Entre acusações de manipulador e assassino do idealismo republicano, as controvérsias sobre o imperador francês perpassam sua morte
Raquel Stoiani
Caricatura alemã representando a carreira de Napoleão, da infância à derrota em Waterloo e ao exílio. Na "Lenda Napoleônica", ele foi transformado em um mártir que morreu solitário em Santa Helena.Uma preocupação constante de Napoleão Bonaparte foi a construção de sua imagem pública. Enquanto esteve no poder (1799-1815), ele estruturou uma complexa máquina de propaganda. Do homem da paz ao deus da guerra, do herói revolucionário à vítima dos contrarrevolucionários, comparando-se a Carlos Magno ou a Aníbal, modificava sua figura pública de acordo com as necessidades do momento. Seus opositores, por sua vez, buscaram desfigurá-lo com o mesmo empenho.
O famoso escritor romântico François René Auguste de Chateaubriand (1768-1848) foi um dos principais críticos da tirania imperial. A obra De Buonaparte et des Bourbons (1814), publicada logo após a primeira abdicação do imperador (1814), traz o retrato mais repulsivo de Napoleão: o destruidor, o estrangeiro de origem corsa indiferente à França, o devorador de gerações de jovens, o supressor de toda livre opinião, enfim, o tirano. Madame de Staël (1766-1817), escritora e dona de um famoso salão literário em Paris, também foi juíza severa do regime napoleônico. Nas Considérations sur la Révolution Française (1818), sua principal acusação a Bonaparte é a de assassino do idealismo republicano. Napoleão inicia um governo que se torna cada vez mais autocrático e abandona o ideal republicano em prol de uma monarquia, o império. É retratado como um egoísta manipulador dos homens, sem fé ou pátria, que não teria outro propósito além de sua própria grandeza.
Panfletos, charges e vários outros escritos, surgidos, em sua maioria, na Inglaterra – cabeça das coalizões contra a França –, fizeram circular pela Europa afora essas imagens negativas. Um exemplo é a caricatura “La Grande Procession de Couronnement de Napoléon Ier” (1805), do inglês Gillray, um de seus mais célebres trabalhos subvencionados pelo governo britânico. Trata-se de uma paródia do imenso quadro de David da teatral e suntuosa cerimônia de coroação de Napoleão em Notre-Dame. Nela, o cortejo imperial é representado de forma grotesca. O imperador aparece vestido como um rei de ópera bufa; Josefina, sua esposa, aparece obesa e deformada; o papa Pio VII, abatido e amedrontado, e os representantes das potências europeias, que ajudam a carregar o manto imperial, malvestidos e mal penteados, parecendo se curvar ao imperador mais por um problema de coluna do que por um respeito verdadeiro.
E além: com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, a má fama de Napoleão desembarcou nos trópicos. Afinal, D. João deixou Portugal escapando dos invasores franceses. Na Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822), primeiro periódico da América portuguesa, o príncipe regente fez circular o discurso e as imagens antinapoleônicas. Um levantamento estatístico das palavras mais utilizadas no jornal para se referir a Bonaparte indica os termos “tirano”, “usurpador” e “corso”. Recebia ainda outras caracterizações nada lisonjeiras, como louco, megalomaníaco ou o próprio anticristo. Enfim, era a soma de todos os males, uma ameaça que parecia estar à espreita e precisava ser combatida. O que se explica não apenas pelo trauma da invasão a Portugal: a intensa propaganda antinapoleônica atendia aos interesses do governo de D. João, justificando uma série de medidas de vigilância na nova sede do Império.
Após a morte de Napoleão, o livro Mémorial de Sainte-Helène (1823), de Emmanuel de Las Cases (1766-1842), teve imensa influência na França. O autor reúne uma série de anotações de conversas com o imperador, a quem acompanhara em seu último exílio. Começava a surgir a chamada “Lenda Napoleônica”, enriquecida ao longo do século XIX por poetas e novelistas comovidos com o trágico destino de Bonaparte. Ele passou a ser visto por muitos como um mártir mantido preso pelos vingativos reis europeus na distante ilha de Santa Helena, próxima à costa ocidental da África, onde morrera solitário. Las Cases descreve um Napoleão que passa a limpo sua carreira e se defende das acusações dos inimigos. Ali ele aparece como o filho da Revolução Francesa, o homem que consolidou a posse da igualdade de direitos, que tornou possível a saída da França do feudalismo, glorificando-a com suas vitórias; que arrancou à força a paz dos monarcas que odiavam a nação revolucionária e que se viu forçado a conquistar a Europa em legítima defesa.
Bom exemplo da influência da Lenda Napoleônica na historiografia é a Histoire du Consulat et de l’Empire (1845-1862), em que Adolphe Thiers (1797-1877) [ver box] demonstra admiração e afeição pelo imperador, aplaudido como o inimigo implacável do imperialismo inglês, o consolidador da Revolução em casa e seu promotor no exterior. Aquele que amou a França e primou pela honra, pelo poder e pelos interesses da nação.
