segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Semente de Favela:jornalistas e o espaço urbano da Capital Federal nos primeiros anos da República – o caso do Cabeça de Porco



Semente de Favela: jornalistas e o espaço urbano da Capital Federal nos primeiros anos da República – o caso do Cabeça de Porco. (parte 1)

Richard Negreiros de Paula

Historiador formado pela Universidade Federal Fluminense; foi bolsista no Núcleo de Pesquisas em História Cultural da UFF; autor da monografia intitulada Semente de Favela: imprensa carioca e moradia popular em fins do XIX – o caso do Cabeça de Porco, orientada pela Profª Drª Martha Abreu . Atualmente é o editorchefe da revista Cantareira

Este artigo pretende tratar da reação da imprensa carioca sobre a demolição do Cabeça de Porco, maior cortiço da época, bem como sobre os primórdios do processo de favelização da cidade do Rio de Janeiro.
Em linhas gerais, o Rio de Janeiro no final do século XIX acumulou as funções de grande centro econômico e político do Brasil, emergindo como uma cidade inserida no, até então, restrito conjunto das chamadas “grandes cidades”. Esta condição impôs aos governos a necessidade de intervir no espaço urbano, levando a ordenar as condutas, normalizando as vidas e a sociedade. Assim, a questão urbana surgiu como um problema derivado das transformações econômicas e sociais, a ser, para os homens do Estado, de alguma maneira resolvida.
Diante deste problema, os homens responsáveis em transformar o espaço, o fizeram não só fisicamente, demolindo e reconstruindo, mas também modificando o modo de enxergar e pensar a cidade. Desta maneira, a “cidade desejo”, aquela imaginada pelos homens do governo, empresários, engenheiros, médicos, arquitetos, e todos os outros responsáveis por sua mutação, “realizada ou não, existiu como elaboração simbólica na concepção de quem a projetou e a quis concretizar”.2
Essa operação realizada sobre o espaço urbano foi apropriada e interpretada pelos diferentes homens que entraram em contato com a cidade. Ou seja, estes novos signos, produzidos pelos que detinham o poder de projetar a cidade, foram inseridos o “vaivém dos sentidos conferidos aos espaços e sociabilidades urbanas atribuídos pelos rodutores e consumidores da cidade”3. Entre os leitores da urbe, destaco a ação daqueles que podemos chamar de ‘leitores especiais’, por possuírem a habilidade singular de esquematizar e registrar o que foi lido.
“No tocante a estes ‘espectadores da urbe’, há que distinguir entre o que se poderia
chamar de ‘cidadão comum’ ou ‘gente sem importância’, que constitui a massa da população citadina, e os que poderiam ser designados como ‘leitores especiais da cidade’, representados pelos fotógrafos, poetas, romancistas, cronistas e pintores da cidade. Naturalmente, há uma variação de sensibilidade e educação do olhar entre os dois tipos de consumidores da urbe”.4
Desta forma, não nego a capacidade que o cidadão comum possui de ler e interpretar a cidade. Por outro lado, uma vez reconhecidas as diferenças que há entre estes e os reconhecidos como “leitores especiais”, julgo ser as entrelinhas do que os jornalistas leram e traduziram para o papel o campo que acredito como sendo fértil de interpretações sobre o espaço urbano e seus componentes como um todo.
A realização de um estudo sistemático sobre a história da Imprensa no Brasil, no período imediatamente seguinte à proclamação da República, que tenha como foco a cidade do Rio de Janeiro, significa elucidar a história do desenvolvimento de sua sociedade no sistema capitalista, dos embates das ideologias e da produção de opiniões neste espaço social delimitado, tendo em vista suas interconexões com o reordenamento sócio-espacial desta cidade no período.
O primeiro questionamento que podemos levantar refere-se ao poder inerente à imprensa no que condiz à memória. A construção da memória torna-se ainda mais contundente quando se trata da forma de comunicação escrita, uma vez que codifica o acontecimento do presente para o futuro. Esta talvez seja “a tradicional esfera de ação do historiador, as memórias e outros ‘relatos’ escritos (outro termo relacionado a lembrar, ricordare em italiano). Precisamos é claro, no lembrar de que esses relatos não são atos inocentes da memória, mas antes tentativas de convencer, formar a memória de outrem”5.
Assim, a imprensa exerce seu papel de agente histórico, onde estão registrados discursos e expressões de protagonistas da história que podem ou não vir a causar algum tipo de ação nesta sociedade, como bem explica Pierre Bourdieu “(...) o fato de relatar, to record, como reporter, implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização)”6.
Dando prosseguimento à discussão sobre a construção da memória, devemos lembrar que esta pode ser construída de maneiras diversas. Ou seja, já é lugar comum dentro do métier dos historiadores, o reconhecimento da existência de instrumentos de transmissão da memória que vão além da forma de comunicação escrita. O espaço também pode vir a ser considerado um lugar de memória. De acordo com Peter Burke7, ao se explorar a associação de idéias dentro do espaço, este se torna um eficiente meio de construção de memória.
