quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Meu reino por uma ereção

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Impulsionados pelo temor da impotência, afrodisíacos correram o mundo

Mary Del Priore

“Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo perna baixo”.

Assim começa “Elixir do Pajé”, poema de Bernardo Guimarães publicado clandestinamente em 1875. Ele trata de um assunto que assombrava a sociedade patriarcal: a impotência sexual masculina. Considerada verdadeira maldição, ela provocava profundo sofrimento e situações de humilhação entre os homens. Ao longo de séculos, não faltam indicações do sonho de ereções permanentes e infatigáveis, mostrando que a obrigação da virilidade habita há tempos a nossa cultura.

Mas por que tanta ansiedade? Está na Bíblia: “Crescei e multiplicai-vos”. E era papel do homem garantir esta operação. Um breve papal de 1587 definia a impotência masculina como um impedimento ao sacramento do matrimônio. Os processos contra “maridos frígidos” se espalharam pela Europa entre os séculos XVI e XVIII. Não faltaram julgamentos públicos nos quais os homens tinham que fazer, seminus, “exames de elasticidade” ou ereção.

Com as grandes navegações européias, os poderes das substâncias afrodisíacas correram o mundo. Portugal era a porta de entrada desses produtos. O pequeno reino se constituiu em ponto de distribuição das especiarias de luxo vindas do Oriente. Perfumes da China e do subcontinente asiático e saberes fitoterápicos da América se uniam para a fabricação de filtros capazes de resolver casos de impotência.

Um dos mais notáveis cronistas a perceber a importância dos afrodisíacos foi o português Garcia da Orta, estudioso da farmacopéia oriental que viveu no século XVI. Entre suas prescrições estavam a Cannabis sativa (banguê ou maconha) e o ópio. Fundamentado em sua convivência com os indianos, Orta sabia que o ópio era usado para agilizar a “virtude imaginativa” e a retardar a “virtude expulsiva”, ou seja: controlar o orgasmo e a ejaculação. Além destes dois produtos, Orta menciona o betel, uma piperácea cuja folha se masca em muitas regiões do Oceano Índico. Sobre seu uso, lembra que “a mulher que há de tratar amores nunca fala com o homem sem que o traga mastigado na boca primeiro”.

Muitas especiarias eram consideradas afrodisíacas, como o açafrão, o cardamomo, a pimenta negra, o gengibre, o gergelim, o pistache e a noz-moscada. Outras substâncias com a mesma e poderosa reputação eram o âmbar e o almíscar, produtos que a Europa só foi conhecer no século XVI. A colonização da Ásia, da África e da América fez aumentar a variedade dos afrodisíacos utilizados. E não só entre plantas e alimentos. O rinoceronte proveniente da Guiné tinha raspas do chifre comercializadas devido a essa reputação, o que, aliás, ocorre até hoje.

Primeiro observador encarregado de fazer um relatório de história natural do Brasil, o holandês Guilherme Piso (1611-1678) registrou também, embora mais discretamente, algumas plantas afrodisíacas. Segundo ele, tanto “a pacoba quanto a banana são consideradas plantas que excitam o venéreo adormecido. Os portugueses as vendem diariamente o ano todo, afirmando que podem tornar o homem mais forte e mais capaz para os deveres conjugais”. As propagadas virtudes do amendoim também chamaram sua atenção.

Em obras publicadas na Europa, plantas vindas dos novos mundos eram divididas de acordo com suas propriedades, em rubricas como “amor, para incitá-lo”, “jogos de amor” e “para fortificação da semente” (ou seja, do sêmen). Em 1697, um desses livros menciona dezenove substâncias úteis para o sexo, extraídas dos reinos animal (genital de galo, cérebro de leopardo, formigas voadoras) e vegetal (jaca, orquídeas, pinhões).

O contato com os índios na América portuguesa levou ao emprego do fogo nos procedimentos de cura da impotência. Homens untavam o escroto e a região púbica com sebo de bode, “sentando-se sobre brasas vivas”. Provavelmente nasceu de tal prática a expressão “estar sentado em brasas”. Garrafadas à base de catuaba, largamente utilizadas até os dias de hoje, também decorrem dos conhecimentos fitoterápicos dos tupis-guaranis.

