domingo, 14 de setembro de 2014

Erros e acertos do fenômeno "O Capital no Século 21"

SAMUEL PESSÔA
ilustração LOURIVAL CUQUINHA
MARTIN JOHN CALLANAN



RESUMO Lançado na França em 2013, livro de Thomas Piketty estourou ao sair em inglês neste ano. Pesquisa do francês e sua equipe gerou valiosa base de dados sobre desigualdade, mas livro, que recupera ideia marxista de compulsão à acumulação, falha ao desconsiderar efeitos do comércio internacional na evolução do capitalismo.

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"O Capital no Século 21" consolida década e meia de trabalho do pesquisador francês Thomas Piketty ao lado de uma equipe de colaboradores, cujos achados foram publicados em outros dois volumes e em diversos artigos acadêmicos nas melhores revistas internacionais. A maior contribuição desse esforço coletivo de pesquisa é um exaustivo trabalho historiográfico que resultou na construção de bases de dados de desigualdade de renda e de riqueza, para diversos países e ao longo de décadas.

É difícil fazer uma avaliação criteriosa do ainda recente volume, que, lançado originalmente em francês, em 2013, pela Seuil, explodiu em nível global a partir de sua tradução para o inglês, neste ano, pela Harvard University Press. A obra chegou às listas de mais vendidos e gerou tal comoção que a editora Intrínseca, que deve lança-lo no Brasil em novembro, já colocou o título em pré-venda em sites de livrarias.

Se o resultado cristalizado na publicação ainda é passível de controvérsias, e elas têm aparecido, provavelmente o esforço coletivo de pesquisa justificaria um prêmio Nobel para a equipe capitaneada pelo docente francês -Piketty, 43, leciona na Escola de Economia de Paris desde 2007 e na Ehess (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) desde 2000.
Lourival Cuquinha/Divulgação 


Em artigo publicado há duas semanas, o jornal britânico "Financial Times" questionou a credibilidade dos dados usados na pesquisa e, em sua edição de junho, a revista conservadora "The American Spectator" afirmou que Piketty propõe um "confisco" de fortunas. Mas é difícil imaginar que haja erros de fato grosseiros, a ponto de desqualificar os achados do grupo, e que tenham escapado aos pareceristas dos conceituados "Journal of Political Economy", "Quarterly Journal of Economics" ou "American Economic Review" -publicações em que Piketty e colaboradores publicaram várias das conclusões que estariam no livro.

PROPÓSITOS

A publicação de "O Capital no Século 21" parece atender a dois objetivos de seu autor. Primeiro, defender uma posição política muito clara. O texto é um manifesto de defesa da social-democracia europeia continental com Estado grande e provedor dos serviços e seguros sociais básicos -saúde, educação, previdência e assistência social- e de instrumentos tributários que impeçam a concentração excessiva de renda e riqueza. O volume cumpre muito bem esse objetivo normativo. Os autores liberais e libertários terão trabalho e gastarão muito tutano respondendo ao libelo de Piketty. Trata-se de contribuição importantíssima ao debate público.

O segundo objetivo foi construir uma narrativa do desenvolvimento do capitalismo desde meados do século 19 até os dias de hoje e, possivelmente, para o resto do século 21. Uma narrativa que permita organizar e dar coerência ao conjunto de evidências empíricas desvendadas ao longo do trabalho dos pesquisadores nos arquivos.
Livro
O Capital no Século XXI
Thomas Piketty



Trata-se de uma obra de sistematização. É nesse sentido que o volume assume a grandiloquência de clássicos como "A Riqueza das Nações", de Adam Smith, "Princípios de Economia Política e Tributação", de David Ricardo, ou "O Capital", de Karl Marx. Embora, claro, somente a passagem do tempo dirá se o livro é o clássico que promete ser. Por ora é possível afirmar que a narrativa que o livro nos oferece para organizar os inúmeros achados e fatos empíricos descobertos por Piketty e seus colaboradores é, na melhor das hipóteses, muito incompleta.

Do ponto de vista teórico, o autor parte da rejeição da teoria padrão que os economistas construíram para explicar a poupança, que é a forma de transmissão intertemporal de renda, e, portanto, a acumulação de capital.

Segundo a teoria padrão, a principal motivação para a acumulação de capital é a transferência de renda de um indivíduo para si mesmo, de sua idade ativa para a velhice. A teoria de poupança ao longo do ciclo de vida -que rendeu o Prêmio Nobel de 1985 ao economista ítalo-americano Franco Modigliani- sustenta que as pessoas poupam enquanto trabalham para consumir na velhice.

Entre muitas outras, a teoria de ciclo de vida prevê que a parcela da riqueza transmitida por meio de herança tem que ser relativamente pequena. A herança seria riqueza não intencional deixada pelos pais aos filhos em função de incerteza com relação à data da morte. Como não sabemos o momento exato da morte, ao morrer sempre sobra algo que os filhos herdam.

ACUMULAÇÃO

Para Piketty, a partir de certo nível de riqueza, a renda gerada pelo capital é tão elevada que é possível sustentar com ela níveis elevadíssimos de consumo e simultaneamente acumular e legar para seus herdeiros mais do que se recebeu. O capital se acumula de forma automática. Aqui Piketty ecoa Marx.

Para os que muito têm, é relativamente barato gerir o patrimônio e conseguir retornos elevados, fato não possível para os pequenos poupadores. O elevado retorno à escala da indústria de gestão de riqueza exerce pressão concentradora adicional. Está criado o capitalismo rentista e patrimonialista no qual o acesso à riqueza depende cada vez mais da sorte de nascer na família certa do que de seu esforço e mérito.

É evidente que Piketty se preocupa com o início do patrimônio. Ele argumenta que a acumulação inicial deve-se a sorte, acaso e, muitas vezes, a mérito -esforço, trabalho diligente e inovador, talento. Mas diz que a riqueza, meritória ou do acaso (e, muitas vezes é impossível distingui-las), transforma-se rapidamente em riqueza sem risco e de rendimento perpétuo. A taxa de retorno do capital é a renda percentual do capital, ou seja, uma taxa de retorno de 5% ao ano significa que o fluxo de renda gerado pelo capital equivale a 5% do valor do capital.

Uma vez constituído o patrimônio, a descendência proprietária passa a pertencer ao invejado clube dos indivíduos que, pelo nascimento ou casamento, não precisarão pelo resto de seus dias se preocupar com como pagarão suas contas.

Apesar das diferenças -a acumulação primitiva de Marx resultava de roubo, pirataria e expropriação (aparentemente o capitalismo melhorou)-, para ambos o capital acumula-se automaticamente. O paralelismo com Marx termina aqui. Piketty considera que a economia de mercado com propriedade privada dos meios de produção é a forma mais eficiente de organização da atividade econômica.

Neste aspecto a quarta e final parte do livro tem paralelismo com a Teoria Geral de Keynes: mensagem reformista, que reconhece os méritos, mas identifica falhas no funcionamento da economia de mercado e sugere políticas para "consertar" a máquina.

DISTRIBUIÇÃO

Os economistas trabalham com dois conceitos de distribuição de renda. A distribuição interpessoal da renda descreve como a renda gerada, de capital e de trabalho, é distribuída entre as famílias. A distribuição funcional da renda descreve a divisão da renda entre capital e trabalho.

A distribuição funcional da renda é um conceito simples. Um único número -a parcela do capital na renda, ou seu complemento, a parcela do trabalho na renda- descreve-a integralmente. A distribuição interpessoal da renda é um conceito matemático muito mais complexo do que um número. Para facilitar a análise, os estatísticos inventaram números que sintetizam a desigualdade. Os mais conhecidos são os índices de desigualdade de Gini e de Theil.

Piketty prefere outros indicadores. Para descrever a desigualdade interpessoal de renda, acompanha particularmente a parcela da renda apropriada pelos 50% mais pobres, pelos que estão entre os 50% e 90% mais ricos, os 10% mais ricos, o 1% e o 0,1%.
Martin John Callanan 

O autor assevera que o capitalismo tende à concentração de ambas as distribuições, interpessoal e funcional. Ao longo das três primeiras partes do livro, apresenta para os países europeus e para os EUA a evolução do produto per capita; a evolução da riqueza da economia e da sua natureza, se pública ou privada, da terra, do capital físico ou dívida pública; a evolução da renda do capital; da relação capital-produto; da participação do capital na renda; e, finalmente, a evolução da distribuição interpessoal da renda e da riqueza.

Piketty e seus colaboradores encontraram um ciclo de concentração de renda que termina com a Primeira Guerra. Entre 1914 e 1974 toda a dinâmica se inverte. Há redução da relação capital-produto, reduz-se a participação do capital na renda, e a distribuição interpessoal da renda e da riqueza melhora para os diversos indicadores de desigualdade interpessoal de renda empregados na obra, além da parcela da riqueza existente derivada de herança ter se reduzido expressivamente. A partir de 1974 a dinâmica do capitalismo retorna ao seu curso normal. Há um novo ciclo concentrador.

Segundo o estudioso, a melhora distributiva nas seis décadas entre 1914 e 1974 deveu-se à sucessão de tragédias -duas guerras mundiais e, entre elas, a Grande Depressão- que destruíram muito capital. Adicionalmente, no pós-Guerra houve em diversos países a imposição de impostos confiscatórios sobre a riqueza, além de apoio a instituições que aumentaram o poder de barganha do trabalho frente ao capital e a criação do Estado de bem-estar social. Finalmente, a repressão financeira das décadas de 50, 60 e 70 promoveu redução forçada do endividamento público e houve a estatização de diversos setores.

Essa dinâmica foi quebrada pelo neoliberalismo de Reagan e Thatcher. O pacote de políticas que inclui a desregulamentação dos diversos mercados, forte redução das barreiras comerciais nos anos 80, e, nos anos 90, das barreiras à mobilidade internacional de capitais, além da privatização de diversos setores produtivos, alterou o poder de barganha do trabalho nos países centrais. Sem a regulação estatal, o capitalismo retomou seu rumo concentrador. Voltamos à dinâmica da "belle époque".

