terça-feira, 12 de agosto de 2014

O malcheiroso molho que Roma adorava



DIAS LOPES
 JADIASLOPES@GMAIL.COM

Questão de gosto. Os romanos gostavam de temperar a comida com um molho de peixe, conhecido pelo cheiro forte e sabor concentrado e picante.

Revelações preciosas sobre o garum, o molho de peixe que temperava a comida diária dos romanos, acabam de ser publicadas por uma autoridade em história da Roma Antiga. No livro Pompéia - O Dia-a-dia da Mítica Cidade Romana (Esfera dos Livros, Lisboa, 2010) a pesquisadora britânica Mary Beard mostra que a cidade do golfo de Nápoles, soterrada no ano 79 d.C. pelo vulcão Vesúvio, foi um importantíssimo centro de preparação e comércio daquele produto.

Os romanos o apreciavam, apesar do cheiro forte, do sabor concentrado e picante, da fama desabonadora com a qual chegou até nós. O escritor latino Plínio, o Velho, que por coincidência morreu sufocado pelo Vesúvio, tentando salvar vítimas da catástrofe, qualificou-o de "líquido de peixe podre". Mary Bread tem informações substanciosas sobre a família de Aulo Umbrício Escauro, um produtor e comerciante de garum, de Pompéia, que enriqueceu graças à atividade.

Os romanos despejavam o molho em tudo. A difusão do livro do gastrônomo latino Marco Gavio Apício, De re coquinaria, fez com que a posteridade o considerasse romano. Estudiosos contemporâneos, porém, acreditam que o molho foi inventado pelos fenícios, a partir de influência asiática. Eles realmente o preparavam em uma da suas colônias, a cidade de Cádiz, no sul da Espanha.

A arqueóloga italiana Eugenia Salza Prina Ricotti, no livro Ricette della Cucina Romana a Pompei - e Come Eseguirle (L’Erma di Pretschneider, Roma, 1993) vê semelhanças entre o garum e o molho vietnamita nuoc nam e o tailandês nam pla. Os molhos de peixe ainda são populares no Sudeste Asiático.

Outros autores lembram que os gregos já apreciavam o garum e o introduziram na cozinha dos povos helenizados. Teriam sido eles os transmissores da receita aos romanos. A designação do molho viria de garon, nome grego de um peixe utilizado no seu preparo.

Certos detalhes do garum dos romanos permanecem desconhecidos, até porque as receitas, além de imprecisas, variavam bastante. O produto de melhor qualidade era feito à base de peixe caro e, alcançando preço alto, tornava-se objeto de contrabando. De modo geral, elaborava-se o molho em vasos de cerâmica. Acrescentava-se um ou muitos peixes, sempre com o sangue e as vísceras, ou vários frutos do mar. A seguir, colocava-se sal, temperos e se deixava fermentar e apodrecer ao sol durante meses. Algumas receitas levavam vinho; outras azeite ou água do mar. Resultavam diferentes tipos de molho.

O primeiro líquido a emergir da fermentação era o garum. Após a filtragem, estava pronto para o consumo. O líquido do fundo se chamava allec. Também se destinava à culinária, apesar do prestígio menor.

Mary Beard conta que Escauro trabalhava junto com a família. Elaborava e vendia vários tipos de molho. Descobre-se isso lendo as inscrições nas ânforas que o vulcão não quebrou. "O melhor molho de peixe", anuncia uma delas, obviamente em latim. "Também (as inscrições) chamam a atenção das versões (do garum) só de cavala, que eram as mais apreciadas pelos connaisseurs desta iguaria", diz Mary Beard. Segundo ela, como o molho exalava mau cheiro durante a feitura, preparavam-no junto à costa, em vasos enormes de cerâmica.