Na culinária, havia receitas específicas para “engendrar e facilitar a ereção e o coito”. Ingredientes como as ostras, o chocolate e a cebola eram apreciadíssimos, assim como a alcachofra, a pêra, os cogumelos e as trufas. O médico do rei D. João V, Francisco da Fonseca Henriques, em seu livro Âncora Medicinal (1731), cita pelo menos cinco plantas – a menta, o rabanete, a cenoura, o pinhão e o cravo –, atribuindo-lhes o dom de “provocar atos libidinosos e incitar a natureza para os serviços de Vênus”. Segundo ele, uma dieta casta devia evitar alimentos quentes, fortes e condimentados, aliando-se a tal cardápio outras terapias, como banhos frios e aplicações tópicas de metais.

Este era o outro lado da moeda: embora os afrodisíacos tivessem nobre função social, num tempo em que a Igreja controlava corações e mentes, os excessos sexuais eram considerados pecado ou doença. Como antídoto, eram receitados anafrodisíacos, definidos como “aqueles remédios que ou moderam os ardores venéreos ou mesmo os extinguem”. No sumário de alguns herbários constavam plantas com finalidades variadas: ao lado daquelas que podiam “induzir a fazer amor”, outras evitavam “sonhos venéreos quando se polui sonhando” ou eram capazes de “fazer perder o apetite para jogos de amores”.

A mais eficaz das plantas antieróticas revelava seu efeito no próprio nome: o agnus castus tornava o homem “casto como um cordeiro porque ele reprime o desejo de luxúria”. Havia anafrodisíacos que agiam “espessando a semente” e tornando-a, portanto, mais difícil de escorrer. Nessa categoria estavam as sementes de alface, melancia e melão. Outra opção era utilizar metais como chumbo, mármore e pórfiro – aplicados sobre o períneo ou sobre os testículos, essas “frígidas” substâncias faziam diminuir o ardor.

Alguns produtos mudaram de finalidade com o tempo. O chocolate, antes usado até durante o jejum católico, passou a ser condenado por provocar excesso de calor. Em seu lugar, surgiu a louvação antierótica do café, que só mais tarde seria visto como excitante.

O uso excessivo de afrodisíacos provocava o aparecimento de “doenças” de origem sexual, como a erotomania. Esta “febre amorosa” atingia homens e mulheres, provocando inchação no rosto, aumento dos batimentos cardíacos, sufocações, raivas, furores uterinos, satiríases e outros “perniciosos sintomas”. A cura demandava sangrias abundantes – nos braços, pés e atrás das orelhas –, dietas que excluíam tudo o que fosse “quente”, banhos gelados ou dormir sobre tábua dura.

Tanto em Portugal quanto na América portuguesa, vivia-se a crença de que poderes demoníacos atuavam sobre o corpo e a sexualidade. Neste caso, pouco importavam as explicações médicas, mais valendo a simbologia dos rituais mágicos. Defumar as partes vergonhosas com os dentes de uma caveira, pendurar galhos de artemísia na porta de casa ou passar esterco da pessoa amada no sapato direito eram formas de expulsar o demônio que causava a impotência. Comer uma pega, ave corvídea também conhecida por pica-pica, como ajudava! “Urinar num cemitério pela argola da campa [sineta] de uma sepultura” tinha que funcionar! Untar o membro com “água que cair da boca de qualquer cavalo” era eficácia garantida! Para os casais que desejassem apenas se prevenir deste mal, recomendava-se ao marido “trazer consigo o coração da gralha macho e à mulher, o da gralha fêmea”.

Aos nossos olhos, esse parece outro mundo: a obrigação de procriar, o medo do maligno, o preconceito, a opressão da Igreja, os feitiços, as simpatias e crendices. Atualmente, a impotência é tratada como uma especialidade médica como outra qualquer. Será? O entusiasmo com que foi recebida uma certa pílula azul talvez demonstre que ainda estão bem vivos entre nós alguns traços daquela antiga maneira de pensar.

Mary Del Priore é professora do curso de pós-gradução em História da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), sócia honorária do IHGB e autora de História do Amor no Brasil (Contexto, 2005).

Saiba Mais - Bibliografia:

CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas – as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.

CARNEIRO, Henrique. Amores e sonhos de flora – afrodisíacos e alucinógenos na botânica e na farmácia. São Paulo: Xamã, 2002.

