quinta-feira, 31 de março de 2011

Angelo Agostini - Carnaval de 1881

Carnaval de 1881
Revista Ilustrada, Ano 6, n. 241, p.4-5, 1881.
1- Do alto dos carros, carnavalescos atiravam à assistência versos compostos para a ocasião e alusivos ao tema do carro de crítica.
2- As grandes sociedades costumavam apresentar-se ao som de bandas marciais que executavam peças como a "Marcha Triunfal" da ópera Aída, de Verdi. Neste carro, no entanto, escravos apresentam-se dançando em batuques em homenagem aos líderes abolicionistas. Agostini os mostra desempenhando suas danças e ritmos em uma previsível incongruência sonora com a sonoridade "oficial" do desfile.

1- Fantasiados de "diabinhos", capoeiras se faziam presentes na passagem dos préstitos - como em todos os espaços do carnaval. Muitas vezes foram condenados pela sua violência e atitute de desafio, mas por vezes eram vistos como "garantia" das próprias sociedades, defendendo seus carros alegóricos e de crìtica contra invasores indesejáveis, a soldo daqueles que pediam à polícia providências contra sua presença.
2- Este carro de crítica, intitulado "A Mancha de Júpiter", satirizava a passividade do Imperador diantte da escravidão. Ironizando seu apregoado apelo à contemplação científica , a imagem de Pedro II, observada pela luneta, revela-o como um inatingível planeta. Em sua longa testa, vê-se a mancha negra da escravidão que espanta os astrônomos que animam os carros.

1- Carro de crítica alusivo à abolição da escravidão. A figura do escravo é representada como "montaria" para os senhores. Note-se a insistência com que o tema aparece no desenho, 7 anos antes da Lei Áurea.
2- Brigas e "rolos" entre a assistência das ruas são um elemento frequente na descrição de A. Agostini. Eles resultavam, segundo alguns cronistas da época, da "mistura social" acarretada pelo interesse generalizado pelos préstitos das sociedades, que levavam à prática de brincadeiras tradicionais do entrudo entre indivíduos socialmente desiguais.
1- O carro alegórico com a forma de uma biga romana reforça o permanente recurso às remissões à cultura clássica como meio de legitimação e atribuição de "distinção" aos préstitos de grandes sociedades. Sobre este carro vinham prostitutas ou "atrizes livres" que, ao mesmo tempo, exibiam seus dotes e personificavam figuras alegóricas, como "A Liberdade", "A Justiça" etc.
2- A platéia, em atitude respeitosa nesse trecho do desenho, revela a presença de senhoras e homens da elite, portando cartolas. A presença das "famílias" assistindo à passagem das prostitutas encarapitadas nos carros, constituiu motivo de escândalo para cronistas conservadores - e de humor para outros.
3- O Exército Nacional, logo após o prestígio da vitória no Paraguai, tampouco era protegido da "crítica" e da sátira dos carnavalescos das grandes sociedades.

Unicamp | Universidade Estadual de Campinas

quarta-feira, 30 de março de 2011

Angelo Agostini de volta do Paraguai - 1870

Ângelo Agostini
(1843-1910) Desenhista italiano que construiu carreira no Brasil. Foi um dos primeiros cartunistas no país e o mais importante artista gráfico. Sua carreira teve início com os combates da Guerra do Paraguai em 1864.
A charge de Ângelo Agostini na Semana Illustrada, mostrava o horror expresso nas feições do herói de guerra negro que voltava, condecorado, e encontrava sua mãe sendo chicoteada pelo feitor na fazenda.

A herança de Vargas: a crise de 1954 e a carta testamento


A ida de João Goulart para o Ministério do Trabalho, em meados de 1953, fez parte da estratégia deGetulio Vargas de reformar o ministério visando a uma maior sustentação de seu governo. Na verdade, Goulart não foi capaz de conter o ímpeto da oposição que denunciava, entre outras coisas, o favoritismo do governo nos empréstimos ao jornal Ultima Hora, único periódico da grande imprensa a apoiar Vargas. Em fevereiro de 1954, vem a público o Manifesto dos coronéis, documento que criticava a política econômica e trabalhista do governo e pedia mais recursos para as Forças Armadas. Em seguida, o ex-ministro João Neves da Fontoura traz a público correspondência secreta entre Vargas e o presidente da Argentina, Juan Domingo Perón. Nela se cogitava a formação de uma república sindicalista no Brasil e também a de um pacto dos dois países, em conjunto com o Chile, o pacto do ABC, que teria como objetivo formar um bloco continental de oposição aos Estados Unidos.

