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HERBERT CARVALHO
A transformação da juventude em elemento propulsor do capitalismo por meio do consumo de discos e roupas direcionados a esse segmento do mercado, em expansão desde a década de 1950, assumiu ares de suprema ironia no Brasil quando, em 1965, o politizado publicitário Carlito Maia foi encarregado de batizar um programa de televisão. “A TV Record, de São Paulo, buscava uma alternativa para a transmissão ao vivo do futebol nas tardes de domingo, que os clubes decidiram proibir porque estava esvaziando os estádios. O proprietário da emissora, Paulinho Machado de Carvalho, mostrou o vídeo de um cantor do Rio de Janeiro, futuro apresentador do programa, que se chamaria Festa de Arromba. O cara era sensacional, mas o nome, horrível. Então veio a ideia, de uma frase de Vladimir Lênin: ‘O futuro do socialismo repousa nos ombros da Jovem Guarda’.” A troca do nome de um dos sucessos iniciais da dupla Roberto e Erasmo Carlos pela expressão cunhada, em contexto totalmente diverso, pelo revolucionário russo, representou, dessa forma, o marco inicial de um movimento que durou pouco, mas deixou marcas profundas na cultura e na música brasileira.
Originado nos Estados Unidos em meados da década de 1950 e tocado por conjuntos formados por bateria, instrumentos elétricos e saxofone, com letras quase gritadas por Elvis Presley, Paul Anka, Neil Sedaka e Pat Boone, o rock and roll foi a música de consumo mercadologicamente concebida para a massa de adolescentes da classe média urbana. “Pode-se medir o poder do dinheiro jovem pelas vendas de discos em território estadunidense, que subiram de US$ 277 milhões em 1955, quando o rock apareceu, para US$ 600 milhões em 1959 e US$ 2 bilhões em 1973. O grupo etário até 19 anos gastava, em 1970, cinco vezes mais em discos do que em 1955”, contabiliza o historiador Eric Hobsbawm.
No Brasil o fenômeno se alastra a partir de versões em português de hits do gênero norte-americano, cantadas pelos irmãos interioranos Tony e Celly Campello, paulistas de Taubaté. Reciclado na Inglaterra pela linha melódica dançante introduzida pelo grupo The Beatles, o ritmo logo ficaria conhecido por aqui como iê-iê-iê, nome derivado dos gritos de “yeah yeah yeah”, berrados pelo quarteto de Liverpool na música She Loves You. Assim como as composições dos beatles John Lennon e Paul McCartney influenciaram toda a música pop internacional, entre nós os parceiros Roberto e Erasmo Carlos se encarregariam de “traduzir o estilo e degluti-lo”, por meio do “uso funcional e moderno da voz”, de acordo com a análise do poeta concreto Augusto de Campos, que ao contrário da maioria dos intelectuais da época assegurava que “o iê-iê-iê brasileiro não é, em seus melhores momentos, mera cópia do estrangeiro”.
O primeiro sucesso de Roberto Carlos, entretanto, não seria uma composição própria da dupla e sim a versão feita por Erasmo de Splish Splash, gravada em 1963 pelo futuro Rei do iê-iê-iê com o conjunto musical Renato e seus Blue Caps, que ao lado de outros grupos roqueiros que por aqui surgiram na esteira dos Beatles – como The Clevers, The Jet Blacks e The Fevers – logo estariam na famosa Festa de Arromba. “Eu gostava da música do Bobby Darin e fiz mais uma adaptação do que uma versão. Splish Splash é o barulho de algum objeto caindo na água, na linguagem das histórias em quadrinhos americanas. Não tem nada a ver com o ‘barulho do beijo’ ou do ‘tapa que eu levei’, que foram ideias minhas”, recorda Erasmo.
Segurem suas filhas!
De efetiva autoria brasileira na área do rock, Parei na Contramão foi o primeiro grande êxito da parceria dos compositores líderes da Jovem Guarda. Todo o espírito de rebeldia e o impulso dançante dos jovens estão presentes na gravação marcada pela guitarra, contrabaixo e a voz anasalada de Roberto, cantando a letra que exalta um símbolo de status da juventude, o automóvel. Nessa linha, que impulsionava a recém-instalada indústria automobilística brasileira, surge também, às vésperas do golpe de 1964, Rua Augusta, composição do maestro Hervé Cordovil para seu filho Ronnie Cord, outro ídolo jovem, que falava dos “rachas” na famosa via do centro de São Paulo.
