O parlamento regional da Catalunha aprovou, em janeiro de 2022, uma resolução para “limpar o nome” de mais de 700 mulheres torturadas e executadas por bruxaria, entre os séculos 15 e 18, na região. Decisões similares foram tomadas em países como Escócia, Noruega e Suíça. Grupos por trás desse movimento afirmam que as dezenas de milhares de mulheres condenadas à morte por bruxaria em toda a Europa foram vítimas de perseguição misógina, num fenômeno que não pode ser dissociado da divisão binária dos gêneros, que determina papéis sociais de acordo com o sexo biológico dos indivíduos.
CRÉDITO: INTERVENÇÃO DE CLAUDIA FLEURY SOBRE ILUSTRAÇÃO DE LE LIVRE DE LA CITÉ DES DAMES
Séculos separam a caça às bruxas, na Idade Moderna, das críticas contemporâneas à divisão binária dos gêneros, que afirma que sexo biológico é o que define os papéis sociais de cada indivíduo. O massacre daquelas milhares de mulheres, entre os séculos 15 e 18, no entanto, está profundamente relacionado às questões hoje defendidas por feministas e por outras minorias sexuais a respeito de gênero.
Para entender essa conexão, é preciso fazer um percurso a até 400, 500 anos atrás, mas começando pelos debates atuais.
Uma das maiores conquistas dos movimentos feministas e LGBTQIA+ é entender que os gêneros se constituem em processos sociais e culturais, e não podem ser reduzidos a homem e mulher heterossexuais e cisgênero. Essa percepção contemporânea das relações de gênero, reconhecida em diversas políticas públicas, se consolidou também no campo acadêmico a partir das décadas de 1970 e 1980, com a contribuição da escritora francesa Monique Wittig (1935-2003), da historiadora Joan Scott e da filósofa Judith Butler, estas últimas estadunidenses, entre outras estudiosas.
Questão de gênero
A tradicional divisão binária dos sexos legitimou historicamente a separação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres. No século 19, no âmbito dos saberes médicos e jurídicos, consolidou-se uma visão a respeito das mulheres que as confinava ao lar, aos cuidados com os filhos e com a própria aparência. Essa representação, no entanto, se ajustava apenas ao ambiente feminino burguês ou de elite. As mulheres das classes menos privilegiadas continuavam a trabalhar fora como meio de subsistência, equilibrando essas atividades precariamente com a criação dos próprios filhos.
A tradicional divisão binária dos sexos legitimou historicamente a separação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres
Ainda que seja alvo de críticas, a representação da mulher que se consolidou no século 19 continua ecoando até dias recentes. Um exemplo é a reportagem publicada na revista Veja em 18 de abril de 2016, que teve forte repercussão. Com o título de “Marcela Temer: bela, recatada e do ‘lar’”, uma jornalista traçou um perfil da ex-primeira dama muito próximo à perspectiva de 200 anos atrás. É significativo refletir como esse estereótipo sobre a mulher é apresentado como um complemento em relação à imagem do homem público por excelência, o presidente da República. Para finalizar a comparação entre imagens ainda atuais do masculino e do feminino, não deixa de ser expressivo que alguns dicionários registrem a definição de “mulher pública” como prostituta.
Essa reportagem pode ser classificada como um “mito” a respeito do feminino. Conforme uma visão feminista clássica, mas ainda válida em muitos aspectos, a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) caracterizou a produção de mitos sobre o feminino como uma constante, em diversos tipos de sociedade. De modo muito geral, a representação da mulher foi associada à reprodução, à fertilidade e, a partir daí, à maternidade e aos cuidados domésticos.
A representação da mulher foi associada à reprodução, à fertilidade e, a partir daí, à maternidade e aos cuidados domésticos
Na análise de Beauvoir, a imagem da mulher seria imanente, ligada à terra e à vida e ao efêmero. Em contraste, as imagens do masculino foram associadas à transcendência, ao que é eterno ou imutável. Daí a ligação da figura masculina às representações de Deus na cultura judaico-cristã ou aos feitos heroicos dos personagens bíblicos. Na linha dessa análise, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) indicou que a representação do masculino se aproxima com frequência de um ideal de nobreza. Pode-se entender melhor o que quer dizer Bourdieu quando se compara, por exemplo, o prestígio que cerca a profissão do chef de cozinha ao trabalho invisível e pouco valorizado desempenhado pelas donas de casa na preparação de alimentos.