Em maio, com Jango já fora do Ministério do Trabalho, Getúlio concede um aumento de 100% no salário mínimo, iniciativa entendida como um gesto extremado para procurar apoio entre os trabalhadores em função da oposição sistemática que recebia do Parlamento, da imprensa e dos militares. O maior porta-voz da oposição era Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN) do Distrito Federal, um brilhante orador de vocação golpista. O clima político era regido também pelas discussões em torno da sucessão presidencial, cujas eleições se dariam em outubro de 1955. De um lado, os seguidores de Getulio, acuados pelo rolo compressor da oposição; de outro, os antigetulistas, ambos com aliados nos quartéis.

No plano militar, o debate se radicalizava ideologicamente dentro do Clube Militar, instituição também recortada pela clivagem getulismo e antigetulismo. No Congresso, em junho de 1954, é votado o impeachment de Vargas, que, embora rejeitado por ampla margem, dá o termômetro do clima político da época. A escalada contra o governo tem novo patamar em agosto de 1954 quando Carlos Lacerda é vítima de um atentado na rua Tonelero, em que morre um dos seus guarda-costas, o major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz. A Aeronáutica toma a dianteira nas investigações policiais e rapidamente descobre que as ordens do atentado tinham partido do chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato.

A partir de então, um bombardeio de críticas toma conta da imprensa que denuncia o "mar de lama" em que se convertera o governo. Os quartéis entram em prontidão e, em sucessivos manifestos, brigadeiros, almirantes e generais pedem a renúncia ou a deposição de Vargas. Frente a essa pressão, Getulio convoca uma reunião ministerial na noite do dia 23 de agosto, assistida por sua filha Alzira, João Goulart, e vários assessores e amigos do presidente. Ao final, Vargas decide licenciar-se do governo por 90 dias.

Dir/esq: Tancredo Neves, João Goulart e outros durante enterro de Getúlio Vargas. Agosto 1954.Na madrugada do dia 24, quando a reunião terminara, Getulio foi informado que seu irmão, Benjamim Vargasestava sendo convocado a depor na "República do Galeão", nome dado à operação da Aeronáutica que se investira de funções policiais para apurar o atentado da Rua Tonelero contra Lacerda. Mais tarde, foi-lhe comunicado que os militares consideraram definitivo o seu afastamento do poder. A licença fora convertida em veto militar. O Palácio do Catete já estava protegido com trincheiras de sacos de areia. A possibilidade de uma guerra civil era considerada uma ameaça real. Por volta das 8:30h Getulio Vargas se suicida.

O impacto do suicídio de Vargas foi surpreendente. Primeiro pela ousadia do gesto, segundo, pela emoção e pelo ambiente de tragédia que tomou conta do país, terceiro, pelo desnorteamento que produziu em seus adversários. Foi um ato político, talvez o maior concebido por Getúlio, que sabia poder contar com a simpatia do povo. Como testemunho de seu gesto Getulio deixou uma carta testamento com três cópias. Uma, na mesa de cabeceira da cama onde morreu, outra dentro do seu cofre e uma terceira entregue a Goulart, ainda durante a reunião ministerial. Getulio pedira a Jango que guardasse o documento sem lê-lo e se retirasse para o Rio Grande do Sul, pois no Rio, ele, Getulio e o próprio governo eram muito vulneráveis.

João Goulart durante o velório de Getúlio Vargas. Agosto, 1954.

A Carta Testamento é um documento nacionalista emocionado. Nela Getulio denuncia os interesses econômicos que o teriam impedido de fazer um governo mais eficaz em prol dos pobres e denuncia as conspirações e humilhações de que vinha sendo vítima. O suicídio era uma maneira de continuar presente, especialmente na oposição: "Deixo à sanha de meus inimigos o legado de minha própria morte." Na carta há uma imagem conspiratória da história, a noção de que interesses subalternos, escusos, conspiravam contra seu projeto de redenção dos brasileiros. Este tom passional e dramático transforma a carta em ícone, em símbolo do que seus seguidores poderiam conceber como o melhor projeto para o Brasil: o nacionalismo e o trabalhismo getulista.

O fato de Getulio ter entregue pessoalmente a Jango um documento deste teor era uma maneira de expressar publicamente a descendência de sua linhagem política. Jango era o fiel depositário da carta-síntese de sua vida e obra. Aqui simbolicamente fica como o responsável pela continuidade da obra iniciada por Vargas. É o sucessor ungido pelo carisma, é o herdeiro de uma idéia, de um estilo de política, a continuação de Vargas no poder, o ponto de referência para o PTB e para os trabalhistas.

