quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Islã em perspectiva

A historiadora e cientista política Beatriz Bissio, autora do livro 'O mundo falava árabe', apresenta uma visão sem simplificações da rica cultura islâmica e resgata parte de sua história a partir da obra de dois autores clássicos do século 14.

Henrique Kugler


A pesquisadora da UFRJ Beatriz Bissio oferece ao leitor um olhar refinado e profundo sobre o florescer do islã, bem diferente da visão simplificada que costuma deturpar essa cultura. (foto: divulgação)


Primeiros séculos da era cristã, Europa em ruínas. Enquanto o velho continente agonizavaem crises profundas, o Império Islâmico vislumbrava um esplendor civilizatório semprecedentes. Não apenas pela conquista de vastos territórios – que se estendiam da península ibérica à Índia –, mas também por reunir os mais sofisticados conhecimentos disponíveis então. Foram os árabes os grandes herdeiros da sabedoria grega.

Também foram eles os compiladores e tradutores das principais obras persas, mesopotâmias, egípcias e hindus. Para os estudiosos, o islã é muito mais do que sugere a fugacidade noticiosa de nossos dias. “Temos em geral uma visão distorcida do islamismo, originada em uma simplificação que deturpa completamente o que é essa civilização e essa cultura.”
“Temos em geral uma visão distorcida do islamismo, originada em uma simplificação que deturpa completamente o que é essa civilização e essa cultura”

São palavras da historiadora e cientista política Beatriz Bissio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em outubro, ela lançou o livro O mundo falava árabe [Civilização Brasileira] durante o 36º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), emÁguas de Lindoia (SP) (ver ‘Diálogos e reflexões’, nesta edição).

É uma elegante narrativa sobre a história doislã a partir de dois autores clássicos do século 14: Ibn Khaldun (1332-1406), destacado historiador que, para alguns, inaugurou o pensamento sociológico islâmico, e Ibn Battuta (1304-1368), viajante que percorreu longas distâncias do norte da África à Ásia e registrou em detalhe o que viu em suas andanças. Da comparação entre esses dois registros – do historiador e do viajante – Bissio oferece ao leitor um olhar tão refinado quanto profundo acerca do florescer da civilização islâmica.


No Brasil, poucos são os escritos sobre o islã. Qual foi sua motivação para lançar O mundo falava árabe? 
Escrevi o livro porque quis aprofundar meus conhecimentos sobre o assunto. Sou também jornalista, e por duas décadas viajei para cobrir a realidade do Oriente Médio e do norte da África. Vivenciei as guerras do Líbano e do Iraque, a questão Israel-Palestina, entre outros temas, na Argélia, Líbia e Egito. Fui uma das fundadoras da revista Cadernos do Terceiro Mundo, em Buenos Aires, em 1974, e sediada no Brasil a partir de 1980. Viajava regularmente ao Oriente Médio e à África, e o islã era sempre um dado da realidade sobre a qual escrevia.

Admirava profundamente a cultura, mas, por nunca tê-la estudado em profundidade, sentia que a minha visão ficava muito restrita aos fatos do cotidiano, nem sempre compreensíveis sem a perspectiva da história. Iniciei um estudo mais sistemático, e disso resultou minha tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense [UFF], posteriormente adaptada em livro.

Por que escolheu Ibn Khaldun e Ibn Battuta como personagens centrais de seu estudo? Quem são esses autores? 
Quis estudar a civilização islâmica a partir do olhar de seus próprios autores, e a obra de Ibn Khaldun, historiador que nasceu em Túnis (atual Tunísia) no século 14, não pode ser ignorada. Ele foi provavelmente o autor islâmico mais representativo de seu tempo. Minha orientadora [Vânia Leite Fróes, da UFF] foi quem sugeriu estabelecer uma espécie de contraponto entre os escritos de Ibn Khaldun e os relatos de seu contemporâneo Ibn Battuta, um viajante que ao longo de quase 40 anos percorreu longas distâncias pelos vastos domínios do Império Islâmico.

Por que Khaldun é considerado tão importante? 
Suas reflexões, traduzidas em vários trabalhos, são extremamente complexas e sofisticadas. Sua obra-prima, os Prolegômenos (Muqaddimah), é considerada o momento fundacional do pensamento sociológico islâmico. Não é uma obra tradicional de história, como as que eram comuns até então, limitadas a narrar cronologias de dinastias. Ibn Khaldun inaugura um estudo que visa o entendimento das causas dos fenômenos históricos e, mais do que isso, os estudos sobre a sociedade humana. Moderno para a época, não? Extremamente moderno.