Por volta de 1860, os ataques à Lenda Napoleônica ganharam força no campo da oposição ao governo de Napoleão III (1852-1870), que tinha como um dos seus pilares justamente a veneração ao falecido tio. Em Les Origines de la France Contemporaine (1890), o historiador Hippolyte Taine (1828-1893) exemplifica bem essa ofensiva contra a Lenda Napoleônica. Seu retrato do general-imperador causou sensação ao revelá-lo como uma criatura destituída de humanidade, brutal, cruel, sedenta de conquistas, um malfazejo demônio de origem estrangeira deixado solto na França e na Europa. Para Taine, as paixões violentas o levaram a cometer erros graves e a jamais considerar os interesses da França, que ele arrastou pouco a pouco para o abismo, como faria seu sobrinho. Mas nem esse perfil arrasador impediu o historiador de reconhecer méritos no período napoleônico. Segundo ele, a França devia a Napoleão a restauração da ordem institucional, uma modelar máquina burocrática e o estímulo do princípio da oportunidade para todos (a carreira aberta ao mérito e não condicionada ao nascimento), embora essas condições tenham sido impostas com mão de ferro e pelo silenciamento da opinião pública.
No início do século XX, Napoleão começa a ser apreciado de forma mais contida, ainda que as paixões continuem após a virada do século que viu o auge e a decadência do imperador. Georges Lefèbvre (1874-1959), em seu Napoléon (1935), enfatiza as realizações positivas do imperador e aprecia a grandeza de sua figura, mas não toma partido e evita julgamentos morais. Seu trabalho passou a ser referência nos estudos sobre Napoleão, ao destacar o imperador como um típico homem racionalista do século XVIII, que detestava o feudalismo, a desigualdade civil e a intolerância religiosa. A proteção dada por Napoleão ao nascente capitalismo francês levou ao progresso desse capitalismo e, consequentemente, ao desenvolvimento da burguesia. Por outro lado, seu estilo autoritário afastava-o dos mesmos ideais revolucionários. Era capaz de consultar os demais, mas nunca de debater ou discutir suas decisões. Em resumo: para Lefèbvre, Napoleão foi o último representante do despotismo esclarecido, ao combinar autoridade e reforma política e social.
No Brasil, os estudos sobre o tema tiveram como marco pioneiro o artigo “Napoleão I no Brasil”, de Ferreira da Costa, na Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, em 1903. O autor revela uma trama em que se entrecruzam os acontecimentos revolucionários de 1817 em Pernambuco e planos de fuga de Bonaparte da ilha de Santa Helena. De lá para cá, interpretações brasileiras em torno do personagem foram incipientes, mas é interessante observar o retorno do fascínio por Napoleão em análises mais recentes. Exemplo é Napoleão Bonaparte, em que a historiadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves reconstrói a luta política e ideológica do período por meio de jornais e panfletos políticos.
Tudo indica que o confronto entre as várias interpretações continuará indefinidamente. Diversos Napoleões permanecem flutuando entre a “antiga ordem” e a “nova ordem” – ou entre os valores de antes e depois da Revolução Francesa. Assim como sabia se vender sob variadas facetas, ele se tornou um personagem fluido, cujo esboço não permite contornos definitivos.
A divergência de opiniões sobre Napoleão, que impede que sua figura seja traçada de modo conclusivo, parece ter sido pressagiada no quadro de Jacques-Louis David (1748-1825). Grande nome da pintura neoclássica francesa, David foi um dos principais artistas a auxiliar o imperador em sua política de autoglorificação. O primeiro retrato que o artista fez de Napoleão, enquanto este ainda era general, permaneceu inacabado.
Raquel Stoiani é autora da tese “Napoleão visto pela Luneta d’El Rei: construção e usos políticos do imaginário francês e napoleônico na América portuguesa (ca. 1808-1821)” (USP, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
BERTRAND, Jean-Paul; Forrest, Alan & Jourdan, Annie. Napoléon, le Monde et les Anglais. Guerre de Mots et des Images. Paris: Éditions Autrement, 2004.
GEYL, Pieter. Napoleon For and Against. New Haven/London: Yale University, 1963.
HOLTMAN, Robert. Napoleonic Propaganda. Bâton Rouge: Louisiana State University Press, 1950.
KAFKER, Frank A. & Laux, James M. (ed.). Napoleon and His Times: selected interpretations. Malabar, Flórida: Krieger Publishing Company, 1991.
Saiba Mais - Filmes
“Guerra e Paz”, de King Vidor (1956).
“Monsieur N”, de Antoine de Caunes (2003).
“As Novas Roupas do Imperador”, de Alan Taylor (2001).
“Napoleão”, de Abel Gance (1927).
Revista de História da Biblioteca Nacional
Um comentário:
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