Se nada for feito retornaremos ao mundo de Jane Austen ou Balzac, no qual a melhor forma de alcançar uma vida confortável é casar com a pessoa certa. O livro documenta em detalhes a familiaridade que os escritores do século 19 tinham com o funcionamento do capitalismo patrimonialista.

O elemento final de preocupação de Piketty é a manutenção das instituições democráticas. Para ele, a dinâmica normal de uma economia de mercado que resulta necessariamente no capitalismo patrimonialista coloca em risco a democracia como a conhecemos. Ele afirma que a democracia seria incompatível com excessiva concentração de riqueza.

PORÉNS

O primeiro reparo que se pode opor à narrativa de Piketty se refere à tendência de elevação da participação do capital na renda conforme a quantidade de capital cresce. Evidentemente, quando a quantidade de capital se eleva, sua taxa de retorno cai.

A questão é a intensidade dessa queda. Se a taxa de retorno cair proporcionalmente menos do que a quantidade de capital, a participação do capital na renda se eleva. Se a queda da taxa de retorno for proporcionalmente maior do que a elevação da quantidade de capital, a participação dele na renda se reduzirá "pari passu" à elevação da relação capital-produto.

Em qual mundo vivemos? Segundo o livro, em um mundo no qual a acumulação de capital eleva a participação do capital na renda.

O autor considera que a forte flexibilidade tecnológica permite que a queda do retorno do capital, diante do aumento de sua quantidade, seja pequena. A flexibilidade tecnológica significa que é relativamente simples substituir trabalho por capital. Ou seja, quando a quantidade de capital se eleva, o retorno não se reduz muito, pois seria relativamente fácil transferir atribuições do trabalho ao capital.

Diversas estimativas sugerem, no entanto, o oposto. Não seria tão fácil assim substituir trabalho por capital. Portanto, conforme o estoque de capital cresce, seu retorno cai mais do que proporcionalmente. Por que motivo Piketty obteve resultado oposto? A maior falha analítica de uma narrativa tão abrangente do desenvolvimento do capitalismo desde o século 19 até hoje é não ter incorporado a questão do comércio internacional de bens e serviços e da mobilidade internacional de capital.

PAX

Um dos períodos de plena prevalência do capitalismo patrimonialista é, segundo Piketty, a "belle époque", final de um período que os historiadores econômicos conhecem por Pax Britannica.

Essa época se inicia com o fim das guerras napoleônicas, seguido pela suspensão das leis que impediam a Inglaterra de importar cereais (as "Corn Laws") e pelo desenvolvimento do telégrafo e do navio a vapor e de casco de metal.

Tais inovações tecnológicas, em associação com o domínio britânico sobre os mares, geraram a primeira grande globalização, inaugurando o comércio de longo curso de commodities agrícolas e minerais, além de forte mobilidade de capital. Havia investimentos britânicos em ferrovias mundo afora.

É desse período o expressivo desenvolvimento econômico do Cone Sul latino-americano, São Paulo incluída, dos EUA, e do Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A Pax Britannica terminou tragicamente com a eclosão da Primeira Guerra.

É impossível entender o que ocorria com a remuneração do capital e do trabalho nos países centrais sem considerar o comércio e o seu impacto sobre a remuneração dos fatores de produção. Certamente a menor queda do retorno do capital nesses países resultava não de maior flexibilidade tecnológica, mas sim da possibilidade de vender bens manufaturados a mercados que ofertavam bens primários.

É surpreendente que Piketty não considere com cuidado os estudos de diversos historiadores sobre o tema. É impossível entender a evolução da renda dos fatores de produção no período em questão sem um diálogo minucioso com os trabalhos de John Williamson, John O'Rourke, Ronald Findlay e Alan Taylor, entre outros, frutos de pesquisas que se estenderem pelas últimas duas décadas.

GLOBALIZAÇÃO

Analogamente, o período de 1914 até o pós-Guerra é conhecido pelo forte fechamento das economias ao comércio e à mobilidade de fatores. Parte da queda do retorno do capital nas economias centrais resultou dessa dinâmica.

O grau de abertura do mundo só veio a ultrapassar os níveis observados até 1914 na virada dos anos 1980 para os anos 1990 -a segunda grande globalização teve início na década de 1970, e a ela se deve boa parcela da moderação na queda do retorno do capital e da tendência recente à elevação da participação do capital na renda nos países centrais. Por outro lado, a nova globalização explica boa parte da queda de pobreza que tem ocorrido na Ásia nas últimas décadas, provavelmente a maior da história.

É difícil imaginar que a incorporação de 1/3 da humanidade ao mercado internacional de trabalho não afetaria a evolução da renda do capital e da renda do trabalho nos países centrais. Ou seja, a dinâmica que Piketty enxerga como uma realidade tecnológica e regulatória interna às nações possivelmente sofreu forte influência do comércio internacional.

É preciso lembrar que, se considerarmos indicadores sintéticos de desigualdade, como Gini ou Theil, ela vem se reduzindo nas últimas décadas. Apesar de a desigualdade ter se elevado nos países centrais e na Ásia, ela tem se reduzido no mundo. O motivo é que a queda da desigualdade entre os países, em função do crescimento da Ásia, tem mais do que compensado a elevação da desigualdade no interior de cada país. Ou seja, a desigualdade em um país hipotético fruto da união de EUA com China, por exemplo, tem caído.

As conclusões de Piketty com relação à evolução futura da taxa de retorno do capital e da relação capital-produto não são imunes à dinâmica global. A continuidade do forte processo de acumulação de capital na Ásia provavelmente produzirá, após o esgotamento do crescimento do volume de comércio, redução bem mais acentuada do que ele imagina nas taxas de retorno do capital. Parece, aliás, que já estamos atingindo este ponto.

CONTENDA

O volume apresenta outras deficiências e imprecisões técnicas que têm motivado intenso debate entre acadêmicos. (Para os leitores interessados, um apêndice trata sobre esses temas.)

No capítulo dedicado à descrição da fortíssima elevação da concentração ocorrida na economia americana nas últimas quatro décadas, Piketty se mostra ciente de que o processo do lado de cá do Atlântico é diverso do que ocorre na outra margem. Enquanto na Europa já há sinais de aumento da desigualdade liderada pela desigualdade do capital, nos EUA aumentou fortemente a desigualdade da renda do trabalho.

Sabe-se que a fortíssima elevação da desigualdade de renda do trabalho está associada à elevação da remuneração do talento.

Certamente a diferença de salário que há entre Neymar e qualquer jogador de futebol da terceira divisão não resulta do esforço e do empenho de Neymar ao longo dos treinamentos em toda sua vida. O diferencial resulta de seu maior talento, incluindo aí a sorte de ter particular capacidade pra recuperar-se de contusões. Argumentos análogos aplicam-se a artistas, esportistas, inovadores e inventores, presidentes de grandes empresas, operadores do mercado financeiro, os melhores médicos e advogados em suas especialidades etc.

A fortíssima concentração da renda do trabalho na porção de 1% mais ricos está associada principalmente aos elevados salários dos presidentes de empresas e operadores do mercado financeiro. Como documentado no volume de Piketty, os elevados rendimentos dessas duas categorias profissionais explica aproximadamente 90% do fenômeno. O resto do fenômeno resulta da elevação da renda dos profissionais mais destacados em outras carreiras que dependam do talento pessoal.

Com relação aos CEOs, Piketty defende que os ganhos não são fruto direto da produtividade, mas resultantes da cooptação dos conselhos de administração das empresas pela diretoria, que consegue impor à assembleia de acionistas a sua própria escala de remuneração.

A explicação dada pelo autor é muito pouco convincente. Há evidência de que a remuneração dos CEOs das empresas não listadas em bolsa, cujo capital é controlado por poucos (e nas quais, portanto, a cooptação não deveria ocorrer), aumentou da mesma forma. Além disso, outras atividades tiveram forte elevação de ganhos.

Existem pesquisas que apontam exatamente a globalização das empresas americanas e sua capacidade para acessar grandes mercados como explicação para as elevadas remunerações. Há, ainda, trabalhos que apontam a capacidade das empresas americanas de transplantar parte da produção para economias emergentes como explicação para o menor crescimento dos salários nos EUA nas últimas décadas. Como Piketty desconsidera em seu livro o comércio e a mobilidade internacional de capitais, não pode dialogar com esta leitura alternativa.

LIÇÕES

Não obstante, é verdade que a desigualdade do trabalho de hoje pode tornar-se desigualdade do capital amanhã e desigualdade de heranças depois de amanhã. E os EUA caminhariam céleres em direção ao capitalismo patrimonial da "belle époque".

Rejeitada a grande história proposta no volume, resta sua mensagem normativa, a defesa intransigente da social-democracia, mas principalmente as características associadas à evolução da desigualdade interpessoal de renda e de riqueza e ao crescimento do peso da riqueza herdada na riqueza total.

Com relação à defesa da social-democracia, a maior limitação do texto parece ser a análise estreita dos motivos que justificaram a revolução neoliberal dos anos 80. Parece que não havia excessos no Estado de bem-estar social, que a inflação não grassava e que a carga tributária não caminhava para limites insustentáveis.

O autor vê a revolução neoliberal como se motivada exclusivamente pela vaidade de ingleses e americanos que não entendiam que o crescimento da Europa continental era simplesmente recuperação do espaço perdido por consequência dos tumultos da primeira metade do século 20.

Apesar de o livro terminar menor do que iniciou, deixa três lições fundamentais.

Primeiro, que o estudo da desigualdade interpessoal requer o emprego de diversos conceitos. O uso indiscriminado dos coeficientes de Gini ou Theil pode obscurecer dinâmicas importantes, principalmente na ponta superior da renda.

Segundo, é impossível investigar a evolução da desigualdade de renda com bases de dados que não coletam com precisão a desigualdade de capital. E, para esta, é necessário recorrer ao registro tributário. Terceiro, há tendência recente de forte concentração de renda nas economias centrais e, em particular, há um processo de elevação do peso da riqueza herdada na riqueza total.