Desta maneira, o principal objetivo deste artigo é analisar as representações elaboradas pela imprensa carioca sobre o espaço urbano do Rio de Janeiro no final do século XIX. Ou seja, qual interpretação – ou quais interpretações - que estes produtores de memória, os jornalistas, elaboraram sobre uma memória já criada? Para facilitar o trabalho, podemos tecer nossas considerações e conclusões sobre o assunto nos apoiando em três grandes jornais do período: o conservador Jornal do Commercio; o moderado Gazeta de Notícias; e o Jornal do Brasil, opositor ao regime republicano8.
A idéia de que a Capital Federal necessitava de reformas foi bastante recorrente durante o momento analisado. Este pensamento ocupou as mentes de uma considerável parcela de políticos, médicos, empresários e jornalistas, que visavam transformar a imagem da cidade porta de entrada do país. Assim, questões como higiene pública, moradia popular, transformação do espaço urbano e violência, fizeram parte do hall de notícias comuns entre os jornais cariocas no último decênio do XIX. Exemplo disso foi a ampla ‘cobertura’ jornalística dedicada à demolição do maior cortiço que o Rio de Janeiro já teve notícia: o Cabeça de Porco.
No dia 26 de janeiro de 1893, a cidade do Rio de Janeiro assistiu a demolição de seu maior cortiço: o Cabeça de Porco. Este entrou para a história como sendo o marco inicial no processo de transformação do tipo de moradia das camadas populares. À vista disso, pretendo focalizar como tema central deste artigo os discursos sobre a demolição do Cabeça de Porco, veiculados pelos jornais acima delimitados, bem como os temas adjacentes, tais como: salubridade e segurança pública, necessidade de transformação da Capital Federal etc.
É possível compreender melhor a força motora da iniciativa de se derrubar este cortiço, se entendermos o quadro político da cidade na época. Uma vez que a sociedade carioca estava experimentando uma transformação radical no seu sistema político. Recém saídos do Império e ingressando no sistema da República, a idéia da necessidade de substituir o velho (ligado ao regime anterior) pelo novo (de acordo com as novas padronagens republicanas) tornou-se mais forte e incisiva entre os responsáveis em pensar o espaço urbano. Da mesma forma que o discurso médico organizou seu arsenal ideológico em prol de se realizarem mudanças cada vez mais profundas sobre a configuração urbana do Rio de Janeiro. Sobretudo no que condiz à forma de moradia da população pobre, considerada imunda e fonte de miasmas que a todos afetariam.
O Cabeça de Porco foi o símbolo do que deveria ser extirpado do Rio de Janeiro, pois reunia todos os atributos que se chocavam com o ideal de urbanidade imaginada pelos encarregados de “pensar a cidade’. Local de moradia da camada pobre, tido, de certa forma, longe do alcance do controle da República, além de seu ambiente que era possuidor das características consideradas como insalubres pelos higienistas, representou um desafio a ser vencido pelo governo.
Antes de dar prosseguimento a este trabalho, é importante compreendermos, ao menos em termos gerais, os caminhos percorridos pelos jornalistas entre a coleta de informações (dos fatos jornalísticos) até o momento em que transformam estas informações para o formato de texto publicado no jornal.
Para Bourdieu9, o ato de codificar, pondo em termos generalizantes, implica em “colocar na devida forma e dar uma forma”, ou seja, moldar algo que ainda não tem forma precisa, e que por sua vez, implica em alguns casos o fato de objetivar. A objetivação, operada pela codificação, introduz a possibilidade de um controle lógico da coerência, de uma formalização. Ela possibilita a instauração de um normatividade explícita, assim, se dá uma oficialização/legitimação de certas regras, uma legitimação de determinada visão de mundo ou acontecimento social. Conseqüentemente, por ser instauradora de leis sociais, a codificação possibilita um sentido de manutenção de ordem no nível da simbologia, pois cada símbolo corresponderá respectivamente a um, e somente um, significado prático.
A codificação está intimamente ligada à disciplina e à normalização das práticas.
Verifica-se ao transportarmos essa definição para o terreno da informação, que o ato de pôr no papel determinado movimento do mundo social, seja esse intelectual ou prático, implica na oficialização e ordenação de idéias que até a pouco se encontravam de forma fluídica dentro da sociedade, assim, é gerada uma determinada face ou interpretação ao objeto enfocado.
Bourdieu completa este raciocínio sobre codificação com as seguintes perspectivas de sua conseqüência: tornar algo público, homologar e formalizar. A primeira perspectiva é explicada pelo fato de que objetivar (conseqüente da codificação) é também tornar algo público, ou seja, à disposição de todos, um autor no verdadeiro sentido é alguém que torna públicas coisas que todo mundo percebia confusamente. Um determinado número de atos torna-se oficial a partir do momento em que são públicos, publicados, assim, no caso da matéria jornalística essa se constitui de uma oficialização de determinada realidade social que obedecerá sempre a determinados condicionantes.