Maria Celina D´Araújo

O aumento do salário mínimo e a saída de Jango do Ministério do Trabalho


A política de aproximação com o movimento sindical realizada por João Goulart não passava despercebida a seus opositores que, por isso, atacavam o ministro e o presidente Vargas. Quando, em outubro de 1953, ocorreu a ameaça de uma segunda greve de marítimos, Jango foi rápido na contenção do movimento que arriscava comprometer a estabilidade do governo. Sua prática de negociar e se antecipar às demandas dos trabalhadores, forçando, muitas vezes, os empregadores a fazer concessões, foi freqüentemente vista e denunciada não como uma forma de esvaziar conflitos, mas como uma maneira de estimulá-los e mesmo de "pregar a luta de classes". Nessa ótica, e de forma equivocada, Jango não era o ministro do Trabalho, mas o ministro dos trabalhadores; pior ainda, dos "maus trabalhadores".

A gota d’água nesse tenso processo pode ser datada do início de 1954, quando Jango propôs um projeto de aumento do salário mínimo de 100%. Segundo ele, devido à elevação do custo de vida, a questão salarial continuava explosiva e, para enfrentá-la, era necessário elevar o salário mínimo de 1.200 para 2.400 cruzeiros. Não é difícil imaginar a reação provocada por esse projeto. Ao que tudo indica, Jango o encaminhou mesmo sabendo que isso poderia lhe custar o próprio cargo. Se realmente pensou assim, estava certo. Em fevereiro, em meio a uma grave crise política, era substituído por um fiel companheiro, Hugo de Faria, que assume como ministro interino.

Os principais lances da crise são úteis para se dimensionar o montante da articulação oposicionista, e que se concluiria com o episódio do suicídio de Vargas, em agosto do mesmo ano. O ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha manifestou sua total contrariedade à proposta, secundado pelos membros da "banda de música" da União Democrática Nacional (UDN) – parlamentares que faziam muito barulho no Parlamento, sempre atacando Vargas. As acusações não eram novas, mas ganhavam virulência ante o desmedido da proposta em causa. Jango era um "manipulador da classe operária", "um estimulador de greves", "um amigo dos comunistas", que tinha como plano a implantação, naturalmente com o assentimento de Vargas, de uma "república sindicalista" no Brasil. Alimentando tais ataques havia um outro. O de que Vargas mantinha conversações secretas com Juan Perón, presidente da Argentina, no sentido da formação do chamado Pacto ABC – Argentina, Brasil, Chile – com evidentes contornos anti-americanos e tendências "socializantes". Uma mistura explosiva de má condução da política interna e externa, capaz de justificar até mesmo um pedido de impedimento do presidente.

Mas ainda houve mais. O chamado Manifesto dos Coronéis, com a assinatura de 82 oficiais, explicitou o descontentamento dos militares com o tratamento que vinham recebendo do governo e afirmou a impossibilidade de um trabalhador ganhar o mesmo "salário" de um segundo-tenente do Exército. Se o aumento do salário mínimo podia quebrar o país, certamente iria esvaziar o Exército de recrutas e de dignidade. Certamente não por casualidade, o Manifesto dos Coronéis é divulgado quase no mesmo dia em que é oficializada a proposta de aumento do salário mínimo. Num dia 22 de fevereiro, dois ministros acabaram sendo exonerados: Jango, e o da Guerra, o general Espírito Santo Cardoso, substituído pelo general Zenóbio da Costa. A despeito disso, no dia 1˚ de maio de 1954, Vargas anunciou o novo salário mínimo. http://www.fgv.br

Angela de Castro Gomes

João Goulart - Trabalhadores, movimento sindical e greves


Quando João Goulart toma posse como ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas, em 1953, era grande o descontentamento entre os trabalhadores urbanos e organizados em sindicatos. Desde a eleição de Vargas, aumentaram as expectativas e a mobilização desses trabalhadores. Afinal, tratava-se de um governo que lhes acenara com promessas de melhorias e que abrira possibilidades para a expansão do movimento sindical, muito reprimido durante a presidência deEurico Gaspar Dutra. Contudo, durante os anos de 1951 e 1952, a inflação e o custo de vida subiram bem mais que o salário mínimo, que, desde 1943, quando fora criado, recebera um único e insuficiente aumento. Juntando-se os dois lados da moeda – difíceis condições salariais e maior liberdade para a mobilização sindical –, o resultado é um grande número de greves. Segundo alguns cálculos, elas alcançaram a cifra de 264 nesses dois anos, concentrando suas reivindicações nos aumentos salariais ou no pagamento de salários atrasados. A categoria que mais se fez presente foi a dos operários têxteis, mais numerosos devido ao perfil da indústria do país nos anos 1950.