A despeito das deficiências da narrativa histórica que o autor se propõe fazer, esses aprendizados justificam plenamente o impacto que o livro vem causando no debate público internacional.

SAMUEL PESSÔA, 51, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia/FGV, sócio da consultoria de investimentos Reliance e colunista da Folha.
LOURIVAL CUQUINHA, 39, é artista plástico. Inaugura neste sábado a individual "Territórios e Capital: Extinções", no MAM-Rio, e participa da coletiva "Multitude", no Sesc Pompeia.
MARTIN JOHN CALLANAN, 32, artista britânico, ganhou neste ano o Prêmio Philip Leverhulme. Na série "The Fundamental Units", fez macro-fotografias das moedas de menor valor ativas em 166 países, como a de 1 centavo de euro
Folha de S. Paulo

Cidade de Sarajevo comemora fim de "século de conflito"

Em uma esquina à margem do rio foram disparados os tiros que deflagraram a Primeira Guerra Mundial. Os moradores esperam expurgar os fantasmas de conflitos passados

ANDREW MCDOWALL
DO "OBSERVER", EM SARAJEVO


Deitando uma coroa de flores no lugar em que o arquiduque Francisco Ferdinando e sua mulher Sofia, grávida, foram assassinados, exatamente 100 anos antes, Aleksandar Simec e Alexander Schneider explicavam porque sentiam que a morte do herdeiro do trono austríaco foi uma tragédia para a Europa e para o mundo.

"Se esse trágico evento não tivesse ocorrido, a guerra e milhões de mortes poderiam ter sido evitadas. O fim do Império Austro-Húngaro criou um vácuo político no centro da Europa que foi ocupado inicialmente pelos nazistas e depois pelo comunismo soviético", afirmam.
Antonio Bronic - 28.jun.2014/Reuters 

Atores vestidos como o arquiduque Franscisco Ferdinando e a condessa Sophie Chotek em performance na Bósnia.


"Os Habsburgos [a dinastia imperial austríaca] teriam resistido", diz Schneider, ativista austríaco da Aliança Aurinegra, uma organização que defende a restauração da monarquia austríaca e de uma união centro-europeia que acompanharia os limites do império Habsburgo.

Francisco Ferdinando e Sofia foram mortos a tiros por Gavrilo Princip ao lado da Ponte Latina em Sarajevo, a capital da Bósnia, em 28 de junho de 1914, um ato que deflagrou a Primeira Guerra Mundial. Schneider se inclina para posicionar fotos do casal assassinado ao lado da coroa, e Simec –nascido na Áustria e dotado de nacionalidade iugoslava, ostentando um rabo de cavalo e um broche monarquista no paletó– explica que Francisco Ferdinando desejava criar uma terceira entidade no Império Austro-Húngaro, para os eslavos, como os sérvios, bósnios e croatas. "Ele tinha a ideia de estabelecer uma espécie de Iugoslávia como parte do Império Austro-Húngaro".

Mais cedo naquele dia, a Aliança havia percorrido o trajeto do casal real em Sarajevo, mas em lugar de se deterem no local do assassinato eles prosseguiram até o destino planejado para o percurso do arquiduque, a estação ferroviária.

"Começamos exatamente na mesma hora e viajamos exatamente na mesma velocidade", diz Simec. "Queríamos desfazer o assassinato, simbolicamente".

Ao lado da placa que marca o local do assassinato, a coroa de flores da Aliança tem a companhia de duas outras, e de três ramalhetes. Sob um retrato emoldurado do casal, uma legenda em alemão diz "o objetivo da vida deles era paz para as nações. Sua morte trouxe guerra para as nações".

A dois metros de distância, uma placa provisória e um ramalhete de flores ocupam o lugar do qual Princip disparou. Velas finas de cera de abelha, como as usadas nas igrejas ortodoxas, estão acesas. Bósnio de etnia sérvia e encarado como herói nacional na era iugoslava, o legado de Princip é controverso, hoje. A placa recorda que um memorial a Princip foi removido do local em 1992, quando a Bósnia decaiu à guerra.

Mas os memoriais estão atraindo muito menos atenção do que uma réplica do carro do casal real estacionada ao lado, onde turistas posam com um homem vestido como Francisco Ferdinando. As edificações que cercam o local ainda mostram marcas de balas de uma guerra mais recente. Entre 1992 e 1995, a Bósnia foi dilacerada por um conflito entre os bósnios muçulmanos e os bósnios de origem sérvia e croata, no qual 100 mil pessoas morreram e Sarajevo foi submetida a um cerco de 1.425 dias por forças sérvias. A cidade vem relembrando o assassinato do arquiduque na esperança de que isso "feche o ciclo" de um século de conflito. Pouco antes da meia-noite, diversas performances aconteceram na Ponte Latina. Às 11h, o horário aproximado do assassinato, turistas e jornalistas enchiam as ruas próximas à ponte e as margens do rio Miljacka, por sob as árvores que acompanham o curso do rio, cujas águas brilham ao sol do verão. Acima avulta a cadeia de montanhas da qual a artilharia sérvia bombardeava a cidade durante a guerra.

"Sarajevo é o foco: os olhos do mundo estão voltados para nós", diz Ivo Komsic, prefeito da cidade. "Nós, de Sarajevo, queremos enviar uma mensagem de nova esperança para as novas gerações, e de um melhor futuro".
Dado Ruvic - 24.jun.2014/Reuters 
O edifício Vijecnica em Sarajevo

Uma das peças centrais da celebração foi um concerto da Orquestra Filarmônica de Viena no edifício Vijecnica, a poucos metros de distância do local do assassinato, com o presidente da Áustria como um dos convidados. O notável Vijecnica, em estilo pseudomourisco e próximo à Ponte Latina, é um símbolo especialmente significativo para Sarajevo: ele abrigava a prefeitura na qual Francisco Ferdinando e Sofia participaram de uma recepção pouco antes de serem assassinados. O edifício mais tarde passou a abrigar a biblioteca da Bósnia e Herzegóvina e foi atacado pela artilharia sérvia durante o cerco, o que causou a perda de cerca de dois milhões de livros. Os moradores de Sarajevo descrevem como o ar estava repleto de pedaços de papel cobertos por elegante caligrafia árabe, que se convertiam em cinza ao cair no chão.

"O Vijecnica é muito importante para nós; é um símbolo de Sarajevo e sua mistura de estilos arquitetônicos demonstra que Sarajevo é um ponto de encontro de culturas", diz Komsic.

O edifício passou por uma restauração que durou 18 anos, mas especialistas em conservação disseram ao "Observer" que ele continua em estado precário. O edifício representa outro ponto de disputa em uma nação que ainda está dividida. Uma inscrição na parede, em inglês e no idioma local (até o nome do edifício é contestado), se refere aos "criminosos sérvios", o que o presidente e primeiro-ministro da Sérvia definem como difamação e os levou a boicotar a cerimônia em Sarajevo.

A guerra não deixou apenas cicatrizes físicas e psicológicas. A Bósnia se divide administrativamente entre a Federação, em sua maioria muçulmana e católica croata, e a República Sérvia, fortemente autônoma, cujo líder, Milorad Dodik, agita regularmente pela independência. Em 27 de junho, no distrito leste de Sarajevo, separado e governado pelos sérvios, Dodik inaugurou um parque que leva o nome de Gavrilo Princip, decorado por uma estátua do assassino.

Para muitos sérvios, Princip é um herói da independência dos eslavos do sul. E 28 de junho era um dia importante mesmo antes de 1914, porque foi a data de uma batalha travada em Kosovo em 1389 na qual, de acordo com o entendimento popular se não com o conhecimento histórico exato, uma derrota sérvia resultou em séculos de opressão pelos otomanos. É essa espécie de complexidade histórica que os encarregados de organizar eventos e exposições precisam encarar, em um ambiente altamente volátil. A Bósnia tem uma eleição geral marcada para o quarto trimestre, e a retórica nacionalista deve ganhar ainda mais força.

Uma exposição especial no Museu Histórico Nacional da Bósnia e Herzegóvina, com apoio do Museu Imperial da Guerra em Londres, foi aberta em 26 de junho, registrando a visita de Francisco Ferdinando, o assassinato e o período da guerra no país. A mostra começa com descrições de viajantes sobre Sarajevo em 1914, e mostra um bazar lotado de artesãos judeus e muçulmanos convivendo com uma cidade nova repleta de parques e de cafés em estilo vienense.

"A ideia não é que nos concentremos em um ou outro lado da história, mas que façamos de Sarajevo a principal protagonista", diz Elma Hasimbegovic, diretora do museu. "Francisco Ferdinando não é o personagem principal, e não estamos nos concentrando na história nacional. Bósnios combateram dos dois lados na Primeira Guerra Mundial, e queremos ver como as pessoas comuns foram afetadas pela guerra, e sua luta por sobreviver".

O museu foi vítima da política étnica do pós-guerra, já que não recebe verbas regulares do governo nacional, da federação, do governo cantonal ou da prefeitura. Passados 19 anos do final do conflito na Bósnia, ele e outras sete instituições nacionais continuam a viver em um limbo jurídico e financeiro –não existe Ministério da Cultura nacional, já que a cultura é alvo de disputas tão ferozes entre os políticos étnicos. Esses políticos são alvo de raiva de todas as partes em conflito, em um país no qual o desemprego é estimado em mais de 40% e o progresso quanto à integração com a União Europeia se viu bloqueado por disputas étnicas. Muita gente sonha com as certezas e a paz da Iugoslávia unida.
Dado Ruvic-27.jun.2014/Reuters 
O ator Jovan Mojsilovic reencena o assassinato de Gavrilo Princip em frente a sua estátua, inaugurada no último dia 27 em Sarajevo


"Os políticos deveriam ser todos mandados para Goli Otok!", diz Milan Bosanac, 79, sérvio da Bósnia, em referência a uma ilha árida no Mar Adriático que servia como presídio político na era comunista. "Tudo vai piorar. Quando o [ditador comunista] Tito estava vivo, tudo era ótimo, todo mundo tinha emprego. Agora centenas de milhares de pessoas estão desempregadas, e não há nada para os velhos".