No dia 22 de agosto de 1965, quando já havia guiado seu Calhambeque rumo às paradas de sucesso, Roberto Carlos, com cabelos compridos e terninho de cor clara – seu visual característico dali por diante –, sobe ao palco do auditório da TV Record, Canal 7, na capital paulista. Na plateia, jovens com menos de 20 anos, em completa excitação, aplaudem, gritam e assobiam. O cantor apanha uma flor no chão, olha para o público e a leva aos lábios. Diz frases cheias de gírias (como “broto”, “carango”, “legal”, “coroa”, “barra limpa”, “lelé da cuca”, “mancada”, “pão”, “papo firme” e o bordão “é uma brasa, mora”), curva-se até a altura dos joelhos, estica o braço e anuncia: “O meu amigo, Erasmo Carlos”. Estava no ar o programa que, pelos anos seguintes – quando a ditadura ainda era “envergonhada”, de acordo com a classificação do jornalista Elio Gaspari em sua obra sobre o ciclo militar – provocaria cisões e convulsões na até então pacífica e acomodada música popular brasileira. Apresentaram-se na estreia, além do triunvirato que incluía a figura feminina de Wanderléa, também Os Incríveis, Tony Campello, Rosemary, Ronnie Cord, The Jet Blacks e Prini Lorez, o cantor que gravara La Bamba.
Quarto e último filho do relojoeiro Robertino e da costureira Laura – que mais tarde ele promoveria a Lady Laura na música que compôs em sua homenagem, enquanto o pai seria contemplado na letra de Meu Querido, Meu Velho, Meu Amigo – Roberto Carlos Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES) em 19 de abril de 1939. Aos 6 anos de idade, no dia da Festa de São Pedro, padroeiro da cidade, sofre grave fratura na perna direita quando brincava na via férrea, o que o fará usar uma prótese para o resto da vida. Aprende a tocar piano e violão e aos 9 anos já canta, na rádio local, músicas do repertório de Bob Nelson, artista brasileiro que se vestia de caubói para cantar versões em português de músicas country.
Em 1955, Roberto Carlos vai morar com uma tia em Niterói, mas logo atravessa a baía de Guanabara para se juntar à família, agora instalada no subúrbio carioca de Lins de Vasconcelos. Em 1958, conhece no bairro da Tijuca a turma da Rua Matoso, liderada por Erasmo Esteves que, ao lado de Sebastião Rodrigues Maia – ninguém menos que o futuro Tim Maia –, integrava o conjunto de rock The Snakes, assim batizado em referência ao Bar Snake, frequentado pelos lambretistas em Copacabana.
Corriam então os “Anos Dourados”, marcados pelo desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek de Oliveira, quando a imprensa advertia em manchetes como estas: “Segurem suas filhas: aí vem o rock and roll!”, “Playboys infestam a Zona Sul carioca e a Rua Augusta em São Paulo!”. O grupo ao qual Roberto Carlos se incorpora logo muda seu nome para The Sputniks, apropriação americanizada do primeiro satélite artificial que a então União Soviética colocara em órbita da Terra. Sob essa designação, eles se apresentam em locais fechados e no programa Clube do Rock, liderado pelo produtor artístico Carlos Imperial.
Após uma breve e frustrada incursão como crooner da boate Plaza, onde cantava bossa-nova no estilo João Gilberto, acompanhando-se ao violão – e depois de um primeiro disco gravado com canções do gênero em que foi completamente ignorado pelo público –, Roberto Carlos assume a parceria com Erasmo. E, depois de diversos empregos típicos de um garoto de classe média (porteiro, recepcionista, vendedor e auxiliar de escritório), torna-se secretário de Carlos Imperial, artista multimídia (como hoje seria chamado) com excepcional faro para descobrir e lapidar novos talentos musicais. Por sugestão dele, Erasmo Esteves virou Erasmo Carlos, o que resumia a um segundo nome comum a dupla responsável por mudar, por meios de canções singelas e despretensiosas, o comportamento de uma juventude ansiosa por romper com o modo de vida de seus pais.