A loja da cidade fazia a distribuição, guardando-o em seis enormes dolia (vasilhas de barro) e colocando-o em recipientes menores na hora de vender. Mary Beard descreve Escauro como um vitorioso novo rico. "Em meados do século I (...), seu filho com o mesmo nome havia alcançado um dos postos mais elevados do governo da cidade, como um dos dois duoviri anuais", escreveu ela. Foi salto prodigioso. Os duoviri ou duumviri eram importantes magistrados da Roma Antiga. Eleitos em dupla, supervisionavam os negócios públicos, interferiam em delicadas questões administrativas e políticas. Nada desprezível para uma pessoa que subiu na vida à custa de "líquido de peixe podre".
Jornal O Estado de S. Paulo

O manual de campanha eleitoral da Roma Antiga


Maria Cristina Fernandes

Do Valor

Como ganhar uma eleição
Por Maria Cristina Fernandes

O título é o nome de um livrinho escrito 64 anos antes de Cristo. É de grande utilidade na temporada eleitoral que se inicia. Políticos, marqueteiros e estrategistas de campanha sempre se serviram dele. Por razões inversas, o texto também pode ser de grande serventia para o eleitor.

Sua leitura é especialmente esclarecedora para saudosistas de um tempo que nunca existiu. Os conselhos de Quinto Túlio Cícero mostram que política nunca se escreveu com 'p' maiúsculo. Talvez porque seja feita por gente. Sem conhecê-la, o eleitor se torna presa fácil do discurso de que só os bem-aventurados são capazes de fazer a política maiúscula, aquela da mitologia.

O autor é o irmão mais novo de Marco Túlio Cícero, um advogado de 42 anos com ambição de se tornar cônsul, o mais alto posto da república romana. Descendem de um rico comerciante do sul de Roma que mandou os filhos estudar filosofia e oratória na Grécia.

Marco Túlio torna-se um grande orador nos tribunais mas, para chegar a cônsul, precisa enfrentar as resistências da aristocracia fornecedora de dirigentes da república. Quinto manda seu irmão repetir para si mesmo: "Sou um 'outsider'. Quero ser cônsul. Esta é Roma".

O voto era direto, secreto e masculino, mas o sistema eleitoral conferia mais peso aos nobres. "Nunca deixe que o tomem por um populista", diz Quinto Túlio ao traçar a estratégia de aproximação do irmão com a aristocracia. Deveria ficar claro para os nobres que todo movimento em direção ao povo se devia a tática eleitoral.

Marco Túlio não deveria se deixar intimidar pelos concorrentes de sangue azul. Um tinha tido a propriedade confiscada por dívida e comprara uma escrava para lhe prestar serviços sexuais. Outro matara o cunhado, molestava jovens garotos e corrompia juízes nos tribunais. Essas questões não precisam ser explicitadas mas os adversários devem saber que são conhecidas. Estava lançado aí o primeiro tijolo das fábricas de dossiês.

Esta é a primeira parte da campanha. Em que o candidato se assenhora de sua ambição e se torna amigo dos mais aquinhoados de dinheiro e poder para não ser por eles barrado. Numa disputa eleitoral, diz Quinto, há duas tarefas: assegurar o apoio de seus amigos e ganhar o do público: "Você ganhará o dos amigos com gentilezas, favores, conexões, disponibilidade e charme".

Marco Túlio Cícero deve lhes dizer nunca lhes ter pedido nada antes e que chegara a hora de fazê-lo. "Faça-os saber que se você ganhar a eleição agora você estará em dívida com eles".

O irmão não deve filtrar aliados pelo caráter. Numa campanha, diz o irmão, você não deve ter vergonha de cultivar amigos com gente de quem nenhuma pessoa decente se aproximaria - "Você será um tolo se não o fizer". Nasciam as diretrizes das megacoalizões eleitorais.

A segunda parte da campanha deve tratar de ganhar o povo. O primeiro passo é conhecer as pessoas pelo nome. Num eleitorado de 141 milhões a tarefa é em parte feita pela propaganda na TV. Gente do povo é escolhida a dedo para representar na TV segmentos do eleitorado com quem o candidato deve mostrar intimidade.

Chamar os eleitores pelo nome não basta. Eles precisam saber o que vão ganhar com sua eleição. Por isso, Quinto diz que o irmão não deve ter o pudor de prometer, ainda que mais tarde seja necessário convencer os eleitores de que não foi possível cumprir o prometido.

O mais prudente, diz Quinto, é ser vago em relação às promessas. Dizer aos nobres que manterá seus privilégios, aos empresários que assegurará a estabilidade de seus negócios e ao povo que sempre esteve e estará ao seu lado. "A parte mais importante da campanha é levar esperança às pessoas e atrair seus bons augúrios", diz Quinto. Mas seu irmão deveria saber que não seria capaz de fazê-lo se confiasse facilmente nas pessoas. "A política é cheia de falsidade, deslealdade e traições".

