sábado, 23 de outubro de 2010

Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas


Maria Aparecida de Oliveira Silva
Doutoranda no Departamento de História – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP – 05509-900 – São Paulo/SP. Bolsista FAPESP. E-mail: madsilva@usp.br

GARRAFFONI, Renata Senna. Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005.

As interpretações sobre a história da gladiatura em Roma perpassam a fronteira do racional, em muitos momentos, os relatos atingem o campo do fantástico, do maravilhoso. Em parte, a idealização desse fenômeno coletivo ocorre em razão da grandiosidade e da complexidade dos espaços reservados às lutas dos gladiadores, o que desperta a imaginação de seus observadores. Na tessitura dessas construções imaginárias, temos ainda a presença das famosas histórias de prisioneiros de guerra, criminosos, condenados ou escravos-mercadoria que se tornaram homens abastados. Segundo essa visão histórico-romântica da gladiatura, esses indivíduos oriundos das camadas populares obtinham a liberdade e a riqueza após alcançar sucessivas vitórias na arena. Dessa maneira, a conquista da glória e da fama permitia ao gladiador administrar escolas de gládio – percebendo grandes quantias com a venda de escravos e a organização de espetáculos – ou desposar belas e ricas mulheres.

Em geral, as publicações sobre a história romana reservam dezenas de suas páginas ao relato de fatos pitorescos ocorridos nos combates. Muitos historiadores, atentos aos aspectos bizarros da gladiatura, centram-se na descrição de sangrentas batalhas e inauditos episódios desse espetáculo. Outros deslocam seu olhar para a revolta de Espártaco, alimentando o romantismo da corrente marxista que vê no conflito um exemplo de sublevação das massas. No entanto, apesar da aparente contradição dessas correntes, existe um ponto de contato entre elas que se faz perceber no disseminar da visão panis et circenses em suas exegeses sobre a gladiatura. Em ambas, o gladiador perde sua humanidade e sua agência no processo histórico atuando como um objeto a ser manipulado pelas elites aristocráticas.

A recente publicação da professora Renata Senna Garraffoni, intitulada Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas, surge como alternativa para o distanciamento desses topoi exegéticos. De um lado, suas reflexões distanciam-se das repetidas análises atentas à natureza espetacular dos munera, como as manobras e táticas de luta. De outro, ponderam sobre o significado da violência manifesta nas apresentações dos gladiadores, rebatendo as tradicionais interpretações sobre a violência como demonstração de força e crueldade romanas. Além disso,

uma abordagem bastante comum é o estudo de extensas regiões sob o domínio romano, sem levar em conta a particularidade de cada local. Como buscamos ressaltar a diversidade dos espetáculos, optamos por restringir nossa pesquisa ao Ocidente romano, mais especificamente a Roma, Pompéia e alguns pontos da Hispania. (p.25)

Assim, o grande mérito do livro em epígrafe consiste em trazer ao leitor abordagens diferenciadas sobre a gladiatura.

O estudo apresentado no livro circunscreve-se aos governos de Augusto e de Trajano, compreendendo todo o período augustano até os primeiros anos de Trajano.

Estabelecidos os recortes espacial e temporal, a autora apresenta o objeto de seu estudo:

abordaremos apenas os aspectos da gladiatura, pois nossa preocupação central está em analisar as relações cotidianas dos gladiadores com os espetáculos bem como sua receptividade nas camadas populares no século I d.C., aspecto ainda pouco explorado pelos especialistas (p.26),

dessa maneira, distanciando-se de conceitos como de política do "pão e circo", plebe ociosa e apática e Romanização, pertencentes às narrativas dos historiadores da Antigüidade em nossos dias, reprodutoras de pensamentos firmados ainda no século XIX. O caminho traçado por Renata Garraffoni para a escrita de seu livro rompe com análises totalizantes da gladiatura no Império Romano, revelando a multiplicidade de suas práticas. A precisa metodologia empregada guia o leitor para novas paisagens e, por conseguinte, para conclusões diferenciadas sobre o fenômeno da gladiatura em Roma.

O debate principia com uma ampla análise bibliográfica, na qual a autora critica assertivas generalizantes como

a idéia de uma manobra política da elite para divertir a plebs e mantê-la afastada das decisões, seu papel na constituição da identidade romana em oposição à bárbara, sua importância dentro das festas religiosas e triunfos, a expressão do poder romano por meio das lutas entre gladiadores de diferentes etnias (em outras palavras, a idéia de romanização aplicada aos combates), além de mais recentemente, uma preocupação com a violência, são temas que aparecem com mais ou menos ênfase nos trabalhos de classicistas que se dedicaram a estudar a arena romana. (p.34-35).

Para ilustrar a predominância de uma visão amplificadora da violência exposta na arena, a qual reduz o contexto social dos gladiadores e minimiza sua participação nessa sociedade, a autora se debruça sobre textos contemporâneos no segundo capítulo de seu livro, com o intuito de identificar as permanências dessas interpretações nas opiniões dos modernos. Como salienta

o discurso [...] exprime de uma só vez uma série de preconceitos sobre a sociedade romana que ainda circulam com vida: a idéia do romano que deturpava ou copiava a elaborada cultura grega e o conceito de plebe ociosa que se divertia com espetáculos sangrentos. Estas idéias, aliadas a uma terceira na qual somente os cristãos eram mortos na arena, constituem uma imagem muito forte de decadência, perversão e violência presente na mídia em geral e que acaba por formar um quadro negativo da sociedade romana. (p.65)

O capítulo seguinte destina-se ao estudo do locus no qual se realizavam os combates, pois, como afirma a autora,

a grandiosidade dos edifícios, o cuidado em sua decoração, as entradas separadas de acordo com a condição social, o tamanho e forma da arena possibilitaram a realização de um número maior de combates e caçadas, além de produzir novas formas de comunicação visual. A tecnologia desenvolvida para a construção dos anfiteatros de pedra tornou possível a presença de um número maior de pessoas, expressando hierarquias e acirrando divergências. (p.113)

Em seu último capítulo a autora remete o leitor ao cotidiano dos gladiadores, empregando não apenas fontes escritas, mas também epigráficas para sua interessante leitura sobre a gladiatura na sociedade romana. A conclusão a que chega a autora é a de que

da mesma forma que havia uma teia de pessoas envolvidas na construção dos anfiteatros, a realização dos combates de gladiadores, do evento em si, também contava com o trabalho de diversos profissionais [...] Sua organização, desde os primeiros anos de Principado, contava com uma intrincada rede administrativa. Os registros remanescentes nos fornecem indícios das diversas repartições ou cargos, bem como nos abrem caminhos para pensar como a gladiatura e sua organização envolvia distintas camadas sociais. (p.152)

Nas palavras da autora,

acreditando na possibilidade de propor leituras menos normativas do cotidiano daqueles que lutavam ou apreciavam os munera, elaboramos um estudo que visou, principalmente, a interdisciplinaridade [...] Por meio de uma constante discussão entre História, Arqueologia e Epigrafia vimos emergir outras vozes e percepções da gladiatura dispersas entre os membros das camadas populares. (p.198)

Tal preocupação com a visibilidade histórica das camadas populares constitui a grande contribuição da obra Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas, em que Renata Senna Garraffoni foca suas lentes no cotidiano dos gladiadores embasada em fontes literárias e arqueológicas, convidando o leitor a conhecer as várias faces de uma sociedade plural como a romana.

Revista de História - UNESP

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