DIAS LOPES
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Questão de gosto. Os romanos gostavam de temperar a comida com um molho de peixe, conhecido pelo cheiro forte e sabor concentrado e picante.
Revelações preciosas sobre o garum, o molho de peixe que temperava a comida diária dos romanos, acabam de ser publicadas por uma autoridade em história da Roma Antiga. No livro Pompéia - O Dia-a-dia da Mítica Cidade Romana (Esfera dos Livros, Lisboa, 2010) a pesquisadora britânica Mary Beard mostra que a cidade do golfo de Nápoles, soterrada no ano 79 d.C. pelo vulcão Vesúvio, foi um importantíssimo centro de preparação e comércio daquele produto.
Os romanos o apreciavam, apesar do cheiro forte, do sabor concentrado e picante, da fama desabonadora com a qual chegou até nós. O escritor latino Plínio, o Velho, que por coincidência morreu sufocado pelo Vesúvio, tentando salvar vítimas da catástrofe, qualificou-o de "líquido de peixe podre". Mary Bread tem informações substanciosas sobre a família de Aulo Umbrício Escauro, um produtor e comerciante de garum, de Pompéia, que enriqueceu graças à atividade.
Os romanos despejavam o molho em tudo. A difusão do livro do gastrônomo latino Marco Gavio Apício, De re coquinaria, fez com que a posteridade o considerasse romano. Estudiosos contemporâneos, porém, acreditam que o molho foi inventado pelos fenícios, a partir de influência asiática. Eles realmente o preparavam em uma da suas colônias, a cidade de Cádiz, no sul da Espanha.
A arqueóloga italiana Eugenia Salza Prina Ricotti, no livro Ricette della Cucina Romana a Pompei - e Come Eseguirle (L’Erma di Pretschneider, Roma, 1993) vê semelhanças entre o garum e o molho vietnamita nuoc nam e o tailandês nam pla. Os molhos de peixe ainda são populares no Sudeste Asiático.
Outros autores lembram que os gregos já apreciavam o garum e o introduziram na cozinha dos povos helenizados. Teriam sido eles os transmissores da receita aos romanos. A designação do molho viria de garon, nome grego de um peixe utilizado no seu preparo.
Certos detalhes do garum dos romanos permanecem desconhecidos, até porque as receitas, além de imprecisas, variavam bastante. O produto de melhor qualidade era feito à base de peixe caro e, alcançando preço alto, tornava-se objeto de contrabando. De modo geral, elaborava-se o molho em vasos de cerâmica. Acrescentava-se um ou muitos peixes, sempre com o sangue e as vísceras, ou vários frutos do mar. A seguir, colocava-se sal, temperos e se deixava fermentar e apodrecer ao sol durante meses. Algumas receitas levavam vinho; outras azeite ou água do mar. Resultavam diferentes tipos de molho.
O primeiro líquido a emergir da fermentação era o garum. Após a filtragem, estava pronto para o consumo. O líquido do fundo se chamava allec. Também se destinava à culinária, apesar do prestígio menor.
Mary Beard conta que Escauro trabalhava junto com a família. Elaborava e vendia vários tipos de molho. Descobre-se isso lendo as inscrições nas ânforas que o vulcão não quebrou. "O melhor molho de peixe", anuncia uma delas, obviamente em latim. "Também (as inscrições) chamam a atenção das versões (do garum) só de cavala, que eram as mais apreciadas pelos connaisseurs desta iguaria", diz Mary Beard. Segundo ela, como o molho exalava mau cheiro durante a feitura, preparavam-no junto à costa, em vasos enormes de cerâmica.
A loja da cidade fazia a distribuição, guardando-o em seis enormes dolia (vasilhas de barro) e colocando-o em recipientes menores na hora de vender. Mary Beard descreve Escauro como um vitorioso novo rico. "Em meados do século I (...), seu filho com o mesmo nome havia alcançado um dos postos mais elevados do governo da cidade, como um dos dois duoviri anuais", escreveu ela. Foi salto prodigioso. Os duoviri ou duumviri eram importantes magistrados da Roma Antiga. Eleitos em dupla, supervisionavam os negócios públicos, interferiam em delicadas questões administrativas e políticas. Nada desprezível para uma pessoa que subiu na vida à custa de "líquido de peixe podre".
Jornal O Estado de S. Paulo