“E só tinha o ginásio”
Como a Jovem Guarda fora um projeto concebido pela agência de publicidade Magaldi, Maia e Prosperi, seguindo padrões norte-americanos para impulsionar, além da milionária venda de discos, todo um comércio paralelo de camisetas, calças, saias, blusas, bolsas, sapatos, botas e artigos escolares – sob a marca registrada Calhambeque –, era preciso uma cantora que tivesse os atributos físicos necessários para que nela se espelhasse o público jovem feminino. No momento em que Celly Campello abandonava a carreira para se casar, a escolha recaiu sobre Wanderléa Charlup Boere Salim, mineira de Governador Valadares e descendente de libaneses que tinham a mania de batizar seus filhos com nomes iniciados pela letra W.
Encarnando a mulher ativa, meiga, sensual e liberada das imposições familiares e da repressão sexual, ela desafiava a moral arcaica vigente com suas calças coladas ao corpo, shorts e minissaias que destacavam pernas perfeitas. Gravou seu primeiro LP antes de completar 18 anos e seus principais sucessos foram a melodramática Ternura e a patética e teatral Pare o Casamento. Com o Rei, a Ternurinha e o Tremendão – apelidos de Wanderléa e de Erasmo Carlos em razão de seu porte físico alto, pesado e pleno de energia – estava formada a trinca que em breve iria terçar armas com os compositores intelectualizados da era dos festivais.
“A gente não era universitário, não sabia falar de outras coisas. Eram os nossos problemas, garotas, carros... Eu só tinha o ginásio, a Wanderléa nem isso. E o grosso da nossa plateia era assim também, feito a gente, se identificava conosco.” Neste depoimento de Erasmo está a síntese de Quero que Vá tudo pro Inferno, a canção poética e musicalmente pobre que, entretanto, transformou Roberto Carlos da noite para o dia em líder de audiência na televisão e campeão absoluto na vendagem de discos.
O êxito da Jovem Guarda incomoda os tradicionalistas e provoca uma batalha que estala nos corredores da própria TV Record, cuja programação musical de qualidade era liderada pelo Fino da Bossa, comandado pela dupla Elis Regina e Jair Rodrigues, com atrações que iam dos veteranos Elisete Cardoso e Ciro Monteiro, contratados da emissora desde a década de 1950, aos novos talentos revelados pela bossa-nova e pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Dentre estes, destacavam-se Edu Lobo, Geraldo Vandré e Chico Buarque de Hollanda, vencedores dos primeiros Festivais de Música Popular Brasileira, em 1965 e 1966, respectivamente, com as antológicas canções de Arrastão, Disparada e A Banda, todas com mensagens politizadas sobre a vida sofrida do povo no interior do país e nos centros urbanos.
A luta se deu em várias frentes. Quem se apresentasse na Jovem Guarda, estava automaticamente riscado do Fino da Bossa e vice-versa. O apresentador Flávio Cavalcanti vociferava: “Não consigo entender como a mocidade de hoje prefere ouvir as Wanderléas que surgem por aí, sem nem mesmo lembrar de cantoras como Dolores Duran e Maysa. Estamos caminhando para o caos”. A Ordem dos Músicos falava em impedir de tocar grupos como Os Incríveis e o RC-7, que acompanhava Roberto Carlos, porque seus membros não sabiam ler partituras. O Rei ameaçou ir a Brasília apelar ao presidente da República, caso isso acontecesse.
A tensão culminou com uma passeata no centro de São Paulo que exibia faixas e cartazes contra as guitarras elétricas, organizada pela Frente Ampla da MPB contra o iê-iê-iê, da qual participaram os principais expoentes do Fino da Bossa e dos Festivais. Era um paralelo na área cultural do que ocorria na política: os partidos já haviam sido dissolvidos e a eleição direta para presidente banida, o que provocara a união de Carlos Lacerda, um dos chefes civis do golpe de 1964, com os outrora rivais Juscelino e Jango Goulart na chamada Frente Ampla, logo fustigada pelos militares.
“A cara do Brasil”
Acusados de ser um bando de alienados submissos à influência perversa do imperialismo norte-americano, os defensores do iê-iê-iê começavam a perder audiência, quando receberam o inesperado apoio dos baianos tropicalistas. No III Festival da Record, em 1967, Caetano se faz acompanhar pelos jovens guitarristas argentinos dos Beat Boys na defesa de Alegria, Alegria e Gilberto Gil incorpora Os Mutantes e suas guitarras na apresentação de Domingo no Parque. A música manifesto do movimento, Tropicália, junta o grito de guerra da Jovem Guarda à geleia cultural moderna brasileira: “Domingo é o fino da bossa, segunda-feira está na fossa, terça-feira vai à roça, porém, o monumento é bem moderno, não disse nada do modelo do meu terno, que tudo mais vá pro inferno, meu bem”.