A vida de Bosanac foi afetada pelo conflito desde a infância: na Segunda Guerra Mundial, sua família lutou com os partidários comunistas iugoslavos, contra os nazistas e os aliados destes. Depois que a guerra irrompeu na região em 1941, o pai dele morreu no campo de concentração de Jasenovac, operado pelos croatas, e a família fugiu para as montanhas Kozara, no nordeste da Bósnia. Um dia, ele se perdeu dos parentes na neve e foi resgatado por uma mulher que cuidou dele por meses.

Com a bengala na mão, Bosanac está sentado em seu apartamento em Grbavica, um subúrbio de Sarajevo que no passado era majoritariamente sérvio mas hoje é predominantemente muçulmano. A família viveu no bairro durante toda a guerra, se protegendo no porão quando os combates se intensificavam, e em certas ocasiões teve de provar sua nacionalidade a combatentes sérvios fanáticos. Eles deixaram a região e foram viver no sul da Bósnia e no Montenegro quando o bairro "mudou de mãos" depois da guerra, diz Stasha, sobrinha-neta de Bosanac, que voltou anos depois para ser "uma forasteira em minha própria cidade, em lugar de sermos forasteiros em terras distantes".

A filha dela, nascida quase uma década depois do final da guerra, também é afetada. No ano passado, as crianças muçulmanas da escola se recusaram a brincar com ela no período que antecedeu o primeiro recenseamento bósnio no pós-guerra, com o recrudescimento da retórica nacionalista para que as crianças, como os adultos, se identificassem como muçulmanas, sérvias ou croatas.

O lema para os eventos da semana passada era "um século de paz depois de um século de guerra". Há poucos países para os quais ele seja mais apropriado, e mesmo para alguns dos que desejam preservar o passado, o aniversário é um doloroso lembrete.

"A Ponte Latina é um símbolo da guerra, e por isso lamento por Sarajevo que a cidade seja vista como símbolo da guerra", diz Mirzah Foco, funcionário da comissão de preservação da herança cultural bósnia, durante uma conferência em Sarajevo. "Estive no exército e pode acreditar: quero esquecer tudo que me aconteceu. Acredite: foi um pesadelo".

Tradução de PAULO MIGLIACCI
Folha de S.Paulo

Santo Anchieta dos poucos

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

RESUMO Canonizado em abril, José de Anchieta (1534-97) é lembrado por sua atuação entre os índios do Brasil colonial. Pouco se fala, porém, de como os jesuítas não só toleraram como se beneficiaram da escravidão de negros, que, para eles, poupava os nativos e preparava os africanos para a fé católica e o perdão divino.

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O destaque dado à canonização dos papas João 23 e João Paulo 2º eclipsou a santidade de José de Anchieta, oficializada dias antes, em 3 de abril passado, no Vaticano. Como todo mundo aprendeu na escola, Anchieta é o apóstolo do Brasil. Fundador de São Paulo, ativo na fundação do Rio de Janeiro e de cidades capixabas, Anchieta deixou ainda sua marca na Bahia.

Redigida pouco depois de sua morte, em 1597, pelo padre Pero Rodrigues, a biografia de Anchieta tinha um claro propósito hagiográfico. Logo em seguida teve início o processo de sua beatificação, etapa preparatória da canonização.

Na época, os jesuítas espanhóis estendiam sua influência sobre a Cúria, no embalo do poderio que a Espanha filipina exercia sobre Roma e boa parte do território italiano. Feito papa com o esmagador apoio de Madri, Gregório 15, grande aliado da Sociedade de Jesus (SJ), canonizou o primeiro time dos jesuítas espanhóis em 1622: Inácio de Loyola e Francisco Xavier –respectivamente fundador da ordem e apóstolo do Extremo Oriente.

Anchieta poderia ter embarcado nessa galera como o apóstolo do Extremo Ocidente, da América Ibérica, a maior região ultramarina de povoamento europeu. Mas sua beatificação encalhou. Por quê?

Talvez por causa de seu pró-lusitanismo. Embora nascido em Tenerife, nas Canárias, território espanhol, Anchieta estudara em Coimbra, onde ingressou no seminário jesuíta. Ativo nas missões e na conquista do Brasil, Anchieta vestiu a batina portuguesa de corpo inteiro. Fator que deve ter pesado negativamente nos anos 1620-1630, quando o antagonismo luso-espanhol se acentuava.

Depois piorou, porque a Cúria romana ficou do lado de Madri em 1640 e só reconheceu a soberania da Coroa de Bragança em 1668. Na circunstância, o insucesso da beatificação de Anchieta pode ter sido um efeito colateral da rivalidade entre Madri e Lisboa no século 17.

Muito mais identificado com Portugal do que com a Espanha, Anchieta trouxe entretanto de Tenerife, de onde saiu aos 14 anos, duas referências capitais.

A primeira foi o conhecimento da língua basca, idioma de seu pai, nacionalista basco deportado para Tenerife. Escrevendo em 1584 na Bahia, Anchieta se dizia basco –"biscainho", e não canarino ou castelhano. Muito provavelmente, o domínio da sintaxe basca –língua aglutinante como o tupi-guarani– deu a Anchieta a chave para redigir sua gramática sobre o idioma indígena do litoral do Brasil.

A segunda referência atlântica de Anchieta foi a sua familiaridade com a violência colonial.

Terá sido na sua terra natal, e não na Bahia ou em Piratininga, que ele ouviu falar pela primeira vez de "entradas" e viu gente acorrentada no cativeiro.

Na sua infância, se desenrolava em Tenerife o final da extinção dos "guanchos", aborígenes de origem berbere das Canárias, primeiro povo ultramarino a ser exterminado pelos europeus. Na mesma época, preadores ibéricos desembarcavam nas Canárias muçulmanos escravizados nas "entradas" lançadas no litoral do Marrocos.

Anchieta reencontrou em Piratininga a pilhagem sertaneja das entradas, dessa vez capturando índios; e, na Bahia, a pilhagem marítima, desembarcando negros.

Parte desses africanos, traficados pelos jesuítas de Angola associados a Anchieta, era entregue ao Colégio da Bahia.

Quando Anchieta era superior do Colégio e provincial da ordem, Miguel Garcia, um jesuíta que ele conhecia bem, protestou frontalmente contra a conversão dos missionários ao escravismo, prevenindo Roma em 1583: "A multidão de escravos que tem a Companhia [de Jesus] nesta Província [do Brasil], particularmente neste Colégio [da Bahia], é coisa que de maneira nenhuma posso tragar".

Desafiados, Anchieta e a hierarquia da ordem recambiaram o padre antiescravista para a Europa.

TRANSMIGRAÇÃO

Como todos os missionários do Brasil, Anchieta protegia os índios e benzia a escravidão dos negros. Para ele, o cativeiro dos últimos livrava os primeiros da exploração colonial. Depois, o padre Antônio Vieira completou a justificação jesuítica do tráfico negreiro, afirmando que o escravismo também salvava os africanos do paganismo. Sua "primeira transmigração" para o Brasil nos tumbeiros facilitava sua conversão à fé e sua "segunda transmigração", para o Céu.

Ao fio dos anos, acumulando negócios, os jesuítas se tornaram grandes proprietários de escravos. A fazenda de Santa Cruz, que lhes pertencia –hoje sede da base aérea de mesmo nome, na zona oeste da capital fluminense–, era a maior propriedade escravista das Américas por volta de 1750, concentrado mais de mil cativos negros e mulatos.

Presentes e muito influentes em Angola e no Brasil quando a deportação de escravizados deslanchou e se intensificou, os jesuítas, mais do qualquer outra ordem religiosa, estavam no miolo do complexo escravista do Atlântico Sul.

A história da SJ ocultou seu longo envolvimento negreiro na rota Angola-Brasil para dar relevo à catequização dos indígenas na América Ibérica, e, particularmente, nas veredas do Paraguai.

MISSÃO

Na altura em que se anunciou a escolha do papa Francisco, Umberto Eco escreveu um artigo sobre a saga dos jesuítas na América Latina. Asseverando que o novo papa argentino foi influenciado pelo exemplo das missões paraguaias, Eco engrenou o debate do Iluminismo, citando Montesquieu e outros filósofos que exaltaram ou estigmatizaram o experimento jesuítico no Paraguai e terminou com as cenas de Robert De Niro no filme "A Missão". Nada disse sobre a dimensão escravista e negreira do experimento jesuítico no Brasil e Angola.

Vindo de um país onde a presença negra, considerável em Buenos Aires no século 19, tornou-se bem diminuída, o papa jesuíta Francisco pode ter as ideias que lhe são atribuídas por Eco. Em todo caso, a decisão papal de canonizar Anchieta avaliza a imagem unilateral de defensores dos índios que os inacianos cultivam no Brasil, na Argentina e na América Latina.

Na realidade, os jesuítas e a Igreja perpetuam uma hierarquia calcada no passado, mostrando-se pouco permeáveis às mudanças da sociedade brasileira.

Como nas Forças Armadas e na Magistratura –os dois outros pilares do Império escravista–, os negros continuam sendo minoritários no clero brasileiro.

O único estudo que conheço sobre o assunto, de autoria do padre Toninho (Antônio Aparecido da Silva), militante da causa negra na Igreja morto em 2009, é revelador.

Conforme os dados do padre Toninho, a Igreja Católica no país contava em 2001 com 16 mil sacerdotes. Destes, 4.000 eram estrangeiros. Dentre os 12 mil brasileiros, apenas mil padres eram afrodescendentes –nos anos 1960, seu número não chegava a cem.

Interpretação seletiva do passado, a imagem piedosa de santo Anchieta como protetor dos índios e apóstolo do Brasil inteiro está em descompasso com a história de sua época. Está também em descompasso com a história de nossa época, engajada numa política afirmativa instaurada pelos

Três Poderes da República para configurar a verdadeira imagem do Brasil inteiro; para dar mais representatividade aos afrodescendentes, maior contingente populacional do Brasil.

