A resistência popular às internações hospitalares na cidade do Rio de Janeiro do século XIX
Márcio de Sousa Soares
Nos dias de hoje, quando alguém se sente mal ou se acidenta, costuma procurar um médico ou, dependendo da gravidade do caso, um hospital. Há um forte consenso de que os médicos são as pessoas mais indicadas para tratar dos doentes e que um hospital dispõe dos melhores recursos para prestar socorro aos enfermos em estado de saúde mais delicado. Mas nem sempre foi assim.
“Deixai toda esperança. Ó vós que entrais!”: estes versos, gravados na porta do inferno imaginado por Dante Alighieri em A Divina Comédia, exprimem perfeitamente a angústia que a perspectiva de uma internação hospitalar despertava entre as camadas populares cariocas no século XIX. A maioria dos hospitais existentes na cidade do Rio de Janeiro até meados do novecentos era formada por instituições de caridade dirigidas por religiosos.
Voltado para os pobres, o socorro hospitalar se destinava a acolher a população carente – deserdada de toda sorte. Na grande maioria das vezes, só se dirigiam espontaneamente a um hospital aqueles que não dispunham de um teto ou não podiam contar com o auxílio de parentes. Somente quando os doentes não tinham qualquer condição de conduzir o tratamento em suas próprias casas é que costumavam ser remetidos à força para os hospitais. Locais de isolamento e reclusão, os hospitais – como todos sabiam – não passavam de depósitos de infelizes em sua última escala antes da morte.
As classes mais altas, quando recorriam à assistência médica, faziam-no em suas próprias casas. Os pobres, por sua vez, em geral não simpatizavam muito com os médicos, nem possuíam os recursos necessários para pagar uma consulta domiciliar. Fatalmente, o contato com os médicos quase sempre ocorria, para desgosto do enfermo, num hospital. Malvistas e temidas pela maior parte da população da época, estas instituições eram o último lugar para onde os doentes desejavam ir.
Devido à presença das tropas portuguesas no Rio de Janeiro, o socorro aos doentes que não podiam contar com o auxílio de parentes tornou-se um problema para a Metrópole desde o início da colonização. Após uma longa viagem, muitos soldados já desembarcavam doentes ou então tombavam feridos. Por determinação da Coroa, eram conduzidos para as residências particulares e, posteriormente, para o hospital construído pela irmandade da Misericórdia.
Somente a partir do século XVIII é que outras irmandades e Ordens Terceiras abriram hospitais para atender a seus confrades. Em 1768, a Santa Casa passou a exigir o pagamento diário de quatrocentos réis por soldado internado. O conde de Azambuja, na época vice-rei, ordenou que se improvisasse um estabelecimento, que seria o primeiro Hospital Militar da cidade. Inicialmente situado no Morro de São Bento, o hospital foi transferido mais tarde para a sede do antigo Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo.
No Ocidente cristão, pelo menos até meados do oitocentos, o acompanhamento da doença e da agonia que antecede a morte ainda não estava sob o poder da medicina. O tratamento das enfermidades era geralmente conduzido em casa pelos próprios parentes do doente. Por força do catolicismo, quase sempre quem estava à cabeceira de um moribundo era um padre. Mesmo se, porventura, um médico acompanhasse uma pessoa da doença até a morte, seu trabalho se restringia a ajudar o enfermo a se curar ou a morrer. Em uma época em que combater a morte era para muitos uma verdadeira blasfêmia contra as intenções de Deus, a função da medicina não podia assumir um caráter de luta contra a natureza.
Fazia parte do imaginário coletivo da época que a doença e a hora mortis deviam ser vivenciados no interior das residências. Temia-se, acima de tudo, a morte súbita. A crença na necessidade da preparação para o bem morrer era muito difundida, o que significava o cumprimento de rituais religiosos para garantir a salvação da alma. Só assim o moribundo poderia deixar o mundo com a consciência tranqüila perante Deus e os homens. Causava horror a qualquer pessoa pensar em adoecer ou morrer longe dos parentes ou sem amparo religioso. A preferência, comum a todos os segmentos sociais, é bastante compreensível, considerando-se que, quando um indivíduo adoecia de uma moléstia mais grave, a probabilidade de que este viesse a falecer era muito grande.