Quando quem escreve, seleciona determinados fatos em detrimento de outros, se vale de uma forma de narrativa, define o lay-out de como o texto será impresso no jornal, ou quando emprega recursos que sustentem suas idéias – como fotografias, transcrições de depoimentos, etc – está, na verdade, fazendo o jogo dialético de lembrar e esquecer, fazendo com que perdure para a memória escrita a sua codificação do acontecimento presente.
Já homologar, implica em imprimir significado único e comum a um determinado objeto/sujeito, “assegurar que se diz a mesma coisa quando se dizem as mesmas palavras, assim a publicação é uma operação que oficializa, e que, portanto, legaliza, porque implica a divulgação, desvendamento em face de todo, homologação, e o consenso de todos sobre a coisa assim revelada” 10. Portanto, a imprensa objetiva tornar a apreensão da realidade social única e de único significado, produzindo com isso um nivelamento de idéias, que parte dela para a sociedade. Assim, a formalização entra como a confirmação dessa teoria, pois codificar implica na solidificação (em forma de senso comum) e, finalmente, no controle de idéias que se encontravam antes, como referido acima, de maneira fluídica dentro da sociedade.
Todo o desenvolvimento teórico da codificação está dentro do contexto das lutas sociais, pois a partir do momento que algo é codificado, ou seja, oficializado em uma determinada forma e com isso apresentado ao público sem possibilidade de outras apreensões, há latente possibilidade de embates que podem ter por motivo desde a construção da memória de um determinado grupo, até o fato de determinada prática posta como código não ser reconhecida unanimemente.
Bourdieu11 dizia que parte das lutas sociais deve-se justamente ao fato de que nem tudo está homologado e que, se há homologação, ela não põe fim à discussão, à negociação e até mesmo à contestação. Assim, a imprensa também é um espaço de disputa de poder a partir do momento, como referi linhas acima, vai dar forma específica aos conteúdos por ela elaborados e com isso fazer valer determinadas visões de mundo, que estará representando os interesses (seja eles quais forem) de determinado segmento ou grupo social.
Imediatamente após a derrubada do regime imperial e a instauração do sistema republicano, havia no Rio de Janeiro uma imprensa variada e numerosa, composta principalmente por pequenos e efêmeros jornais. No entanto, a situação tendia para a pequena imprensa ceder seu lugar à grande. Cada vez mais os jornais assumiam o caráter capitalista/mercantil da sociedade onde estavam inseridos. Os jornais que tinham capital suficiente modernizavam-se, modificavam suas artes gráficas, adquiriam máquinas cada vez mais modernas e caras e, pouco a pouco, assumiam o lugar das pequenas prensas.
O objetivo era aumentar a produção, baratear custos e atrair a atenção do leitor.
Caso notável, o Jornal do Brasil no início do século XX chegou a pôr em circulação 50.000 exemplares, sendo superior a La Prensa de Buenos Aires, até então o que possuía maior circulação na América do Sul12. Esta mudança na produção também vai afetar a relação entre jornal e jornalistas, distribuição do material, anunciantes, governo, e leitores. Desta forma, com o aprimoramento do seu papel de fazer circular suas idéias, podemos ter uma idéia de como foi importante o papel desempenhado pela imprensa no exercício do poder sobre a populosa e heterogênea sociedade do Rio de Janeiro de fins do XIX.
“A imprensa do início do século, havia conquistado o seu lugar, devido a sua função (...), significava muito por si mesma, e refletia, mal ou bem, alterações que, iniciadas nos últimos dois decênios do século XIX, estavam mais ou menos definidas nos primeiros anos do século XX”.13
Evoluiu também a forma que se faziam os anúncios. Em meio aos avisos de chegada e partida dos navios, é possível se perceber um maior capricho na elaboração da propaganda. Exemplo disso foi a atuação de autores do nível de Olavo Bilac, que “recebia cem mil réis por uma quadrinha proclamando a qualidade de determinada marca de fósforos”14. Isto significou um incremento na rendas dos jornais, sendo um dos fatores de crescimento da circulação, da necessidade de se modernizar, contratar mais jornalistas, de fazer com que o jornal abarque um número cada vez maior de leitores.
Robert Darnton15 expõe que o jornalista desenvolve uma maneira de escrever ancorada na linha editorial do jornal. Mas, além disso, este jornalista desde o momento que ‘escolhe’ uma notícia e lhe dá a forma escrita, está sendo indiretamente influenciado por sua idade, estilo de vida e formação cultural. Ou seja, como bem definiu Bourdieu16, cada jornalista possuía um “óculos” que lhe permite enxergar o acontecimento que será lido e traduzido do mundo intelectual e/ou prático para as páginas do jornal.
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Revista Cantareira

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