NOTA:
O número de padres afrodescendentes brasileiros consta de artigo do padre Toninho, publicado no site dos missionários orionistas (Messagio di don Orione) em 2001. O artigo continua no site, mas os números relativos aos padres afrodescendentes sumiram. (Disponível em bit.ly/1jNAXh0) Citei esses dados na revista "Veja" em 25.jul.2001.

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, 68, é professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris Sorbonne e professor convidado da Escola de Economia da FGV-SP.
Folha de S; Paulo

O impacto duradouro da Primeira Guerra Mundial

A. O. SCOTT
DO "NEW YORK TIMES"

"Me sinto como um soldado na manhã após o Somme." Tirada de um capítulo da segunda temporada do seriado da BBC "Call the Midwife", esta fala chamou minha atenção recentemente como um exemplo interessante de detalhe de época. Ela é dita por um médico a uma enfermeira logo depois de fazerem um difícil parto em casa. A comparação é com uma batalha que durou quatro meses, começando em 1º de julho de 1916 em um trecho lamacento da Picardia, e que foi, na época, o episódio de combate mais sangrento da história humana, tendo gerado 60 mil baixas em um único dia de combate, apenas do lado britânico. A comparação feita pelo médico certamente é um exagero metafórico, mas representa um estilo de humor familiar, o hábito de traçar comparações entre desafios que enfrentamos regularmente e calamidades que mal conseguimos imaginar.

Mas por que escolher essa calamidade em especial? Baseado numa série popular de memórias de Jennifer Worth, "Call the Midwife" acontece no final dos anos 1950, não muito tempo depois de uma guerra que ultrapassou de longe sua antecessora em termos de escala e extensão de carnificina global. É interessante o fato de o conflito anterior estar mais imediatamente presente no imaginário desse médico e enfermeira, mais ou menos jovens. A batalha do Somme é mais acessível e possivelmente mais imediata que Dunquerque ou o Dia D.

A alusão pode exigir uma nota de rodapé hoje, mas sua presença em um programa de televisão agudamente sensível à precisão histórica é um sinal de quão profundamente a Primeira Guerra Mundial ainda está entranhada na consciência popular. Descrita em sua época como "a guerra para acabar com todas as guerras", em vez disso ela se tornou a guerra à qual todas as guerras subsequentes, e muitas outras coisas da vida moderna, parecem fazer referência. Palavras e frases antes associadas especificamente à experiência do combate no front ocidental ainda fazem parte da linguagem comum. Mal reconhecemos frases como "nas trincheiras" ou "terra de ninguém" como sendo figuras de linguagem, muito menos imagens que evocam algo que foi no passado uma forma nova de morte organizada em massa. E raramente notamos que nosso entendimento coletivo do que aconteceu em trincheiras, selvas, montanhas e desertos muito distantes no tempo e espaço do arame farpado e sacos de areia da França e Bélgica nos chega filtrado pelo sangue, fumaça e sofrimento daqueles enfrentamentos anteriores.
Reuters 
Soldados americanos posam com diferentes modelos de máscaras de gás criados pelo Laboratório de Desenvolvimento Químico da Filadélfia, em imagem de 1919.


Uma pessoa que tomou nota da influência cultural duradoura e decisiva da Primeira Guerra Mundial foi Paul Fussell, estudioso literário e veterano da infantaria da Segunda Guerra Mundial cujo livro de 1975 "The Great War and Modern Memory" ainda é uma "tour de force" de crítica erudita e intensa. Fussell, morto em 2012, vasculhou romances, poemas e livros de memórias escritos na esteira da guerra e descobriu que eles estabeleceram um padrão que continuaria válido, conscientemente ou não, por boa parte do século 20.

Muitos soldados e oficiais britânicos chegaram ao front imersos em uma tradição literária que coloriu sua percepção –uma tradição que incluía não apenas épicos marciais e romances populares de aventura, mas também alegorias religiosas e românticas como "O Peregrino", de John Bunyan. O personagem principal dessa narrativa de dificuldade desesperadora e redenção final, escrita no século 17, é visto primeiramente como "um homem trajado em trapos" e com "um grande fardo sobre as costas". É uma descrição que parecia antever o recruta exausto, saído das trincheiras, com seu uniforme maltrapilho e mochila pesada.

Esse soldado, por sua vez, depois de algumas mudanças em seu uniforme e equipamentos, percorreria as décadas seguintes, deixando para trás um conjunto de depoimentos em primeira mão surpreendentemente consistentes. Quer sejam apresentados como memórias ou ficção, os escritos pós-1918 sobre a guerra voltam sempre para os mesmos temas e atitudes. Entre eles estão a ênfase sobre o tédio e o pavor dos combates em terra; o fato de ser privilegiada a visão do soldado comum, em detrimento da de oficiais ou estrategistas; a atitude de desconfiança em relação à autoridade e a tendência a ironizar aqueles que a exercem; um senso forte da separação existencial absoluta entre aqueles que combateram e as pessoas que ficaram em casa; um pendor pelo absurdo, o sarcasmo e o humor negro, e a conclusão de que, seja qual for o desenlace ou a justiça da guerra como um todo, para o veterano de guerra individual seu legado será o cinismo e a desilusão.

Fussell identificou essas características na literatura inspirada em sua própria guerra –em "Os Nus e os Mortos", "Ardil 22" e "O Arco-íris da Gravidade"–, e elas saturam as narrativas sobre o Vietnã que se seguiram à publicação de seu livro. O título de "The Things They Carried", o ciclo de histórias autobiográficas de Tim O'Brien sobre a vida antes, durante e depois de combater no Vietnã, encerra ecos de "O Peregrino", e seu misto de prosa enxuta, naturalismo franco e terror surreal faz dele tanto um relato definitivo dessa guerra quanto uma recapitulação da Grande Guerra.

Como quase todos os outros autores homens que escrevem em inglês e já trataram do tema da guerra, O'Brien tem uma dívida evidente com Hemingway, que chegou mais perto que ninguém de definir um modelo de como ele deve ser tratado, com um trecho famoso de "Adeus às Armas":

"Havia muitas palavras que você não suportava ouvir, e finalmente apenas os nomes de lugares tinham dignidade. Certos números eram a mesma coisa, e certas datas, e estas, com os nomes dos lugares, eram só o que você podia dizer e lhes dar qualquer sentido. Palavras abstratas como glória, honra, coragem ou santificar eram obscenas diante dos nomes concretos de vilas, os números de estradas, os nomes de rios, os números de regimentos e as datas."
Photo National Army Museum 
Soldados britânicos leem notícias do conflito em um das trincheiras da linha de frente durante a Primeira Guerra.


Essa observação contundente –ela própria curiosamente abstrata, não obstante sua insistência sobre a especificidade– continuou válida ao mesmo tempo em que a geografia mudou. O imperativo de relatar o que realmente aconteceu, mesmo para um público ou posteridade incapazes de entender plenamente, gerou uma literatura repleta de nomes e datas. Verdun, Passchendaele, Gallipoli, Guadalcanal, Monte Cassino, Stalingrado, Inchon, Khe Sanh, Kandahar, Fallujah. 11 de novembro, 6 de junho, 11 de setembro.

Em 1964, 50 anos depois de a guerra começar, Philip Larkin, nascido em 1922, publicou um poema memorial intitulado "MCMXIV". Seu tema não é tanto a guerra quanto uma Inglaterra passada, feita de "rostos arcaicos" e hábitos que ficaram para trás, uma Inglaterra que deixou de existir em algum momento entre o assassinado do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 28 de junho, e o começo das hostilidades plenas e continentais, no início de agosto. O poema procura congelar o momento em que o mundo mais velho –um mundo que os pais de Larkin conheceram intimamente, mas que estava um pouco além do horizonte de sua própria memória– "virou passado sem proferir uma palavra".

"Nunca mais essa inocência", Larkin conclui, resumindo aquilo que era, então e agora, uma base crucial da visão convencional sobre a Grande Guerra, uma noção que substanciou a rejeição de Hemingway da linguagem antiga e altiva sobre honra e glória. Ao mesmo tempo em que reconhece o poder sedutor da ideia de inocência perdida, Larkin sugere que ela é complexa, até enganosa. Indivíduos como as crianças e os maridos anônimos que povoam seus versos podem facilmente ser imaginados como inocentes. Estados-nações imperiais que passaram os últimos séculos conquistando a maior parte do resto do planeta são outra história.

Isso estava muito claro para Larkin, cujo patriotismo se baseava na noção de que a Inglaterra era o pior lugar do mundo, com a possível exceção de todos os outros lugares. A primeira vez em que ele emprega a frase "nunca tal inocência", ele a qualifica com "nunca antes ou depois", sugerindo que a aura edênica particular que paira sobre os meses de 1914 que antecederam a guerra pode ser ilusória, à sua própria maneira. Deixar entender que a Grã-Bretanha (ou qualquer outro país combatente) tenha sido de alguma maneira mais inocente na véspera da catástrofe é registrar um efeito posterior da própria catástrofe.

A guerra foi tão hedionda e terrível que só poderia ter explodido numa paisagem de bondade e pureza. Ou, pelo menos, esse é um dos mitos que ela deixa para trás. Outro, defendido na época por um punhado de intelectuais de vanguarda (notadamente os futuristas italianos) e adaptada por alguns historiadores posteriores, foi que a guerra acelerou tendências já presentes na sociedade moderna: em direção à violência mecanizada, ao conflito total e à fusão de tecnologia e política.

Muitos do relatos sobre aquele verão, especialmente na França e Grã-Bretaha, destacam o tempo belo e os prazeres veranis. "Fear", de Gabriel Chevallier, um romance de combate publicado em 1930, começa com a "França despreocupada" vestindo seus "trajes de verão". "Não havia uma nuvem no céu –um céu tão otimista, azul forte." Um exemplo rematado do jogo de realidade empírica com ornamentação literária: os registros meteorológicos podem atestar a cor e claridade do céu, mas apenas a ironia cruel e corretora da retrovisão poderia inspirar a palavra "otimista".
Reuters 
Oficiais alemães na Bélgica durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917.