Com a institucionalização da medicina acadêmica no Brasil, os hospitais assumiram aos poucos uma nova dimensão na prática e na consciência médica, em sintonia com a crescente onda cientificista que caracterizou o mundo ocidental ao longo do século XIX. Dispostos a transformar o que acreditavam ser um verdadeiro “caos urbano” – uma cidade “suja” e “doente” – em um espaço “civilizado”, os intelectuais que integravam a Academia Imperial de Medicina passaram a recomendar às autoridades públicas uma reordenação das instituições hospitalares existentes na Corte.
Na opinião médica, os hospitais deveriam ser reestruturados para garantir o isolamento dos enfermos. Na época, acreditava-se que certas substâncias que exalavam dos corpos doentes faziam daquelas instituições um foco de infecção ou de contágio. Para tentar conter a disseminação das doenças, passou-se a recomendar o trancamento das portas dos hospitais no intuito de isolar os enfermos. Assim, as instituições foram transformadas em verdadeiras prisões, o que só aumentou ainda mais a desconfiança e o pavor da população pobre.
Os membros da Academia Imperial de Medicina, que discutiam as condições de salubridade pública em suas reuniões e publicações, passaram a tachar de insalubres e impróprias não só as instalações hospitalares, mas também muitos hábitos da população que até aquele momento não haviam despertado maiores inquietações no que se refere à saúde pública. É, portanto, à luz dessa nova consciência que devem ser compreendidas as terríveis descrições contidas nos diversos relatórios elaborados pelas comissões médicas nomeadas para diagnosticar as condições de insalubridade da Corte.
A Santa Casa de Misericórdia era o maior hospital da cidade no século XIX, recebendo cerca de 4.500 doentes por ano, segundo uma estimativa feita em 1833. Mesmo assim, as pessoas mais pobres tentavam evitar ao máximo a internação, tamanho era o quadro de penúria reinante ali.
Havia ainda o medo e a certeza de que dificilmente escapariam da morte – como atestavam os elevados índices de mortalidade ali verificados. Dependendo da enfermidade, o doente já sabia de antemão que suas chances de sobrevivência seriam muito pequenas. Este foi o caso das vítimas da explosão do vapor Especuladora, ocorrida em 1844. Do total de 42 feridos queimados no acidente, nada menos que 39 faleceram nas primeiras 48 horas após a entrada na Santa Casa. As possibilidades de saírem vivas dali também não eram nada promissoras para as pessoas internadas com tuberculose. Segundo um relatório médico da época, dos 1.225 tuberculosos recolhidos na Santa Casa entre 1839 e1841, nada menos do que 77,7% faleceram. O que mais espanta é que a grande maioria sucumbiu antes do primeiro mês de internação.
Segundo os médicos que atuavam na Misericórdia, a voracidade com que a tísica consumia os doentes era explicada pelo fato de que a maioria deles só era internada depois de esgotadas todas as tentativas não-hospitalares de cura. Ao avaliar o índice de mortalidade apresentado pelo resumo estatístico da Clínica de Cirurgia da Faculdade de Medicina relativo ao ano de 1844, o doutor Roberto Jorge Haddock Lobo comentou que “... é só no último recurso que os doentes, de ordinário dominados pelo horror que erroneamente lhes inspira o hospital, se determinam a recolher-se a essa Pia Casa, tarde e a más horas”.
Diante da dor, do isolamento e do receio de uma morte solitária, não é de se estranhar que a fuga de doentes dos hospitais fosse um fato corriqueiro, segundo as freqüentes denúncias feitas pelos médicos da época. O pavor inspirado pela Santa Casa era ainda mais acentuado pela expressiva quantidade de enterros diários que ocorriam no cemitério mantido pelo hospital. Reservado aos escravos e aos indigentes, o campo santo da Misericórdia sepultou no biênio 1838-1839 nada menos do que 3.194 pessoas! Não se pode deixar de sublinhar que números tão elevados alimentavam, e muito, a desconfiança dos cativos em relação aos médicos e aos hospitais. Levando em conta a opinião corrente sobre a relação entre doença e feitiço, a historiadora Mary Karash levantou a hipótese de que, para os africanos da cidade, a morte rápida no hospital poderia resultar da feitiçaria dos brancos contra sua gente. É bastante plausível supor que, entre a população escrava, os médicos pudessem ser identificados negativamente como “feiticeiros brancos”, sobretudo para os doentes recém-traficados, que, não raro, eram remetidos para a Santa Casa de Misericórdia, onde a grande maioria vinha a falecer.