Uma estátua de Ibn Khaldun na Tunísia e uma ilustração de Ibn Battuta, autores clássicos do islamismo. (imagens: Wikimedia Commons)

É uma descoberta para o Ocidente que um pensador islâmico, no século 14, tenha trabalhado questões que vieram a ser estudadas, no mundo ocidental, somente dois séculos depois. Ao teorizar sobre estado, autoridade e poder, Ibn Khaldun antecipa [Thomas] Hobbes [1588-1679] e [Jean-Jacques] Rousseau [1712-1778]. Fez também descrições detalhadas da relação entre o ser humano e os demais seres vivos. Uma riqueza é a obra de Ibn Khaldun.

E quanto a Ibn Battuta? 
Viajou durante quase 40 anos, por um território equivalente ao que hoje seriam 46 países. O mundo islâmico era alicerçado pela língua árabe; o viajante poderia sair do Marrocos, percorrer toda a Ásia central e chegar à China falando árabe! Era a língua franca da época (daí o título de meu livro).
Ávido por incorporar a sabedoria da valiosa fonte de informações que era Ibn Battuta, o califa encomendou um relato escrito dessas viagens. Assim nasceu aRihla, uma obra fascinante

Ibn Battuta era juiz em Tanger (atual Marrocos) e iniciava sua viagem de peregrinação à Meca, obrigação de todo bom muçulmano. Mas, ao se desprender de seu país e de seu entorno, descobre que tem uma paixão pela aventura, pelo conhecimento, por desvendar os mistérios do mundo – e vai sempre acrescentando novos desafios à sua jornada. Acaba fazendo três vezes a peregrinação. Quando retorna à sua terra, depois de décadas, já havia uma espécie de lenda em torno dele, o viajante que nunca aparece. Pensavam que tinha morrido.

A corte o recebeu muito bem, e o califa estava interessadíssimo em conhecer o mundo pelos relatos daquele viajante que percorrera, por tanto tempo, os domínios daquele que fora o maior império na época medieval. Ávido por incorporar a sabedoria da valiosa fonte de informações que era Ibn Battuta, encomendou um relato escrito dessas viagens. Assim nasceu a Rihla [em tradução livre, ‘jornada’], uma obra fascinante.

Na época já havia uma tradição de literatura de viagens – que se tornou um gênero literário nas letras árabes. Isso se deu principalmente em função da obrigatoriedade da peregrinação à Meca. Onde pernoitar? Que cuidados tomar? Que alimentos serão encontrados pelo caminho? Como planejar o retorno? Naquele tempo, criou-se uma tradição literária em torno dessas questões. No caso de Ibn Battuta, porém, o relato ganhou dimensões muito mais expressivas, pois sua viagem foi a jornada de toda uma vida.

Mas ele percebeu que não teria condições de produzir um texto com a beleza estilística que esse tipo de depoimento exigia. Então ditou suas memórias a um poeta, que deu forma definitiva ao livro. O resultado é muito interessante: um verdadeiro relato etnográfico. Descreve a estrutura social dos locais por onde passou, as vestes, a culinária, os hábitos, as relações de poder, as interações entre homens e mulheres, as formas de se pensar e viver a religião... Trata-se de um documento histórico e antropológico da maior importância.
Revista Ciência Hoje

4 comentários:

Anônimo disse...

olá seja bem vindo aos multiplicadores, muito interessante o seu blog, jà estou seguindo, convido a me visitar:
proaiseartedeeducar.blogspot.com

António Pereira disse...

Boa tarde, Eduardo!
Quero felicitá-lo pelo seu blogue, de que já sou seguidor, e dar-lhe as boas vindas à família dos Multiplicadores.
Abraço luso.
António Pereira
http://acordo-ortografico.blogspot.com
http://portuguesemforma.blogspot.com

Rodrigo disse...

Olá Eduardo passei para conhecer seu blog ele é muito maneiro com excelente conteúdo gostaria de parabenizar pelo seu trabalho e desejar muito sucesso no seu Hiper blog e que DEUS ilumine seus caminhos e de seus familiares e já aceitei você como amigo no diHITT
Um grande abraço tudo de bom

Francisco Valdir disse...

Olá, Eduardo!!!!

Coisa muito boa, essa reunião de blogs dos Educadores Multiplicadores dos conhecimentos!!!! Conhecemos cada blog maravilhoso nas mais diversas abordagens, como o seu aqui, parabéns, amigo!!!! Em termos de história... ficarei freguês de carteirinha desse seu espaço virtual!!!!

Também já estou seguindo o seu blog, coisa que você já faz ao meu, obrigado e, o... http://www.matemagicasenumeros.blogspot.com.br
onde a matemágica toma um aspecto de coisa mágica, rsrsrsrs, está ao seu dispor!!!!

Muita saúde, paz e bastante sucessos!!!!

Uma braço!!!!!