E então: "Em alguns poucos dias, a civilização foi exterminada". Esta sentença brutalmente concisa, algumas páginas depois do início de "Fear", resume a perda da inocência que será aprofundada nos capítulos subsequentes da narrativa na primeira pessoa. Mas esses capítulos também deixarão claro até que ponto essa "civilização", tão inebriada com seu discurso de glória nacional e destino heroico, seria a autora de sua própria extinção. A discrepância entre esse discurso altivo e a realidade hedionda da guerra abre um abismo na experiência humana que, segundo Fussell, nunca se fechou. "Estou dizendo", ele escreveu, "que parece haver uma forma dominante de entendimento moderno, que ela é essencialmente irônica e que ela se origina em grande parte com o debruçar da mente e da memória sobre os acontecimentos da Grande Guerra."

Acontecimentos mais recentes e a resposta imaginativa e eles podem indicar até que ponto as visões podem mudar e as recordações podem perder força. O "céu azul forte" de Chevallier inevitavelmente evoca um certo céu de final de verão sobre Manhattan, quase 13 anos atrás, em outro momento que acabaria por assinalar uma divisão entre o Antes e o Depois.

Depois do 11 de setembro de 2001, nos foi dito –dissemos a nós mesmos– que tudo havia mudado. Numa inversão curiosa da lógica da Grande Guerra, os ataques contra o World Trade Center e o Pentágono foram largamente e rapidamente vistos como tendo anunciado "a morte da ironia". O que isso quis dizer, pelo menos inicialmente, foi que um estilo cultural dominado (segundo Roger Rosenblatt na "Time", entre outros) por "desapego e caprichos pessoais" daria lugar a uma ética de seriedade e sinceridade. Mas, vistos em retrospectiva, os obituários da ironia não apenas foram prematuros como fizeram parte de uma reafirmação agressiva da inocência, um esforço coordenado para refutar a conclusão de "MCMXIV", de Larkin.

Seguiu-se uma reabilitação das palavras abstratas que Hemingway e sua geração perdida viram como tão intoleráveis. Soldados comuns passaram a ser descritos rotineiramente como "heróis" e "guerreiros", ao mesmo tempo em que seus ferimentos ou mortes eram mantidos longe das vistas do público. Este, em casa, era incentivado a fazer manifestações de patriotismo e apoio, mas também a levar adiante as rotinas otimistas do trabalho, lazer e compras, "como se" (citando Larkin) "fosse tudo uma brincadeira de um feriado de agosto".

Mas a Grande Guerra ainda não deixou por completo de estar conosco. Enquanto as guerras no Afeganistão e Iraque terminam em meio à inconclusividade sangrenta, os homens e mulheres que combateram nelas começaram a escrever, e os textos que produzem devem nos conduzir de volta à manhã após o Somme. O romance premiado de Ben Fountain "Billy Lynn's Long Halftime Walk", de 2012, extrapola a ironia para mergulhar na farsa, justapondo as experiências de um pelotão sofrido mergulhado do caos do Iraque para o espetáculo vulgar do Super Bowl, onde seu serviço militar é homenageado e explorado. O livro fica bem na companhia irreverente de "Ardil 22", ou seja, na mesma estante que "Nada de Novo no Front" e de "Fear", de Chevalier.

Enquanto isso, "Redeployment", de Phil Klay, lançado este ano, segue a linha pragmática e contundente de Hemingway e "The Things They Carried". Coletânea enganosamente modesta de contos interligados, o livro é cheio de topônimos, números e siglas militares, humor negro, frustração sexual, amizade sentimental e desprezo pela autoridade. Só pode ter sido escrito por alguém que esteve lá, se bem que, com alguns ajustes em matéria de tecnologia, jargão e clima, o "lá" pudesse igualmente bem ser Ypres ou Ramadi. E a moral poderia ter sido escrita pelo memorialista britânico Edmund Blunden, que tirou uma lição brutal de sua própria experiência na batalha do Somme: "A Guerra tinha vencido e continua a vencer".

Tradução de CLARA ALLAIN
Folha de S. Paulo

Há um século, estourava a Primeira Guerra, conflito até hoje nebuloso


MARCELO COELHO


RESUMO A responsabilidade russa, as atrocidades do exército prussiano sobre os belgas, o assassinato do arquiduque e o jogo político na Europa são alguns dos temas explorados em diversos livros recentes que investigam a Primeira Guerra, conflito que, cem anos depois de seu início, permanece ainda pouco investigado.

*

Ao contrário da Segunda Guerra Mundial -que se explica pelo nazismo-, tudo é obscuro e controverso no conflito que foi de 1914 a 1918. A morte de ao menos 10 milhões de pessoas naqueles quatro anos parece ter sido um sacrifício inútil, causado não se sabe exatamente por que razão.

Os resumos de escola se contentam em mencionar o assassinato de Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, como o "estopim" da Primeira Guerra -que, em seguida, é desqualificada como um confronto entre potências imperialistas (França, Inglaterra, Rússia e, posteriormente, Itália e Estados Unidos de um lado; Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano de outro).

Sem despertar maiores torcidas no plano moral, o interesse pela Primeira Guerra termina diminuído na comparação com a luta dos Aliados contra Hitler e Mussolini; a complicadíssima crise de 1914 pode ser fascinante, mas tende a atrair sobretudo os fanáticos pelos jogos de geopolítica e pelas teorias das relações internacionais.

Vários livros vão sendo editados no Brasil por ocasião do centenário da Primeira Guerra, e podem mudar bastante essa percepção.
Foto Eduardo Anizelli/Folhapress 

Nenhum dos que serão comentados neste texto consegue superar "Os Canhões de Agosto", clássico de Barbara Tuchman publicado nos Estados Unidos em 1962 e com tradução brasileira esgotada há bastante tempo. É que, ao contrário das interpretações correntes, a historiadora americana (1912-1989) não temeu os julgamentos morais -em seu livro, condena claramente a Alemanha-, sem sacrificar por isso a precisão e o ritmo fulgurantes da narrativa.

Mesmo que seu ponto de vista se revele contestável à luz de pesquisas mais recentes -como a de Sean McMeekin, no ainda não traduzido "July 1914" [Perseus, R$ 72,30, 464 págs.; disponível também em e-books], que aponta para a responsabilidade russa na crise-, o livro de Barbara Tuchman é o melhor "estopim" emocional para quem quiser se envolver nas discussões sobre o conflito.

MILITARISMO

Ainda que todos os participantes da Primeira Guerra tenham promovido atos hediondos -com monumental destaque para o genocídio armênio, que deixou pelo menos 1 milhão de mortos, empreendido pelos turcos a partir de 1915-, mesmo antes de Hitler o militarismo prussiano acumula um currículo com o qual é difícil rivalizar.

Os alemães foram os primeiros a utilizar gás venenoso na guerra, na segunda batalha de Ypres, em 1915. Antes disso, os franceses se limitaram ao gás lacrimogêneo. Logo os combatentes trataram de se proteger com máscaras de diversos tipos. Ao cloro letal, capaz de corroer o tecido dos pulmões, a tecnologia alemã acrescentou então o gás mostarda, que atua diretamente sobre a pele.

Veio dos alemães a decisão de usar submarinos (indetectáveis à época) para atacar não só navios militares como também navios mercantes, a partir de outubro de 1914, e também transatlânticos de passageiros, como o britânico Lusitania, em maio de 1915. O navio afundou em menos de 20 minutos, matando perto de 1.200 civis.

Foram também os primeiros, na Grande Guerra, a lançar ataques aéreos contra a população urbana. Em agosto de 1914, nove habitantes da cidade belga de Liège foram mortos por bombas jogadas de um zepelim. Inicialmente vetados pelo kaiser, os bombardeios contra Londres viriam no começo de 1915.

Numa incursão inútil ao litoral britânico, o almirante Von Hipper explodiu casas de veraneio e edifícios públicos em dezembro de 1914. Era o conceito de "guerra total", ou "absoluta", que se impunha sobre as populações europeias (embora tivesse precedentes mais antigos). Não mais se acreditava que um conflito entre países dependesse só de batalhas entre soldados; tratava-se de destruir todos os recursos econômicos, humanos e morais do adversário.

ATROCIDADES

Nenhuma dessas iniciativas alemãs teve efeito comparável, na opinião pública mundial, ao das famosas "atrocidades" (o termo virou um lugar-comum) cometidas na Bélgica logo nos primeiros dias da guerra.

Era tão grande a autoconfiança da máquina militar prussiana que os invasores nem sequer cogitavam uma possível resistência do pequeno país neutro. Os planos alemães previam passar pela Bélgica rapidamente, de modo a atacar a França pelo norte, evitando a linha de fortificações que protegia a fronteira leste francesa.

Não se teve ideia melhor do que redigir um ultimato à Bélgica -que não tinha nada a ver com o que acontecia do outro lado da Europa, entre russos, sérvios, austríacos e alemães. O pequeno país do rei Alberto 1º tinha sua neutralidade garantida por um tratado internacional assinado em 1839, pela Prússia inclusive.

O tratado? "Só um pedaço de papel", na frase famosa do ministro alemão das Relações Exteriores, Theobald von Bethmann-Hollweg. Para assegurar a marcha até Paris, ele expediu uma carta aos belgas, prometendo não atacá-los e pagar por eventuais prejuízos, caso franqueassem suas fronteiras às tropas alemãs.

Já em 1904, o kaiser Guilherme 2º acenara com ganhos territoriais para a Bélgica, em caso de derrota dos franceses. De modo tipicamente descalibrado -para dizer o menos-, prometera também a "coroa da Borgonha" ao soberano belga.

Preferindo resistir a anular-se como país independente, a Bélgica logo enfrentaria uma impiedosa devastação. Os alemães não duvidavam da própria superioridade militar, mas temiam a reação de franco-atiradores.
Em "Catástrofe - 1914: A Europa vai à Guerra" [trad. Berilo Vargas, Intrínseca, R$ 49,90, 704 págs.; R$ 29,90, e-book], do jornalista e historiador britânico Max Hastings, 68, alinham-se exemplos chocantes das retaliações do exército do "kaiser" sobre a população belga.

