Prof. Dr. Cyro de Barros Rezende Filho
Professor da cadeira de História Antiga e História Medieval
Universidade de Taubaté.
Na civilização cristã que floresce na Europa, uma categoria específica de pobres emerge como minoria: aquela necessária à prática da caridade. Os pobres adquirem, na ótica cristã do período, um caráter de funcionalidade: sempre devem existir pobres, para que os “não-pobres”
possam assisti-los, qualificando-se como bons cristãos. Não se pode erradicar a pobreza! O que na Antiguidade era generosidade, na forma de donativos distribuídos pelo Estado Romano (anona), tornou-se, com o cristianismo, caridade, que, juntamente com a fé e a esperança, compõe as virtudes teologais.
Os Padres da Igreja, que nos primeiros séculos sistematizaram a doutrina cristã, filtraram as noções pagãs de humanidade e adaptaram-nas ao princípio da caridade, dando origem aos conceitos medievais de pobreza e misericórdia. Seguindo as palavras de São Paulo, “Cristo sendo rico, se fez pobre por vós, a fim de que fôsseis ricos pela sua pobreza” (idem, II, Cor, 8-9), deram à concepção cristã da caridade uma abrangência que transforma a humildade espiritual em um impulso em direção a Deus, enquanto procuravam aliviar a humilhação material e social dos pobres. São João Crisóstomo escreveu que “Oferecer um copo de água é oferecer um cálice precioso [...] Não honreis a hóstia com vestidos de seda [...] Honrar igrejas suntuosas é zombar de Deus, desprezando-o nos pobres”; Santo Ambrósio de Milão afirmou que “O desprezo pelo pobre é um assassinato”; Gregório de Nissa exortou a que, coletivamente, “[...] alimentemos, vistamos Cristo”; São Jerônimo dizia que o bom cristão “[...] deveria seguir nu, o Cristo nu”; e Santo Agostinho formulou a definição lapidar “[...] do supérfluo do rico como sendo o necessário do pobre” (MOLLAT, 1989, pp. 21-23).
Essa nova concepção de caridade incorporou-se como parte integrante da doutrina cristã, e passou a refletir a prática do cotidiano. Em um episódio passado no século IV, há uma passagem emblemática, na qual São Martinho de Tours, cavaleiro romano, corta com um golpe de espada seu capote, para dar metade dele a um mendigo, às portas da cidade de Amiens. Episódio pleno de símbolos. Era uma sublimação da pobreza, na medida em que o indigente socorrido representava o próprio Cristo. Era também um incentivo à prática da caridade, dirigido, por intermédio de Martinho, àqueles que, possuindo um cavalo e estando armados de uma espada, dispunham de fortuna, poder e força. A simbologia completa-se com o local do episódio: a cena passava-se às portas de uma cidade, o ponto de encontro entre campo e cidade, entre os universos rural e urbano.
Dessa forma, viu-se, no ocidente, a Igreja afirmar que os bens materiais que possuía, na
verdade, formavam o patrimônio dos pobres, enquanto o bispo passou a representar o duplo papel de pastor e de pai dos pobres. O Concílio de Orleans (511) decretou que os bispos reservassem ¼ de seus rendimentos às necessidades dos pobres, enquanto o Concílio de Mâcon (585) proibiu os bispos de se cercarem de cães de guarda, para não mais impedir que os necessitados deles se aproximassem (HEFELE, 1911, III).
Na prática, as igrejas passaram a elaborar listas dos pobres a serem assistidos em cada paróquia, conhecidas como matricula. Em Reims, já em 470, e em Laon, em 490, aparecem listas de matriculados. Por volta de 590, o bispado de Metz arrolava 726 pobres de suas diversas paróquias, que recebiam, mensalmente, doações de trigo, vinho, toucinho, peixe, azeite, queijo e legumes (BRÉHIER, 1936, IV).
A Vida de Santo Elói, obra que cobre o período 588-660, traz uma passagem lapidar: “Deus
teria podido fazer todos os homens ricos, mas quis que houvesse pobres neste mundo para que os ricos tivessem uma oportunidade de redimir seus pecados” (MIGNE, 1885, 87, col. 533). Trata-se da dialética da pobreza.
Com a progressiva ruralização europeia e a corolária decadência das cidades, os bispos vão sendo substituídos pelos monges, como os principais atores da prática da caridade cristã. Os
mosteiros beneditinos, inseridos em um contexto rural, passam a atender aos pobres que já não se encontravam majoritariamente nas cidades. O monge, voluntariamente o pobre de Cristo (pauper Christi), passa a atender aos pobres involuntários (pauperes inviti). A hospitalidade beneditina torna-se lendária. Ricos, pobres, viajantes, peregrinos, todos, sem distinção, recebem, ao menos, acolhida por uma noite e duas refeições, sendo os necessitados alojados na hospedaria dos pobres (hospitale pauperum), o que já denota uma clara distinção social. E, no século IX, o monge encarregado da admissão de estranhos no mosteiro, o porteiro, passou também a ser o encarregado da administração do celeiro, sinal inequívoco dos tempos.
Aos poucos, institucionalizou-se a distribuição de esmolas pelos mosteiros, com a criação da figura do monge esmoler. Entre suas atribuições estava a de recolher todas as sobras das refeições dos monges, para distribuí-las aos pobres. As datas significativas do calendário cristão, como o Natal, a Páscoa, o dia de Todos os Santos, tornam-se ocasiões de distribuição generalizada de víveres aos necessitados (GOGLIN, 1976, pp. 61-66).
É interessante observar que a instauração da ordem feudal ocasionou a superação da oposição pobre-poderoso (pauper-potens) e fez nascer outra, pobre-cavaleiro (pauper-miles). A carência básica dos pobres passou a ser a de justiça e produziu a união de pobres-monges-bispos, em torno de um objetivo comum: “civilizar” a prática da guerra. Por volta de 990, a Igreja conseguiu impor à sociedade feudal a Paz de Deus, que resguardava, das agressões dos
cavaleiros, os considerados indefesos (inermis), tais como monges, padres, freiras, pastores, crianças, viúvas, mercadores, peregrinos e aqueles que iam ou voltavam da missa. Paralelamente, difundiu-se a aceitação da idéia de que os edifícios das igrejas eram um santuário, sendo banida toda violência, em seus interiores. E, a partir do século XI, a Igreja vai insistir na obediência à Trégua de Deus, uma nova concepção que proibia as lutas e os ataques, do entardecer das sextas-feiras, ao amanhecer das segundas-feiras, durante o Natal, a Páscoa e a Quaresma, fazendo do derramamento de sangue, nesses períodos, um pecado mortal (REZENDE FILHO, 1995, p. 26). A Igreja passou, portanto, a resguardar da violência, endêmica na época, a multidão anônima de indefesos (multitudo inermis vulgi), que compunha a população do ocidente europeu, então majoritariamente rural.
Ao se fazer um balanço do período, pode-se afirmar que a funcionalidade da pobreza foi garantida e assegurada pela ação da Igreja, tanto no campo teórico, como na atuação prática. Mas as distorções avolumavam-se e seriam sentidas nos séculos XII-XIII.
REVISTA CIÊNCIAS HUMANAS – UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ (UNITAU) – BRASIL – VOL. 1, N. 1, 2009.
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