Virgem Maria e o ideal inalcançável
Essas considerações iniciais são importantes para pensar a representação dos gêneros no início do Período Moderno, entre os séculos 15 e 18. No que diz respeito às imagens produzidas sobre a mulher, não se pode esquecer a influência dos modelos cristãos. A Virgem Maria representava o ideal feminino inalcançável, que reunia, na mesma pessoa, a pureza da carne e a maternidade. Como tal, projetou-se como modelo para a mulher casada.
No fim da Idade Média e princípios do Período Moderno, as representações da Sagrada Família (Maria, José e do Menino Jesus) tornaram-se muito comuns entre os cristãos. Paralelamente, a Virgem Maria tornou-se também um paradigma de comportamento para as mulheres dedicadas à vida religiosa nos conventos. Após o Concílio de Trento (1545-1563), a Reforma Católica difundiu esses padrões junto aos fiéis, por meio de uma farta literatura devocional e da iconografia. Nas regiões protestantes, porém, a rejeição ao culto da Virgem e dos santos e o fechamento dos conventos reduziu a importância desse modelo de devoção.
O arrependimento de Madalena
Outro paradigma religioso difundido para as mulheres no Período Moderno encontra-se na imagem de Maria Madalena. Segundo a tradição cristã, após ter vivido em pecado, Madalena converteu-se, tornando-se seguidora de Jesus Cristo. O gesto de conversão dela foi proposto como caminho ideal a ser seguido pelas mulheres que haviam cometido algum tipo de pecado carnal. Prostitutas e mulheres que haviam perdido a castidade, arrependidas de suas culpas, escolhiam passar o restante dos seus dias em penitência ou no estado de matrimônio, se encontrassem algum cônjuge disposto a aceitá-las.
Dependendo das circunstâncias individuais, o modo de vida penitente poderia ser praticado em conventos ou em recolhimentos. Estes últimos constituíam estabelecimentos de reclusão feminina que funcionavam de modo mais flexível que os conventos. Nos recolhimentos, as mulheres podiam permanecer provisoriamente enclausuradas, mas as virgens consagradas a Cristo, seguidoras da vida monástica, faziam votos perpétuos de reclusão.
Segundo a literatura religiosa católica difundida no Período Moderno, o cotidiano no convento e a vida de penitente deviam ser conduzidos com práticas de mortificação corporal. Os fiéis deveriam se privar dos prazeres do corpo, praticando jejuns, observando o máximo possível o silêncio, praticando a caridade com pobres e enfermos, exercendo atividades degradantes, entre outros gestos considerados devotos.
Difundido desde os primeiros séculos do cristianismo, o ideal de renúncia sexual e de rejeição do corpo continuou a ser valorizado pela Igreja católica no Período Moderno. Sobre isso, é importante mencionar que a Igreja considerava o estado de freira como o mais perfeito para as mulheres, vindo em segundo lugar o matrimônio, em que a prática do sexo era apenas legitimada para a finalidade da concepção. Nas regiões protestantes, em contraste, o casamento se tornou praticamente a única via legítima para as mulheres. O ideal de rejeição do corpo não foi tão influente, e o próprio Martinho Lutero (1483-1546), expoente da Reforma Protestante, considerava que, no casamento, deveria haver espaço para os cônjuges buscarem algum prazer físico.
A Igreja considerava o estado de freira como o mais perfeito para as mulheres, vindo em segundo lugar o matrimônio, em que a prática do sexo era apenas legitimada para a finalidade da concepção
Além do ideal de rejeição do corpo surgido no início do cristianismo, representações de outro tipo foram associadas às mulheres no Período Moderno. Proveniente de um universo cultural ainda mais antigo, o do judaísmo, havia a tradição de que a mulher era particularmente inclinada à prática do pecado. Esse “mito” da feminilidade pode ser explicado a partir do relato bíblico da criação. Segundo o livro do Gênesis, Eva foi amaldiçoada por ter desobedecido à vontade divina, perdendo o estado de pureza em que se encontrava no Jardim do Éden.
A serviço de Deus ou do demônio?
Essa crença misógina se projetou com muita força sobre as representações da mulher em princípios do Período Moderno. No Malleus Maleficarum (O Martelo das feiticeiras), obra elaborada por Heinrich Kramer (c. 1430-1505) e James Sprenger (c. 1435-1495) em 1484, e destinada ao combate da bruxaria, a mulher é identificada com nitidez como símbolo do mal. De acordo com os inquisidores dominicanos, o delito da bruxaria se caracterizava pela realização de um pacto explícito com o demônio.