Trata-se de um dos raros livros recentes a insistir na tese da culpa alemã, tese essa que teve seu auge na década de 1960 com as pesquisas do germaníssimo (e ex-nazista) Fritz Fischer (1908-1999), da Universidade de Hamburgo.

Hastings conta que, em 5 de agosto de 1914 (dois dias depois de a Alemanha declarar guerra à França), dez moradores de uma aldeia belga, incluindo uma família de cinco pessoas, foram assassinados em resposta à morte de soldados alemães. Os 118 habitantes da vila de Soumagne foram mortos com tiros ou golpes de baioneta no dia seguinte.

Os alemães avançaram até Liège: em 8 de agosto, como punição por atos de resistência, 850 civis foram executados, e 1.300 casas, destruídas pelo fogo.

O pior aconteceria em Louvain, também na Bélgica, em 25 de agosto. Um incêndio acidental colocou os alemães em polvorosa. Invadiram casas, arrastaram moradores para a rua, espancaram-nos, fuzilaram-nos, e tiveram a ideia de incendiar uma das mais valiosas bibliotecas da Europa, com 300 mil volumes. Em seguida, impediram os bombeiros de agir, destruíram 2.000 edifícios e expulsaram 10 mil habitantes de suas casas, deportando 1.500 para a Alemanha.
Tatiana Blass/Divulgação 

Casos semelhantes fazem parte, hoje em dia, da rotina de qualquer guerra; na época, justificaram plenamente a imagem dos alemães como "bárbaros", ou "hunos", no vocabulário da propaganda britânica. Contra os 6.427 civis mortos pelos alemães em 1914, segundo Hastings, contam-se apenas 101 vítimas da população alemã na invasão russa da Prússia Oriental, no mesmo ano.

O que explica tanto furor guerreiro? Hastings cita o texto de um polemista alemão em 1913, segundo o qual "a destruição impiedosa das forças inimigas é o objetivo mais humano que se possa ter, por estranho que pareça". Havendo muita consideração pelo adversário, a guerra se prolongaria demais, com prejuízo para todos.

PERSPECTIVAS

Para encontrar perspectivas menos desfavoráveis aos alemães, é preciso fechar os livros de Barbara Tuchman e Max Hastings, cuja argumentação viemos seguindo até agora.

"Os Sonâmbulos" [trad. Laura Teixeira Motta e Berilo Vargas, Companhia das Letras, R$ 69,50, 704 págs.; R$ 39,50, e-book], do britânico Christopher Clark, tem vários pontos de superioridade sobre "Catástrofe". Concentra-se sobre os antecedentes históricos da Primeira Guerra, traçando com nitidez e verve a situação política, para lá de confusa, dos países envolvidos no conflito.

Enquanto Hastings é sobretudo um historiador militar da velha guarda, apressando a narrativa da crise diplomática de julho de 1914 para contar em pormenor as batalhas travadas ao longo daquele ano, Clark ilumina a sequência de improbabilidades, cálculos errados e tensões involuntárias que iria desencadear o conflito.

Evita o "jogo da culpabilização", ou "blame game", sempre tentador num desastre de tais dimensões. "A Grande Guerra foi uma tragédia, não um crime", afirma na conclusão.

CRIME BÁRBARO

Seja como for, o livro de Clark começa com um crime bárbaro e repugnante. Não se trata, ainda, do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua mulher. Para uma descrição sensacional do atentado, a melhor leitura em português está em "O Assassinato do Arquiduque: Sarajevo, 1914, e o Romance que Mudou o Mundo" [trad. Gilson César Cardoso de Souza, Cultrix, R$ 52, 400 págs.], de Greg King e Sue Woolmans.

Mas o crime a que Clark se refere ocorreu em Belgrado, 11 anos antes. O rei Alexandre e a rainha Draga são acordados no meio da noite; é uma conspiração militar. Estão protegidos, nos aposentos reais, por uma pesada porta de carvalho -que uma carga de dinamite põe abaixo. O casal se esconde na rouparia.

Em outras partes de Belgrado, o massacre toma livre curso; dois irmãos da rainha são apunhalados, o primeiro-ministro e o ministro da Guerra são executados à queima-roupa. Por fim, o rei e a rainha serão encontrados, mortos e esquartejados. Era o fim da dinastia dos Obrenovic, notável pela brutalidade.

Toma conta do reino o representante da dinastia rival, de currículo não menos apavorante, mas seguindo um ideário supostamente liberalizante -e, principalmente, expansionista. Numa região pulverizada em pequenas nacionalidades, tentando emergir entre os destroços de dois impérios (o Otomano e o Austro-Húngaro), ganhava força o lema segundo o qual "onde há um sérvio, lá é a Sérvia".

O grupo que toma o poder após o assassinato de Alexandre e Draga tem apoio da Rússia, motivada não só por questões de identidade étnica -eram todos "eslavos"- mas também pelo afã de garantir o enfraquecimento de turcos e austríacos numa área de importância geopolítica fundamental até hoje. A saber, o lado oriental do Mediterrâneo e sua ligação com o mar Negro, capaz de prover a Rússia de portos incomparavelmente mais convenientes do que as águas geladas do norte europeu.

Os assassinos de 1903, em especial o famigerado Dragutin Dimitrijevic, o Apis (chefe da organização secreta Mão Negra e também responsável pelo serviço de inteligência do Exército sérvio) dariam inspiração e recursos para que o jovem Gavrilo Princip, nascido na Bósnia, mas de origem sérvia, disparasse os tiros de Sarajevo.

Do ponto de vista de hoje, marcado pelos atentados do 11 de Setembro, não chega a ser surpreendente que os austríacos tenham desejado reagir militarmente contra a Sérvia, cuja organização governamental estava implicada claramente em atos terroristas.

Com notável isenção, Clark lembra que não deixavam de ser legítimos os interesses da Sérvia em aumentar seu raio de independência, em meio a minorias nacionais sob o jugo dos austríacos.

Torre de Babel O regime do velhíssimo imperador Francisco José errou catastroficamente ao pretender punir a Sérvia. Seu Exército, uma torre de Babel de nacionalidades que mal e mal improvisaram um mínimo idioma alemão em comum, vinha acumulando derrotas durante todo o século anterior. Enquanto isso, a Rússia se armava e se modernizava, com entusiasmada assistência francesa.

Uma ação austro-húngara contra a Sérvia previsivelmente desencadearia uma represália russa. Sabendo disso, os austríacos enviaram à corte do kaiser, no começo de julho, uma missão encarregada de avaliar o apoio dos alemães à pretendida missão punitiva.

Obteve da Alemanha o famoso "cheque em branco", garantindo, nos termos da aliança entre os dois países, sustentação militar à invasão da Sérvia. Guilherme 2º esperava que os austríacos empreendessem uma "blitzkrieg" contra Belgrado, coisa que eles não estavam preparados para fazer. Grande parte do Exército, composto de camponeses, se preparava para a colheita do verão; quanto à metade húngara do sistema político dual do império, eram imensas as resistências a entrar em guerra.

Clark, assim como faz Sean McMeekin em sua reconstituição, dia por dia, dos mal-entendidos e hesitações da crise, é excelente ao demonstrar que, dentro de cada país e dentro do espírito de cada uma das principais lideranças políticas, nada existia de unívoco.

O kaiser tinha, com certeza, alguns parafusos a menos. Após um concerto, pegava o maestro pelo braço e lhe ministrava lições de música. Após receber um título puramente honorífico da Marinha britânica (era neto da rainha Vitória), começou a pedir informações e dar palpites sobre a organização do poderio naval alheio.

"Os Três Imperadores" [trad. Clóvis Marques, Objetiva, R$ 57,90, 600 págs.; R$ 29,90, e-book], da britânica Miranda Carter, faz a biografia conjunta, com algum excesso de fofocas familiares, dos primos George 5º (Inglaterra), Nicolau 2º (Rússia) e Guilherme 2º (Alemanha).

No plano puramente estratégico, o soberano alemão tinha sempre uma proposta absurda: numa crise entre EUA e Japão, por exemplo, ofereceu ao presidente americano um destacamento militar para guardar a costa californiana.

Enquanto os austríacos não invadiam a Sérvia, o medo passou a tomar conta de Guilherme 2º; cada dia de atraso tornava mais provável a mobilização russa em favor do pequeno país eslavo.

Por que não desistir, então?

Bem que o kaiser tentou, assim como Nicolau 2º do lado russo, mas a crise acabou chegando a um ponto em que a técnica (e os desejos) puramente militares tornavam difícil recuar.

A diplomacia significava cada vez menos. É difícil, apesar das argumentações de Clark e de McMeekin, crer na sinceridade dos esforços, ou na acidentalidade dos erros, de um personagem como Bethmann-Hollweg, ministro das Relações Exteriores alemão. Cada passo inexplicável da diplomacia alemã pode ser visto como falha profissional mas também como aposta no caminho de fazer a Rússia, e não a Alemanha, surgir como responsável pela beligerância.

"MYGOTOVY!"

Sem dúvida, a violência com que a Alemanha desencadeou o ataque à Bélgica e à França só se justifica, do ponto de vista subjetivo, pelo fato de que se sentia efetivamente acuada por inimigos a ponto de querer destruí-los.

A teoria de que a Alemanha estava "cercada" e que só desejava "um lugar ao sol" ganha argumentos no livro de Clark e, mais ainda, em "O Horror da Guerra" [trad. Janaína Marcoantonio, Planeta, R$ 89,90, 768 págs.], do escocês Niall Ferguson, pelo fato de que repetidas vezes a Inglaterra vetou empreendimentos comerciais alemães no Oriente e na África.

É mais fácil ver, por outro lado, o que a França teria a ganhar na eventualidade de uma guerra (tratava-se de recuperar as regiões da Alsácia e da Lorena, perdidas para Bismarck em 1870), do que os benefícios à Alemanha. Se a Rússia quisesse entrar em guerra com Alemanha e Áustria em função de algum conflito balcânico, disse famosamente o francês Poincaré em 1912, "estamos prontos" a ajudar. Falou em russo: "Mygotovy!"