DARMON, Pierre. O tribunal da impotência – virilidade e fracassos conjugais na França. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

DEL PRIORE, Mary, História do Amor no Brasil (Contexto, 2005).
Revista de História da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

COMO AS EMPRESAS FINANCIARAM O NAZISMO DE HITLER


A ideologia do lucro de grandes empresas fez com que muitas delas colocassem dinheiro no Estado alemão durante o período nazista, produzindo inúmeras das tecnologias usadas nos campos de concentração

ISABELA BARREIROS


Ruas da Alemanha durante o regime nazista - Wikimedia Commons


Os campos de concentração alemães puderam funcionar, da maneira que operaram, devido ao gás Zyklon B, que era usado nas câmaras de gás do holocausto. A empresa responsável pela produção era a IG Farben, mas atualmente a conhecemos com outro nome — a organização que financiava o gás que matou milhões de judeus, hoje, se chama Bayer.

Além dela, inúmeras empresas deram suporte financeiro ao nazismo de Hitler e ao fascismo de Mussolini, na Alemanha e Itália. Segundo o livro “A Ordem do Dia” do escritor francês Éric Vuillard, BMW, Fiat, Volkswagen, Siemens, IBM, Chase Bank, Hugo Boss, General Electric e outras grandes corporações conseguiram se estabelecer e, ainda, lucrar com o autoritarismo e antissemitismo da ideologia nazista.

A IBM organizou praticamente todo plano de extermínio judeu. “Com a IBM como parceira, o regime de Hitler pôde substancialmente automatizar e acelerar as seis fases dos 12 anos de Holocausto: identificar, excluir, confiscar, ‘guetizar’, deportar e exterminar”, analisa o jornalista estadunidense Edwin Black no livro Nazi Nexus (Nexo Nazista). A empresa facilitou o processo de identificação dos judeus, e depois disso, também coordenou os sistemas de trens que os levavam para os campos.


Segundo o artigo Aposta em Hitler — O valor das conexões políticas na Alemanha Nazista, de Thomas Ferguson e Hans-Joachim Voth, uma em cada sete empresas aprovavam o nazismo no início dos anos 1930. Os autores apontam que muitas estavam envolvidas com o regime, e foram muito bem compensadas por isso.

O artigo revela que as instituições que apoiaram o movimento nazista tiveram uma alta extraordinária e incomum, com retornos avaliados em 5 a 8% entre o período de janeiro e março de 1933.

O livro The Wages of Destruction (Os salários da destruição, em tradução livre) de Adam Tooze fala sobre como o governo nazista fez parcerias com empresas alemãs, que apoiavam os interesses seus ideológicos e de guerra para conseguir benefícios, subsídios e a uma grande repressão ao movimento sindical alemão.


O anticomunismo

Mas porque os empresários resolveram apoiar o nazismo? “Quando Hitler subiu ao poder, os industriais não falavam uma língua só. Mas a maioria estava feliz de apoiar nazistas em vez de comunistas, e de dar suporte a um movimento político que prometia limitar, senão esmagar, o crescente poder dos trabalhadores organizados”, avalia o historiador da Universidade do Alabama, Jonathan Wiesen.

No Mein Kampf (Minha Luta), Hitler fala sobre como o marxismo, — e o judaísmo —, deveriam ser combatidos, considerando estes como os maiores males que a Alemanha teria de enfrentar. “Nesse tempo, abriram-se-me os olhos para dois perigos que eu mal conhecia pelos nomes e que, de nenhum modo, se me apresentavam nitidamente na sua horrível significação para a existência do povo germânico: marxismo e judaísmo.”


A relação com o capitalismo

Segundo o filósofo italiano Antonio Gramsci, o fascismo operou como uma tentativa de superação de uma crise, que ele considera como cíclica do capitalismo. Para ele, o regime funcionou “como uma nova forma de reorganização do sistema capitalista sob a lógica de um Estado de Exceção”.

Marco Pais Neves dos Santos, escritor português da Universidade Nova de Lisboa, explica em seu artigo O Estado Nacional-Socialista na ótica de Norbert Frei os motivos que levaram à ascensão de Hitler.

Ele destaca “a degradação econômica e social da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, a crise do capitalismo, a fragilidade social, o antissemitismo, o anticomunismo e o desejo de mudança de alguns setores da sociedade”. Esses pontos podem ser considerados como parte da crise cíclica do capitalismo descrita por Gramsci.

“O fascismo é a fase preparatória da restauração do Estado, ou seja, de um recrudescimento da reação capitalista, de um endurecimento da luta capitalista contra as exigências mais vitais da classe proletária”, analisou Gramsci em 1920.

Consolidando novamente o sistema capitalista, a partir da parceria com as grandes empresas alemãs, o nazismo conseguiu restabelecer sua economia de maneira muito rápida. A custo de milhões de vidas, mas o fez.

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