Durante o grande processo de caça às bruxas que teve seu apogeu entre os séculos 16 e 17 nas regiões do centro e do norte da Europa, as mulheres foram a maioria esmagadora das acusadas e das vítimas. Em Portugal, onde as punições ao delito da bruxaria não foram tão severas, a grande maioria dos réus era também constituída por mulheres.
As acusações de falsa santidade, lançadas pelo Santo Ofício da Inquisição contra diversas mulheres, também são reveladoras da difusão de esquemas misóginos de pensamento entre representantes do clero. Nos séculos 16 e 17, algumas experiências religiosas que apareciam com frequência entre devotas do sexo feminino – como êxtases, visões, revelações, profecias e curas milagrosas – tornaram-se objeto de grande suspeita por parte da Igreja. Segundo os agentes do Santo Ofício, muitas mulheres que alegavam manifestar as supostas graças divinas estavam, na realidade, sendo iludidas pelo demônio.
Segundo os agentes do Santo Ofício, muitas mulheres que alegavam manifestar as supostas graças divinas estavam, na realidade, sendo iludidas pelo demônio
Para justificar esse tipo de pensamento, os agentes recorriam às imagens bíblicas da maldição lançada sobre Eva, tentando mostrar que, desde o início dos tempos, a fraqueza e a inconstância caracterizavam o comportamento das mulheres. De modo significativo, as mulheres acusadas de falsa santidade eram, em sua maioria, devotas leigas que não estavam casadas nem viviam fechadas em conventos. Chamadas de beatas, estavam distantes dos estados considerados legítimos para as mulheres. Não tinham maridos nem muros que as pudessem controlar. Recebiam a supervisão de confessores ou diretores de consciência, sacerdotes que tinham por função avaliar se as experiências religiosas manifestadas pelas ditas mulheres eram de origem divina ou demoníaca.
Proibidas de pregar
Na esfera religiosa, os mitos bíblicos femininos tiveram outras repercussões no Período Moderno. Os escritos de São Paulo proibiam as mulheres de ensinar ou de fazer exposições públicas a respeito da doutrina. Em vez disso, o apóstolo recomendava que permanecessem em silêncio nos templos, e recebessem dos seus maridos instrução no recinto doméstico.
Nos séculos 16 e 17, algumas mulheres superaram essas proibições misóginas. Conforme mostraram as pesquisas da professora da Universidade de Virginia Alison Weber, mulheres como Santa Teresa de Ávila desenvolveram uma “retórica da feminilidade”. Ou seja, assumindo em seus escritos vários estereótipos de fraqueza e de incapacidade femininas – o que as tornava menos suspeitas aos olhos da Igreja – procuraram exercer um protagonismo no campo religioso, superando as expectativas tradicionais associadas ao seu sexo.
Medicina e gênero no Período Moderno
Para concluir essa breve reflexão sobre as representações femininas no Período Moderno, é importante trazer para a discussão algumas ideias do saber médico da época. A respeito da anatomia feminina, predominavam ainda ideias provenientes da Antiguidade, elaboradas por autores romanos como Galeno (c. 129-c. 217) e Plínio, o Velho (23-79). Segundo tais concepções, os fluidos ou humores pertencentes ao corpo feminino se caracterizavam pela frieza e inatividade. Em contraste, o corpo masculino revelava sempre um maior calor e atividade. Essas ideias serviam para explicar certas características presentes nos aparelhos de reprodução de homens e de mulheres. Assim, o maior calor existente no corpo masculino projetaria, para o lado externo, o pênis e os testículos, enquanto que a localização interna dos órgãos femininos de reprodução era explicada pela ausência de calor.
De acordo com a surpreendente pesquisa desenvolvida pelo historiador estadunidense Thomas Laqueur, alguns letrados do Período Moderno acreditavam que a ação do calor ou da atividade física no corpo feminino poderia levá-lo a adquirir características do corpo masculino, lançando, para o lado de fora, os órgãos sexuais internos! Portanto, para o autor, o sexo definido no momento de nascimento não era considerado, no Período Moderno, uma base inteiramente segura para a definição dos papéis de gênero.
O percurso realizado no Período Moderno traz de volta questões apresentadas pelas feministas e por outras minorias sexuais a respeito dos papéis de gênero. A relativização do elemento biológico, a reafirmação do caráter social e cultural da constituição dos gêneros, e o reconhecimento da pluralidade destes constituem elementos que pautam, na contemporaneidade, a ação política dos agentes sociais e os debates acadêmicos.
William de Souza Martins
Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Revista Ciência Hoje
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