Marco Túlio Cícero elegeu-se cônsul. Durante seu governo, um dos adversários derrotados conspirou para derrotá-lo. Cícero desbaratou a conspiração e persuadiu o Senado a declarar guerra ao adversário. Quinto foi eleito para o mais alto cargo da magistratura, cargo que só perdia para o de cônsul, em poder e prestígio. Depois foi governador na província romana que se tornaria a Turquia. Os irmãos Cícero tinham dominado os códigos para conquistar e exercer o poder na república romana, mas não sobreviveriam à guerra civil que daria início ao Império. No ano 43 A.C. seriam assassinados.
http://jornalggn.com.br/

Manual do Candidato às Eleições: Marketing político existe há 2 mil anos



Manual da Roma antiga ensinava a candidato como se comportar para ganhar votos

Felipe Van Deursen

“Você deve constituir amizades de todos os tipos: nomes ilustres, os quais conferem prestígio ao candidato; magistrados, para garantir a proteção da lei. (...) Isso requer conhecer as pessoas de nome, usar de certa bajulação.” Tá, parece, mas não é uma cartilha encontrada nas coisas de um dos mais de 19 mil candidatos às eleições deste ano.

Trata-se de um trecho do Manual do Candidato às Eleições, escrito em 64 a.C. em Roma, por Quinto Túlio Cícero. O autor preparou o manual (Commentariolus Petitionis, no original em latim) para seu irmão, Marco Túlio Cícero, ilustre orador e político que naquele ano se candidatava ao posto máximo da República romana: o de cônsul. O manual, embora curto, tinha conselhos valiosos para Cícero conseguir ser eleito. Fortalecer amizades já existentes e conquistar novas, cobrar favores prestados a quem pudesse ajudar na campanha, decorar o maior número de nomes possível, sorrir para todos, ser generoso, fazer promessas mesmo sabendo que não cumpriria todas, pedir votos na rua, estar sempre cercado de multidões, falar a língua do povo e tornar públicos os podres dos adversários.

“Em Roma, onde havia poder havia corrupção”, afirma Laura Silveira, especialista no assunto e doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “E naquela época da República, como era preciso conquistar todos os setores representados no Senado, as dicas eleitoreiras do manual deveriam ser de grande utilidade.” E foram: Marco Túlio Cícero acabou eleito.


Você Sabia
2006? Não: era 64 a.C.
Podres do passado foram explorados na campanha
Felipe Van Deursen

A eleição em 64 a.C. e o mandato de Marco Túlio Cícero no consulado foram marcados por desavenças políticas, golpes baixos, acusações e grandes discursos. Embora o manual tenha ajudado, Cícero não precisou de muito esforço para ser eleito. Seus maiores rivais, Antônio e Catilina, eram homens de passados condenáveis. Quinto Túlio sugeriu explorar isso (“Ambos desde a juventude assassinos, ambos libertinos”, escreveu). Por isso, mesmo não sendo aristocrata, Cícero tinha a confiança da elite.Antônio também foi eleito (eram duas cadeiras de cônsul, com votações anuais) e reconciliou-se com Cícero. Catilina, no entanto, candidatou-se de novo, perdeu e conspirou contra Cícero, sem sucesso. Liderou um exército revolucionário e acabou morto, em 62 a.C. O cônsul condenou à morte os membros da conjuração, mas foi exilado por abuso de poder. Vinte anos depois, o triunvirato formado por Caio Otávio, Marco Antônio e Lépido afastou os irmãos Cícero da política. Os dois foram mortos.


Falam por si
Alguns trechos do manual

Imagem é tudo

“Apesar de os dons naturais valerem muito, (...) um perfil bem forjado pode falar mais alto que a natureza.”

Promessas

“Se você promete (o que o eleitor pede), essa raiva é incerta, futura e se instala em bem poucos. Mas se você nega, provoca irritação no ato e em muitos.”

Rabo preso“Não quero que você ostente isso (a corrupção dos adversários) diante deles de maneira a parecer que já planeja uma acusação, e sim que, pelo simples medo disso, você consiga com facilidade aquilo que busca.”
Revista Aventuras na História