Se nos casos de doenças endêmicas a possibilidade de ter que ir a um hospital despertava pavor nas pessoas, o que dizer das épocas dos grandes surtos epidêmicos de cólera e de febre amarela, quando os índices de internação e de mortalidade atingiram níveis até então nunca vistos? Os próprios médicos reconheciam que, além de padecer de sofrimentos físicos desumanos, os enfermos ainda tinham de enfrentar o desconforto das acomodações oferecidas pelas instituições e pelas enfermarias improvisadas na cidade. Nessas ocasiões, os hospitais geralmente ficavam abarrotados com pessoas que tombavam doentes pelas ruas ou com marinheiros em trânsito, recolhidos pelas Comissões de Polícia Médica, sendo internados independentemente ou contra sua própria vontade.
A voracidade com que as epidemias devoravam os adoentados reforçava a idéia do caráter súbito deste tipo de enfermidade. Dos vinte primeiros doentes de febre amarela tratados pelo doutor Roberto Lallemant, em 1850, nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, quase todos morreram no prazo máximo de 48 horas após darem entrada no Hospital. O doutor José Pereira Rego era um dos que acreditavam na instantaneidade do ataque provocado pela cólera. Por ocasião do surto epidêmico ocorrido em 1855, o médico assegurava que pessoas saudáveis eram acometidas repentinamente pela doença e tombavam enfermas pelas ruas. Por conta dessa crença em seu caráter fulminante e da proporção tomada pela epidemia, notou que “o mal, apesar dos cuidados prodigalizados pelo governo, pela classe médica e pelos cidadãos encarregados de distribuir os socorros públicos, progredia em sua marcha destruidora, espalhando o terror e a consternação em todos os habitantes desta populosa cidade”.
No imaginário popular do século XIX, era bastante difundida a crença de que as doenças tinham uma natureza sobre-humana, e eram associadas, por exemplo, à feitiçaria, à ação de um “mau-olhado” ou como conseqüência de um pecado. Sendo assim, a cura dos enfermos dependeria, em última instância, da vontade de Deus, e não dos remédios, pois a enfermidade seria um castigo divino ou fruto das artimanhas do demônio.
Muitas pessoas buscavam a proteção ou o restabelecimento da saúde por meio das mais variadas práticas mágico-religiosas. Estes procedimentos eram uma complexa combinação entre o auxílio espiritual e a aplicação de diversas mezinhas domésticas (remédios caseiros), sangrias, ou de alguns “remédios secretos” – fartamente anunciados nos jornais da época e que prometiam tudo curar. Freqüentemente, a cura era atribuída a talismãs, objetos de devoção, sacramentos ou a interferências divinas da Virgem Maria ou dos santos – como atesta o relato do viajante Thomas Ewbank sobre a enorme quantidade de ex-votos depositados nas igrejas da cidade.
Até meados do século XIX, os profissionais da medicina eram alvo de profunda desconfiança e de descrédito, posto que não gozavam de reconhecimento social suficiente para lhes assegurar o “monopólio da competência” na arte de curar. Afinal, no imaginário popular, as explicações para as origens das doenças e as possibilidades de cura passavam longe daquelas apresentadas pela ciência médica.
Em lugar dos médicos, a maioria das pessoas costumava recorrer aos saberes práticos e ao poder espiritual atribuídos àqueles que tradicionalmente se dedicavam à arte de curar. Barbeiros, parteiras, boticários, benzedores e os famosos cirurgiões negros: todos estes se encontravam distantes da formação acadêmica em Medicina, tendo sido quase sempre desqualificados pelos médicos como “curandeiros” ou “charlatões”.
Apesar de todo o poder e a influência conquistados aos poucos pelos médicos ao longo da segunda metade do século XIX, a resistência dos segmentos populares às novas concepções e práticas ditadas pela medicina permanecia muito grande, adentrando as primeiras décadas da República. Para os médicos, o grande problema a ser resolvido era a “ignorância” dos doentes, que insistiam em adiar ao máximo a entrada ou em fugir dos hospitais. Mas, para os pobres, era a própria internação que representava uma grande probabilidade de apressar o encontro fatal com uma indesejada morte solitária.
Márcio de Sousa Soares é autor da dissertação “A Doença e a Cura: saberes médicos e cultura popular na corte imperial” pela Universidade Federal Fluminense, 1999, e doutor em História Social pela mesma universidade.
Revista de História da Biblioteca Nacional