Alvorada, as abordagens são feitas de forma rápida, seca e objetiva. Poucas vezes acompanhadas de qualquer saudação ou de um “obrigado” após o procedimento. Todas têm como alvo homens, a maioria entre 15 e 35 anos, de pele parda ou negra. Boné e mochila são um bom motivo para revista. Os “suspeitos” são colocados contra a parede, tiram seus bonés, abrem suas mochilas. Muitos são “conduzidos” à delegacia para o SARC (procedimento para verificar se o indivíduo possui ficha criminal ou tem mandado de prisão em aberto).
Qualquer evento ou atendimento deve ser registrado e assinado pelos policiais envolvidos: o Termo de Registro de Ocorrência (TRO) é arquivado em cada unidade, inacessível ao público. Pelo menos duas centenas de TRO analisados no Complexo do Alemão terminaram com o suspeito liberado por não constar nada contra ele.
É nesta situação em que melhor se percebe a violação da lei perpetrada pelo agente da lei, em nome da lei, de forma violenta, abusiva e extrajudicial. Confirma-se dramaticamente a hipótese de uma nova ordem jurídica, na qual leis especiais são aplicadas a determinados indivíduos, num território sob estado de exceção. A ação do agente policial se dá ao mesmo tempo dentro e fora da lei. Fora da lei quando conduz sob custódia o indivíduo sem flagrante ou mandado de prisão, mas dentro da “lei” que se aplica àquele território. O procedimento é tão naturalizado que o policial ignora o conhecimento que tem da lei, ou desconsidera a lei, e os abordados reagem com irritação ou medo, mas também não questionam a legalidade da ação. A polícia e os indivíduos, mesmo debaixo dos protestos de alguns – especialmente ligados a ONGs, entidades defensoras dos Direitos Humanos ou intelectuais – convivem numa prática em que se espera que a regulação do cotidiano seja executada através de uma ordem jurídica própria.
Enquanto nas abordagens o agente do Estado suspende a lei em nome da “lei” e da segurança, nas negociações para a liberação de eventos, a atuação policial é paternalista e pretensamente civilizadora, imbuída da missão de gerir a moral e os costumes das populações faveladas.
Desde 2013, o projeto das UPPs, inicialmente aclamado como a grande solução para o problema da segurança pública em território nacional, entrou numa profunda crise interna e externa. Aumentaram os confrontos armados entre policiais e traficantes nas favelas com UPPs, onde arrefeceu o tráfico de drogas – que, de fato, nunca deixou de existir nessas localidades. A violenta ação policial ao longo das manifestações populares acontecidas a partir de junho, assim como na greve dos professores municipais no mesmo ano, maculou ainda mais a imagem da Polícia Militar. Por fim, ganhou importância simbólica o “caso Amarildo”, ocorrido na UPP da Rocinha: um auxiliar de pedreiro, Amarildo Dias de Souza, desaparece e depois se descobre que ele foi torturado e morto dentro da sede da UPP, e que entre os assassinos estava o próprio comandante da Unidade, um dos mais “respeitados” da instituição.
Em março de 2014, noticiou-se a ocupação militar do Complexo da Maré, também na zona norte. A Justiça expediu um mandado coletivo autorizando os policiais civis a revistarem a casa de todos os moradores destas favelas. A medida confirma a tendência do governo de decretar para uma coletividade o “estado de exceção”, que anula os direitos individuais e vê os moradores como potencialmente suspeitos de serem criminosos. A fim de evitar os “saques” ocorridos no Complexo do Alemão, somente os delegados poderão fazer esta revista.
Ao que tudo indica, a chegada das UPPs ao Complexo da Maré parece repetir, quatro anos depois, as arbitrariedades ocorridas na ocupação do Complexo do Alemão.
Vinicius Esperança é professor da Universidade Candido Mendes e autor da dissertação “‘O foco de todo mal’: estado, mídia e religião no Complexo do Alemão” (UFRRJ, 2014).
Saiba mais:Revista de História da Biblioteca Nacional
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
AMORIM,Carlos.ComandoVermelho:Ahistóriasecretadocrimeorganizado.RiodeJaneiro:Record,1993.
CABANES, Robert et al. (orgs.). Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. Tradução de Fernando Ferrone e Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Boitempo, 2011.
LIMA, Carlos Alberto de. Força de Pacificação: Os 583 Dias da Pacificação dos Complexos da Penha e do Alemão. Rio de Janeiro: Agência 2ª Comunicação, 2012.