A certeza de que a Rússia, com ajuda francesa, militarizava-se cada vez mais foi um importante fator para o pensamento militar germânico. Melhor entrar em guerra agora do que mais tarde, raciocinava Moltke, o chefe do Estado-Maior alemão.

Ele sabia que a guerra europeia, nas condições modernas, seria prolongada e destrutiva (ao contrário, seu equivalente francês, Joffre, apostava em cargas de cavalaria e baionetas no estilo napoleônico). Mesmo representando o "fim da civilização", era uma realidade que teria de ser encarada.

Trata-se de um bom exemplo daquele "pensamento trágico" tão ao gosto dos conservadores -de qualquer país, aliás. O debate sobre as responsabilidades de cada um no morticínio é interminável. A bibliografia, mesmo em português, não cessa de aumentar.

"Os Sonâmbulos", de Clark, é o melhor da atual safra. "O Horror da Guerra", de Ferguson, formula as perguntas cruciais sobre a guerra em seu conjunto (por que as pessoas lutavam? Houve entusiasmo da população? Que país era o mais militarista?), mas peca por certa extravagância nas respostas, com marcada antipatia pela posição inglesa no conflito. O excesso de estatísticas e notas torna mais trabalhosa, ademais, sua leitura.

"Catástrofe", de Max Hastings, combina história diplomática, narrativa militar e depoimentos de soldados e civis para traçar um quadro do primeiro ano do conflito, atento à voga da "história do cotidiano", à técnica militar e à tendência recente de enfocar o desenvolvimento dos conflitos nas decisões individuais de seus protagonistas. O resultado é que o texto, apesar de muito claro, parece oscilar entre essas três perspectivas.

A vida nas trincheiras e nas regiões assoladas pelo conflito é tratada de forma engenhosa em outro livro, "A Beleza e a Dor" [trad. Fernanda Sarmatz Åkesson, Companhia das Letras, R$ 62, 520 págs.], do sueco Peter
Englund, que entrelaça histórias reais de pessoas de várias nacionalidades durante aqueles anos.

Como texto de referência, algo como um verbete de enciclopédia bastante estendido, há ainda "A Primeira Guerra Mundial" [trad. Roberto Cataldo Costa, Contexto, R$ 69,90, 560 págs.], de Lawrence Sondhaus. Até o final deste ano do centenário da Grande Guerra, certamente mais coisa será lançada nesse horizonte, já tão cheio de clarões e de fumaça.

MARCELO COELHO, 55, é colunista da Folha.
TATIANA BLASS, 34, artista plástica, é autora de "A Família Mobília" (Cosac Naify).
FOLHA DE S.PAULO

Notícias História Viva


Diários da Ucrânia

JOHN THORNHILL
DO "FINANCIAL TIMES"



Quando qualquer país se torna manchete e é convulsionado por distúrbios históricos, é difícil imaginar que a vida cotidiana continue mais ou menos como no passado. Mas mesmo em tempos de guerra, bebês nascem e os velhos morrem (de causas naturais), enquanto as pessoas com idades entre esses dois extremos se apaixonam e desapaixonam, e registram sucessos e fracassos profissionais.

O poder de "Ukraine Diaries" (Diários da Ucrânia), de Andrey Kurkov, que cobre o período entre novembro do ano passado e abril deste ano, está em entrelaçar o extraordinário e o corriqueiro. Em suas anotações diárias, o escritor fala de sua visão sobre alguns dos mais momentosos acontecimentos na história recente de seu país, mas também relata sua vida cotidiana. Como leitores, vivemos a revolução Maidan, a derrubada do presidente Viktor Yanukovych e a anexação da Crimeia pela Rússia. Mas também somos informados sobre a festa de paintball organizada por Kurkov para celebrar o 11º aniversário de seu filho, o progresso da safra de batatas em sua dacha [casa de campo], e sua visita ao hospital com a mãe, que foi passar por um eletrocardiograma. Dessa maneira, a história recente da Ucrânia se torna mais humana e real.

Como um dos mais famosos escritores ucranianos, Kurkov conquistou apreciação generalizada no Ocidente por meio de seus romances do absurdo, tais como "Death and the Penguin" (1996) e "The President's Last Love" (2007). Ele explica no prefácio que mantém um diário pessoal há mais de 30 anos e que jamais havia se sentido tentado a publicar quaisquer porções de suas anotações. Mas como homem que vive com a mulher e os três filhos em um apartamento localizado a apenas alguns quarteirões da Praça da Independência, em Kiev, ele se tornou vítima do "redemoinho da História". "De nossa sacada vimos a fumaça subindo das barricadas em chamas, ouvimos as explosões das granadas e os tiros", ele explica. "Registrei essa vida quase todos os dias, de modo que agora posso tentar relatá-la a vocês em detalhes".

Um dos temas mais notáveis do diário é a dificuldade que ele sente em compreender o que está acontecendo no país. Cabe a jornalistas e historiadores construir narrativas interpretativas. Mas os diários de Kurkov destacam o quanto é difícil interpretar a importância de eventos enquanto eles ainda estão em curso. Como homem de letras, Kurkov se sente incomodado por sua incapacidade de se expressar com clareza. Ocasionalmente, ele admite, quase lhe faltam palavras. E o tumulto político tem um custo pessoal: em dado momento, Kurkov escreve sobre ter se sentido envelhecer cinco anos em três meses.

Parte do problema é que rumores e desinformação deliberada influenciam demais a nossa compreensão. O movimento Escolha Ucraniana, que rejeita a aproximação com a Europa, conseguiu convencer muita gente de que a conversão universal à homossexualidade era condição para a assinatura do acordo de associação com a União Europeia. Em fevereiro, um dos assessores do Partido das Regiões, de Yanukovych, causou comoção ao alegar que paraquedistas norte-americanos estavam operando no oeste da Ucrânia e exigir que tanques russos fossem enviados para combatê-los. "Já posso vê-los cruzando todo o país, até a fronteira oeste, procurando soldados norte-americanos, e depois voltando para casa e pedindo desculpas pelo incômodo!", escreve Kurkov.

Revoluções podem parecer empreitadas românticas, mas, como Kurkov deixa claro, elas muitas vezes são sangrentas e confusas, e só radicalizam as pessoas, tornando mais difícil uma solução de compromisso. Sobre aquela que está vivendo, ele ouve alguém dizer que só as floriculturas e os fabricantes de velas foram beneficiados. As ruas estão enfeitadas de coroas de flores celebrando as vítimas da revolução, e o número de velas queimando nas igrejas é 100 vezes maior que o normal, ele alega. "É para que Deus possa ver com clareza o que está acontecendo na Ucrânia".

Outro tema do livro é o lamento de Kurkov pela deterioração no relacionamento entre os povos ucraniano e russo. De acordo com diferentes estimativas, há entre oito milhões e 14 milhões de pessoas de etnia russa vivendo na Ucrânia. O escritor mesmo é russo, nascido em 1961 em Leningrado mas morador de Kiev desde a infância, e claramente sente de maneira aguda esse crescente antagonismo. Ele recorda que o primeiro membro de sua família a pisar o solo da Ucrânia foi seu avô, que chegou em 1943 com o exército soviético e foi morto na batalha pela libertação de Kharkiv. "Ele morreu combatendo os fascistas, e agora ouço a palavra 'fascista' dirigida a mim porque me pronunciei, e continuo a me pronunciar, contra a corrupção generalizada organizada pelo presidente Yanukovych, de seus esconderijos".

Ao longo do diário, Kurkov expressa sua crescente indignação diante do que está acontecendo na Rússia. É quase como se um amigo que alguém conhece bem estivesse perdendo o juízo. Putin surge como um vilão de bastidores, conspirando pela "restauração da legitimidade histórica", compreendida aqui como a reconstrução da União Soviética. "Acredito que um plano como esse existisse, e que ainda exista", ele escreve. Para Putin, a Crimeia é como um diamante roubado; ele só pode se vangloriar sobre ela na escuridão, em lugar de apresentar o caso abertamente como triunfo. Mas a Crimeia claramente aparece nas reportagens meteorológicas da TV russa, em companhia do Donetsk e de Kharkiv, e sua flora e fauna estão incluídas nas classificações russas.

A ira mal contida de Kurkov se concentra naqueles que distorcem o que está acontecendo na Ucrânia. Ele escreve uma carta ao escritor russo Sergei Lukyanenko, que proibiu a publicação de traduções de seus livros em ucraniano em protesto contra o fascismo, dizendo que "fui informado de que você escreve trabalhos de fantasia. É estranho que sua imaginação não tenha poder suficiente para que você compreenda que o povo ucraniano não deseja mais viver sob um sistema de total corrupção, sob um governo analfabeto que só deixa para trás um país pilhado e falido".

Em um posfácio ao diário, escrito em junho, Kurkov sugere que a Ucrânia –como os médicos costumam dizer– está em situação estável mas crítica. Ninguém pode prever o futuro do país, ele prossegue, citando um provérbio ucraniano: "Se você quer que Deus ria, conte-lhe seus planos". Mas ele expressa amargura quanto à União Europeia, inicialmente vociferante em seu apoio aos protestos do Maidan, que mais tarde caiu no silêncio e se afastou da Ucrânia, preferindo lucrar no comércio com a Rússia. Kurkov pode ter revisto suas opiniões diante das sanções internacionais contra a Rússia anunciadas esta semana; no livro, porém, ele chega a uma conclusão sombria: "O dinheiro importa mais que a democracia", ele escreve. "Essa cínica lição ensinada pela Europa à Ucrânia inevitavelmente influenciará o futuro de meu país".

"Ukraine Diaries: Dispatches from Kiev", de Andrey Kurkov (Vintage Digital, US$ 9,99, na Amazon, e-book).

John Thornhill é editor assistente do "Financial Times" e foi chefe da sucursal do jornal em Moscou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI
FOLHA DE S.PAULO