Segundo uma análise cada vez mais difundida, o assassinato do herdeiro do Império Austro-Húngaro provocou a Primeira Guerra Mundial. Ao conferir um lugar central à política sérvia no início do conflito, essa leitura ajuda a criar a imagem sóbria dos Bálcãs e oculta as causas reais da carnificina de 18 milhões de mortos
por Jean-Arnault Dérens
sorte da Europa foi lançada em Sarajevo no dia 28 de junho de 1914? Nessa data, um jovem nacionalista “iugoslavo”, Gavrilo Princip, membro da organização secreta Jovem Bósnia, manipulada por certas facções do serviço secreto do reino da Sérvia, assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro da coroa do Império Austro-Húngaro, e sua esposa, a condessa Sofia Chotek.
A memória desse gesto mortal se manteve viva durante todo o século XX em diversas interpretações contraditórias. Em 1941, quando acabavam de penetrar em Sarajevo, oficiais nazistas arrancaram a placa comemorativa que havia no local do drama e a ofereceram a Hitler na ocasião de seu aniversário. Após a Libertação, sob a Iugoslávia socialista, uma nova placa foi instalada no mesmo lugar, com a pegada de Gavrilo Princip gravada no concreto. A Iugoslávia socialista considerava o jovem revolucionário – morto de tuberculose na prisão em 1918 – um “herói” e um “libertador”. No próximo dia 28 de junho, a prefeitura de Sarajevo planeja erigir um novo monumento à memória do arquiduque assassinado e inaugurar um busto de Gavrilo Princip em Belgrado, no Parque Kalemegdan.
Qual importância é conveniente conferir a seu gesto mortal? Em seu best-seller internacional, Les somnambules,1 o historiador britânico Christopher Clark propõe uma releitura das causas da guerra que, segundo ele, não era inevitável. O atentado de Sarajevo não teria servido apenas de pretexto para o Império Austro-Húngaro declarar, em 28 de julho, guerra contra a Sérvia – cujo jogo de alianças teria culminado no primeiro conflito mundial; teria desempenhado também o papel de disparador da guerra.
Reavaliar dessa forma a importância do atentado de Sarajevo conduziu o historiador a conferir uma responsabilidade central à política sérvia nos acontecimentos que precipitaram a Europa para a guerra. A questão de uma eventual unificação dos povos eslavos do sul – “iugo” significa sul – agitava os Bálcãs naquele momento, assim como as possessões territoriais austro-húngaras. A tutela (1878) e, principalmente, a anexação (1908) da Bósnia-Herzegovina haviam deteriorado seriamente as relações entre Viena e Belgrado.
Vingança ideológica do Ocidente
A abordagem escolhida pelo historiador, contudo, leva-o a relativizar a importância dos interesses imperialistas das “grandes potências” nos Bálcãs, que não queriam dividir os restos do Império Otomano que agonizava. Em vez disso, Clark retoma longamente as circunstâncias trágicas do golpe de Estado de 1903, com a deposição da dinastia sérvia dos Obrenovic e a ascensão da dinastia dos Karadjordjevic. O massacre dos membros da família real deposta provaria uma verdadeira “barbárie” sérvia, além de uma tendência ao regicídio, que o atentado de Sarajevo viria a confirmar.
Os historiadores sérvios se defenderam ao denunciar o que qualificaram como “revisionismo histórico”. Alguns nacionalistas entenderam o recado como “vingança ideológica” do Ocidente, que ainda desejaria punir os sérvios pelas guerras dos anos 1990. Mas as críticas abundam amplamente nos setores nacionalistas. O escritor e jornalista bósnio Muharem Bazdulj também estigmatiza essas reescrituras da história ao denunciar a confusão voluntária que essa leitura histórica faz dos conceitos de “nacionalismo sérvio” e “aspiração iugoslava”.2 Segundo ele, a “reabilitação” do Império Austro-Húngaro teria como objetivo, por consequência, negar qualquer legitimidade à experiência iugoslava. No momento de comemoração de seu centenário, no dia 28 de junho próximo, o projeto “Sarajevo, coração da Europa”, financiado pela União Europeia, exalta o “modelo” da reconciliação franco-austríaca, silenciando a ambição iugoslava de vida comum.
A retirada de “pequenos detalhes”
Amplamente repercutida nos meios de comunicação, a visão de Clark conforta uma imagem “negra” dos Bálcãs. No início dos anos 1990, o jornalista Robert D. Kaplan havia publicado Balkan ghosts,3 que exerceu uma profunda influência sobre a percepção dos Bálcãs por parte dos norte-americanos. Aí já estava a sugestão de que as verdadeiras raízes da Primeira Guerra Mundial deveriam ser buscadas nessa região. A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, teria sido apenas uma consequência da primeira, e aí residiria a causa de todos os problemas da Europa no século XX. Nessa linha de pensamento, a “matriz ideológica” tanto do fascismo como do comunismo poderia estar no nacionalismo sérvio e croata...
De acordo com a historiadora búlgara Maria Todorova, esse imaginário ocidental dos “Bálcãs selvagens”4 permite definir, por contraste, a “verdadeira” Europa: ocidental, moderna, civilizada. Contudo, foi nas trincheiras da guerra de 1914 que, pela primeira vez na história, os jovens croatas e os jovens sérvios receberam ordens de matarem-se entre si: os primeiros vestiam o uniforme austro-húngaro, enquanto o governo dos segundos era aliado da França e da Grã-Bretanha.
A inversão de valores é explícita em um texto do jornalista italiano Domenico Quirico: “Sarajevo é o coração das trevas, e há cem anos a consciência europeia agoniza nos escombros de seu universo. É preciso vir aqui, aos Bálcãs, para compreender os egoísmos irracionais que a assassinaram”.5 Se essas palavras possuem algum sentido, é preciso compreender que são as “trevas” de Sarajevo que obscurecem há um século a “consciência europeia”, e os “egoísmos irracionais” dos Bálcãs que “assassinaram” essa Europa. Retiram-se da leitura histórica, assim, “detalhes” pouco importantes como os choques imperialistas, o colonialismo, o fascismo, o nazismo. A fonte primeira de todos os males do século XX foi finalmente encontrada: é essa terra “ensopada de sangue” que constitui os Bálcãs.
Jean-Arnault Dérens redator-chefe do Courrier des Balkans.
Le Monde Diplomatique Brasil
1 Christopher Clark, Les somnambules. Été 1914: comment l’Europe a marché vers la guerre[Os sonâmbulos. Verão de 1914: como a Europa caminhou em direção à guerra], Paris, Flammarion, 2013.
2 Ler Muharem Bazdulj, “Attentat de Sarajevo: Gavrilo Princip, Hitler et l’idée yougoslave. Entretien avec Vuk Mijatović” [Atentado de Sarajevo: Gavrilo Princip, Hitler e a ideia iugoslava. Entrevista com Vuk Mijatović], Le Courrier des Balkans, 25 nov. 2013.
3 Robert D. Kaplan, Balkan ghosts: a journey through history [Fantasmas dos Bálcãs: uma jornada pela história], Picador, Nova York, 2005.
4 Maria Todorova, Imaginaire des Balkans [Imaginário dos Bálcãs], Paris, Éditions de l’Ehess, 2011.
5 Domenico Quirico, “À Sarajevo, la conscience de l’Europe râle sous les décombres” [Em Sarajevo, a consciência europeia agoniza em seus escombros], La Stampa/Le Monde, suplemento Europa, 16 jan. 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário