quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Deus e o Diabo no imaginário feudal


Vieira.J.J.O
1. O imaginário
Os homens da Idade Média estavam convencidos de que mesmo quea natureza gere todos os homens iguais a criação não deve sergovernada em igualdade, pois homologamente a corte celeste, comsuas divisões de arcanjos e subdivisões de querubins, atendem opadrão de pureza e perfeição que a sociedade terreal quer seespelhar, logo também vai existir necessariamente uma hierarquiapara fundamentar a ideologia de harmonia social fundada natrifuncionalidade de serviços mútuos.
Por volta do ano mil (1023-1025) a literatura ocidental articula ateoria das três ordens do corpo feudal. Postula-se uma explicaçãonaturalista que justifica a desigualdade entre as classes. O autor é obispo Gerardo de Cambrai, em virtude do seu ofício julga deverdemonstrar, perante o mundo, “que, desde a origem, ogénero ,humano se dividiu em três: as gentes da oração, oscultivadores e as gentes de guerra; forneceu a prova evidente de quecada um é o objecto, por um e outro lado, de certo cuidado recíproco”(DUBY, 1994: 54)
“De passagem, o discurso evoca-a, com o único fim de justificar queos orat ores não trabalhem com as mãos e que os pugnat oresrecebam rendas. De mostrar como a ociosidade e a exploração fazemparte da ordem das coisas. Quer dizer, a expressão mais evidente domodo de produção senhorial.” (DUBY, 1994: 57).
2. Deus
Tudo passa por Deus, principalmente a História passa por Deus, comoé possível averiguar em Manuel dos Anjos no século XVI, autor que sepropõe a escrever um livro de História Universal. A América já estavadescoberta, porém é preciso se utilizar das autoridades, os sábios, aBíblia é a principal fonte de conhecimento e apreensão da realidade.Motivo pelo qual o autor não se arrisca a fazer uma história docontinente americano. Ora, o livro de História era escrito por mandatodo reverendo Padre Frei Fernando de Câmara, Ministro provincial dasagrada Ordem de penitência. Certamente, se a História do homemnão estivesse em sintonia com a redação do Gênesis, não seriaaprovada pelo santo Ofício. Na pior das hipóteses poderia até serconsiderado um herege.
A história do Homem começa com a divisão feita por Noé após odilúvio, que partilha os três continentes entre seus três filhos,Iaphet(Jafé) o filho mais novo e que Noé mais amava ficou com aEuropa, Sé o mais velho ficou com toda Ásia e Cam(Cão) ficou com ocontinente maldito: a África. "O ponto de partida da narrativa noseventos mítico-religiosos retratados no Gênesis, reproduzindo visãoprovidencialista típica da literatura histórica produzida na cronísticamedieval." (MACEDO, 2001: 02)
"A imagem de Deus numa sociedade depende sem dúvida danatureza e do lugar de quem imagina Deus." ( LE GOFF ,2007: 11). Olugar e a natureza dos que dominavam o saber teológico era bemreservado socialmente, pertencia apenas aos que conseguiamentender a Bíblia, os letrados em latim. “Entretanto, igualmenteóbvias (pelos menos para nós) são as desvantagens de se tentarcomunicar com toda a população da cristandade em uma línguaentendida apenas por uma minoria dessa população. Alguns leigosacreditavam que o uso do latim era uma artimanha do clero paramanter a fé secreta, "e em seguida vendê-la de volta para nós no
varejo". Deve-se enfatizar, no entanto, que a minoria que entendia
latim excluía muitos membros do clero medieval. Não é desurpreender que muitos do clero paroquial fossem ignorantes emlatim, dada a falta de meios para educá-los: mas mesmo no caso dosmonges, segundo um medievalista bastante conhecido, "descobrimosas autoridades admitindo vasta ignorância em latim e fazendotraduções especiais para uso dos irmãos incultos". (BURKE, 1995: 55),as traduções começam a se intensificar com o advento da imprensano século XIV, porém as primeiras casas tipográficas só chegam emPortugal no século XVI. As primeiras traduções do latim para oportuguês vêm desse período. Como pode ser observável no site daBiblioteca Nacional de Portugal. Vários livros do século XVI com umapágina em latim e logo em seguida outra em português arcaico.
"O Deus dos teólogos da Idade Média era seguramente o Deus daBíblia. Sua parte propriamente cristã, o Novo Testamento, introduziaJesus, o filho de Deus.” (LE GOFF, 2007: 94). Jesus, modelo deconduta a ser venerado, amado e imitado, os teólogos "Enfatizando
as glórias da vida eterna” desenvolveram uma ética cristã que“incentivou a renúncia aos prazeres terrenos e inclusive a renúncia aopróprio corpo, valorizando a continência e o rigor moral comocondições para a purificação da alma na preparação para oreencontro com Deus." (MACEDO, 1997: 51). O corpo é objeto degrande dignidade principalmente depois que recebe no sacramentoda eucaristia o corpo de cristo. Os sentidos do corpo são portasdemasiadamente apuradas, através dos ouvidos entram muitascoisas em nossa alma. Os sábios da Igreja costumavam repetir:-Fecha teus ouvidos e não escuta maledicências. É necessária umavigilânciaconstante para consertar os sentidos do corpo.
Jacques Le Goff é um desses historiadores que atua sem umaparcialidade mal intencionada. Autor que consegue garantir umadistância crítica de defesa para manter a objetividade, sempre comerudição, bom humor e humildade para afirmar somente o queexamina. Ele considera o Espírito Santo um palpite até o século XIII,ou melhor, no termo latino que ele usa “Deus ex machina” - É umalocução substantiva referente ao teatro grego, deus ex machina;Sendo alguma entidade paranormal que aparece sem nenhum nexode causalidade que resolve um problema aparentemente sem soluçãode maneira mágica. A expressão grega fora latinizada, ao pé dá letraé possível entender “deus da máquina”; faz alusão a um instrumentomecânico utilizado na tragédia clássica, permite que um sersobrenatural desça sobre o palco, oferecendo uma resolução fácilpara uma questão embaraçosa.
"Clericamente, havia no Feudalismo um papel de primeira ordemdesempenhado pelo grupo eclesiástico. Papel que extravasa, emmuito, sua atividade sacerdotal. Sendo a Igreja a única instituiçãoorganizada da época, de atuação realmente católica, que dizeruniversal, a ela cabia a função de cimentadora, unificadora, naquelaEuropa fragmentada em milhares de células. (FRANCO JUNIOR,1983:55).
Na sessão XXIV do capitulo I na página 266 da ata do ConcílioTridentino nos esclarece acerca do procedimento para convocarfuncionários da hierarquia como bispos e cardeais. O que énecessário para fazer parte do alto clero? Madureza e Prudência. Oprocesso eletivo deve garantir promoções para espíritos grandes,para os mais dignos e úteis a Igreja. Na teoria todas as pessoasidôneas têm direito de concorrer a qualquer promoção concernenteas diligencias da Sé Apostólica. Os concorrentes devem ter nascidosde um matrimonio legitimo, e dotados de vida, idade, doutrina, etodas as mais qualidades exigidas pelos sagrados Cânones, eDecretos do Concilio. A profissão da Fé é autorizada pelo SantíssimoPontífice Romano. Quem verifica a idoneidade do concorrente aCardeal? Um consistório. Três Cardeais examinam com diligencia,dentre mais um deles sendo o Cardeal Relator do Consistório, se osquatro afirmarem que o promovendo é dotado de qualidade para aprofissão, ele é ordenado, sob pena da salvação eterna dos membros
do consistório. A hierarquia da Igreja dá autorização de ordenaçãoaos Bispos. Pode-se celebrar o sacramento da Ordem. Uma vez padre,pode-se retornar a condição de leigo. Não é necessárioconsentimento do povo, os que ministram alegando que a instruçãovem do povo são tidos pelo Concílio Tridentino como salteadores eladrões. Para Padre a rigorosidade é diminuta, afinal a obrigação deleé ministrar a missa corretamente no mesmo horário, o controle dacasa de oração que em partes pode ser difícil, pois a conduta detodos passa por uma codificação, devem-se evitar conversações vãs,coisas impuras e lascivas, passeios, estrépitos, clamores.
"Uma das originalidades do Deus dos cristãos vem do fato de que elesO representam sob a forma de imagem." (LE GOFF ,2007: 69).Diferente dos outros deuses (como o do Judaísmo e do Islame), Jesusfoi a imagem e semelhança de qualquer homem do sexo masculino eDeus ao mesmo tempo, o que de certo modo facilita a suarepresentação, pois justamente"A encarnação é a humilhação deDeus. O corpo é a prisão (ergastulum= prisão para escravos) da alma:mais que a sua imagem habitual, é a sua definição. O horror ao corpoculmina nos seus aspectos sexuais. O pecado original, pecado deorgulho intelectual, de desafio intelectual a Deus, foi transformadopelo cristianismo medieval em pecado sexual. A abominação do corpoe do sexo atinge o cúmulo no corpo feminino"(LE GOFF ,1985: 145).Os sacerdotes seguem a risca os doutores da Igreja, pois comoadvertiu Jesus Cristo o que seria se um cego guiasse outros cedo,ambos cairiam.
"Durante os sermões fazia-se grande uso deexempla, nos quaisapareciam bastante frequentemente prostitutas, quer comopersonagens principais, quer como figuras de segundo plano, massempre com um certo destaque no fim da história." (PILOSU,1995:79). O destaque no fim da história é sempre atribuir uma maiorparcela de culpa para as mulheres. "Enfim, os "exemplos" (exempla)ilustram, sob a forma de relatos breves e concretos, fábulas ouhistorietas, as vantagens, para o cristão, de uma justaconduta."(SCHIMTT, 1999: 143)
Para os teólogos os outros deuses bem como outras interpretações docristianismo são folclore, superstição, falsos deuses. "Quando oscristãos se recusavam a rezar aos deuses dos diversos paganismos,geralmente, não era por lhe negarem a existência; elesconsideravam-nos como demónios, perigosos, sim, mas no entantomais fracos do que o único Criador." (BLOCH, 1979: 50)
3. Diabo
A adivinhação,a magia são duas práticas por exemplo que deantemão são conferidas ao Diabo, uma das maiores provas deatuação do diabo, é permitir que pessoas simples e comuns possamcontrolar as forças da natureza. Eles acreditavam que invocando asforças da natureza a seu favor lhes daria a capacidade de conhecer ofuturo, obviamente, uma complexa arte que envolve oração, jejuns efrases sem significação. Os encantamentos, feitiços e agouros podem ser utilizados para atrair um amor, curar uma dor de dentes, oucausar malefícios as fazendas. Esses são aspectos que estão ligadosa demonização da cultura pagã que antecede a cristã.
Na literatura oral, onde as fontes são riquíssimas em descrições, oDiabo é um personagem inevitavelmente derrotado, ele sempreperde, quer seja para os violeiros, quer seja biblicamente nastentações à Jesus.
No Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. O autor atribuí a cadapersonagem que atravessa o além , insígnias materiais. O Judeuchega com um bode nas costas; tal modo de segurar o animal poderevelar uma prática medieval, segundo a Professora Doutora AngélicaVarandas do Departamento de Estudos Anglísticos da Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa em seu artigo na revista de EstudosAntigos e medievais Brathair, intitulado "A cabra e o bode nosbestiários medievais ingleses" mostra que na Idade Média "eracostume castigar os judeus de praticas heterodoxas, fazendo-oscircular montados num bode ou numa cabra de costas para a cabeçado animal uma posição reservada aos criminosos"(página 07). De fatona Idade Media o bode podia representar o judaísmo e o Deus dosjudeus. A negação do Diabo no Auto em embarcar o bode significaque o próprio Deus judeu é entendido como um ser demoníaco pelopróprio Diabo.
No corpo a corpo com o zooantropoformismo não é de se estranharque o Diabo fora metaforizado em diversos animais: o porco, omorcego,a mosca.
Na Idade Média a iconografia nos mostra que o bode no bestiáriomedieval personificava a luxuria. É como a figuração desde vicio queo bode se manifesta na iconografia, certamente o bode é um dosvários animais do bestiário, cuja ambivalência de significados ficaevidente desde de Moisés em Levíticos. Já o carneiro é o símbolodivino e o bode o símbolo demoníaco, o cordeiro é o símbolo dosjustos e dos cristãos fiéis que serão salvos no dia do julgamento comomostra a parábola do bom pastor. O carneiro como referência podeate mesmo corporizar a cristo. Já o bode encarna características deuma licenciosidade fantásticas, uma libido desenfreada. O Diabo alémdesses atributos sexuais também partilha de semelhanças a níveisfisionômicos por possuir chifres, barba pontiaguda, cascos de animaise cauda bifurcada.
O Bode tambem é um animal contemplado pela imaginação naEuropa do Norte, onde o bode é um dos animais que puxam acarruagem de Thor o Deus do relâmpago e do trovão.
O bode também é relacionado com as artes da feitiçaria, o próprioDeus Baphomet aparece com cara de bode no livro de magia deEliphas Levi. O bode aparece no quadro de Goya, o Sabbath dasbruxas -o bode é um animal emblematizado diabolicamente, é aoredor dele que as bruxas se localizam, pois simboliza o pecado daconcupiscência e se associa a invocação do Diabo e às artes dafeitiçaria. O Bode de bruxa era também um instrumento de torturalargamente utilizado pela Inquisição.
Vicenzo Bruno, em meditações sobre os mysterios da paixam datadode 1601 editado em Lisboa, impresso pela casa tipográfica PedroCrasbeeck, a custa de um obscuro mercador de livros Migueld'Arenas, na página 95 o autor compila: “O demonio meteo primeiro
no coração de Iudas o penfamento da treição, & depois entrou nelleper execução da obra. Procuremos refiftir logo nos principios aosmáos penfamétos & fuggeftoens do Demonio, porque fe abrimospouco & pouco por complacencia a porta do confentimento, nomefmo ponto entra o Demonio & esbulha a alma da graça &doésfobrenaturaes de que Deos a tinha enriquecido. Por iffo o Real Profetano Pfalmo 136 chama bemauenturado aquelle q aos filhos pequenosde Babylonia, que faõ os penfamentos máos, logo em peqnos os mataarremeffandoos a Iefu Chrifto, que hé pedra.””.
Os pensamentos devem ser entregues à Jesus Cristo por ser o SumoSacerdote. Ele é o único mediador entre Deus e os seres humanos (1Tm 2.5). Já o Judas é uma figura muito marcante na paixão de Cristo,ele que desencadeia todo o processo, o pensamentos de traição éumasugestão do maligno, entrega Jesus por algumas moedasinfluenciado pela força do Diabo, entrando dentro dele para aexecução da tarefa. Os homens e as mulheres da Idade Médiaestavam persuadidos de queDeus deixava às vezes Satã ousimplesmente a natureza depravada dos homens semear a desordemsobre a terra.
"Certamente, as ligações entre Deus e a sociedade feudal estão entreas mais estreitas da história." ( LE GOFF ,2007:58 ). O maisinteressante é que o Diabo e a sociedade feudal também serelacionam demais. No mundo feudal tudo perpassa por Deus, sejapolítica, seja social, seja psicológica, seja militar, o que não apetece àDeus certamente estreita-se ao Diabo. Esse imaginário é o produtodas composições das formas feudais: "O regime feudal e a Igrejaeram de tal forma ligados que não era possível destruir um sem pelomenos abalar o outro." (LE GOFF ,2008: 83). Cada forma de produçãogera as suas próprias relações sociais e as suas próprias formas deorganização. Na Idade Média o feudalismo era cúmplice da religião.
Referências bibliográficas
BURKE, Peter A arte da conversação; tradução de Álvaro Luiz Hattnhr
- São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995
BLOCH, Marc, A sociedade feudal. Tradução de Emanuel Lourenço
Godinho. Lisboa: Edições 70, 1979.
FRANCO JUNIOR, Hilário. O feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civ.
Brasileira, 2008.
_____.O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007.
_____.O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa:
Edições 70, 1985
MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saberenciclopédico medieval. SIGNUM: Revista da ABREM, Vol. 3, p. 101-132, 2001.
PILOSU, Mario. A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa:
Editorial Estampa , 1995.
SCHIMTT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval.Tradução Maria Lucia Machado. — São Paulo Companhia das Letras.1999.
Fontes
BRUNO, Vincenzo, Meditações sobre os mysterios da paixam,resurreiçam, e acensaõ de Christo Nosso Senhor, & vinda do SpirituSancto, com figuras & profecias do Testameto Velho, & documentostirados de cada hum dos passos do Evangelho / recolhidas dediversos Sanctos Padres, & outros devotos auctores pello PadreVicete Bruno... ; agora novamente traduzidas de lingoagem italianana portuguesa, & acrecentadas com muytos lugares da SagradaEscritura pello P. Bras Viegas... - Em Lisboa : impresso por PedroCrasbeeck : aa custa de Miguel d'Arenas mercador de livros, 1601
IGREJA CATOLICA. Concílio de Trento, 1545-1563, O sacrosanto, eecumenico Concilio de Trento em latim e portuguez / dedica econsagra, aos... Arcebispos e Bispos da Igreja Lusitana, João BaptistaReycend. - Lisboa : na Off. de Francisco Luiz Ameno
ANJOS, Manuel dos. Historia/ universal,/ em que se descrevem os/imperios, monarchias, reynos, & provincias/ do mundo, com muitascousas nota-/veis, que ha nelle/ / copiada de diversos authores,/chronistas approvados, & authenticos geographos./.../- Em Coimbra :na officina de Manoel Dias, 1651.


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