No livro Verdade Tropical, sobre os acontecimentos da época, Caetano Veloso discorre sobre a força mitológica da figura de Roberto Carlos e sua significação como vislumbre do inconsciente nacional: “Ele era, comoventemente, a cara do Brasil de então”. Augusto de Campos também faz um balanço da contenda, simpático aos cabeludos: “Enquanto a música popular brasileira de raízes nacionalistas, apelando à teatralização e a técnicas derivadas do bel canto, descambava para o expressionismo interpretativo e voltava a incidir no gênero grandiloquente, épico-folclórico, de que a bossa-nova parecia ter-nos livrado para sempre, a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos estava muito mais próxima, sob o aspecto da interpretação, da sobriedade de João Gilberto, e conquistava o público, descontraidamente, usando só a lâmina da voz, sem a arma do braço”.
A carreira de Roberto Carlos até se tornar, na década de 1990, o primeiro artista latino-americano a vender mais discos (70 milhões de cópias) do que os Beatles, deu plena razão ao poeta. Atento às oscilações do mercado, o primeiro ídolo fabricado pela televisão e pioneiro das celebridades a serem protegidas por guarda-costas e carros blindados desembarca da Jovem Guarda, em 1968, dedicando-se às baladas que o projetariam internacionalmente a partir de sua vitória, nesse mesmo ano, no Festival de San Remo, na Itália, interpretando Canzone per Te, de Sergio Endrigo. O cantor, que incluíra a música portuguesa Coimbra no LP Jovem Guarda e defendera Maria Carnaval e Cinzas, de Luiz Carlos Paraná, no Festival de 1967, logo daria lugar ao compositor de canções românticas, sua marca registrada a partir do sucesso de Detalhes (parceria com Erasmo, de 1971).
Sem Roberto Carlos – a figura mais emblemática, que abandonara a turma e a postura rebelde para casar-se na Bolívia com a divorciada Cleonice Rossi, tornando-se um pacato pai de família –, o programa Jovem Guarda acaba e se desdobra em outros do mesmo modelo: Ternurinha e Tremendão, sob o comando de Wanderléa e Erasmo; O Pequeno Mundo de Ronnie Von; Linha de Frente, com Os Vips, e O Bom, de Eduardo Araújo. Nenhum deles, porém, com a aura e a força do original que arrebatara corações e mentes em São Paulo e nas outras capitais (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife) onde chegava por meio de videotape.
A partir de 13 de dezembro de 1968, quando, após a edição do AI-5, a ditadura assume-se como “escancarada”, não haveria mais lugar para ingenuidades ou contestações artísticas. Caetano e Gil são presos e vão para o exílio, destino idêntico ao de Chico Buarque. A censura, a tortura e o assassinato de opositores seriam as marcas do regime nos anos que se denominarão de chumbo.
Enquanto nos Estados Unidos se realiza o Festival de Woodstock, no Brasil, em 1969, não há mais resquícios da Jovem Guarda. Os ídolos se foram ou ficaram reduzidos a uma faixa restrita de consumo. Alguns mudaram de gênero, como Sérgio Reis, que fizera sucesso com a canção Coração de Papel: na década de 1970, de chapéu e berrante em punho, ele mergulhou no universo sertanejo. Wanderléa saiu do ar, atingida por um drama pessoal – seu noivo Zé Renato, filho de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, ficara paraplégico após sofrer um acidente. Em 1984, outra tragédia: o filho que teve com o guitarrista chileno Lalo Califórnia morre afogado na piscina de sua casa, aos 2 anos de idade. Erasmo, desencontrado e sem rumo, chega a incorrer pelo samba em Coqueiro Verde, mas é na melancolia de Sentado à Beira do Caminho que ele revela toda a dimensão da crise existencial de sua geração. Nos “caminhões e carros apressados a passar por mim” está a imagem de um tempo feliz que também passou, dos símbolos que se transformaram em “pobre resto de esperança à beira de uma estrada”. No final, a ruptura é nítida: “Preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo”.
Revista Problemas Brasileiros