O ano de 1953 é histórico, tomando-se esse ponto de vista. Nele ocorrem duas experiências grevistas particularmente importantes para o sindicalismo brasileiro. Em março, a chamada greve dos 300 mil, que agitou São Paulo não apenas pelo grande número de manifestantes, como principalmente por ter dado origem a um Comando Intersindical, do qual nasceu uma organização à margem da estrutura sindical corporativa: o Pacto de Unidade Intersindical (PUI). E em junho, a greve dos marítimos, diretamente relacionada à chegada de Jango ao Ministério do Trabalho. Se por um lado, essa greve inaugurou uma estratégia de negociação entre governo e sindicatos, por outro, desencadeou o temor de muitos, a começar pelo ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, defensor de uma política de contenção de gastos e crítico de qualquer elevação salarial. Foi nesse espaço minado, portanto, que Jango se moveu.

Sua gestão assinalou uma orientação de liberalização nas relações entre movimento sindical e Ministério do Trabalho, tendo tomado várias iniciativas importantes. Foi extinta a exigência de um pedido prévio e obrigatório para se realizar assembléias sindicais e, na mesma linha, aboliu-se o envio de um fiscal do ministério para observá-las. Mais importante ainda: não mais foram feitos adiantamentos em dinheiro, pela Comissão de Orientação Sindical, aos sindicatos, pois isso os colocava em posição de devedores e dependentes desse órgão do Ministério do Trabalho. Tais condições, somadas ao fim do atestado de ideologia e à nova decisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB) de entrar na estrutura sindical oficial, resultaram em grande mobilização política dos trabalhadores e em um novo e acirrado tipo de competição entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e os comunistas no terreno sindical.

Além de tudo isso, a estrutura sindical foi revigorada por um novo tipo de relações com a máquina previdenciária então existente. No I Congresso de Previdência Social, ocorrido no Rio de Janeiro e reunindo representantes de todo o país, ficou estabelecido não só um maior acesso dos sindicatos aos serviços assistenciais da previdência, como igualmente um maior acesso dos sindicalistas (e também dos petebistas) aos cargos da administração dos inúmeros Institutos de Pensões e Aposentadorias, os IAPs. Essa prática se tornaria regulamento (Decreto-Lei nº 7.526), em maio de 1954, após a saída de Goulart do ministério. Esse é um ponto a ser destacado, já que a relação dos sindicatos com a máquina da previdência social torna-se, desde então, uma das principais fontes de poder dos sindicalistas, do PTB e do próprio João Goulart.

Angela de Castro Gomes

João Goulart - O ministro dos trabalhadores


João Goulart ao centro durante sua posse como ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas. 17 jun. 1953.A posse de João Goulart no Ministério do Trabalho do governo Getúlio Vargas, em 17 de junho de 1953, não deve ser entendida como um acontecimento político-administrativo como tantos outros do gênero, ocorridos anteriormente ou posteriormente. Há, pelo menos, duas razões para isso. A primeira tem a ver com a escolha do nome do ministro, ou seja, com sua trajetória política e com o que ela representava. A segunda envolve as circunstâncias em que ele chega ao cargo, ou seja, no bojo de uma reforma ministerial que provocou polêmica entre os contemporâneos e que ainda hoje suscita debates na literatura que trata do tema.

Jango, como era conhecido e gostava de ser tratado, torna-se ministro aos 35 anos; jovem em idade, mas nem tanto em experiência política. Sua carreira foi meteórica. Entre 1947 e início de 1952, foi deputado estadual, deputado federal, secretário de Interior e Justiça e principal organizador do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) gaúcho. Além disso, e o que o qualifica para uma posição tão alta em momento tão delicado são suas estreitas ligações pessoais com Vargas e sua já inequívoca liderança dentro do PTB. Presidente do partido desde 1952, Jango já era identificado em 1953, para o bem e para o mal, como um líder partidário de grande carisma junto à classe trabalhadora, além de receber uma especial atenção do presidente.

Toma posse no bojo de uma grande reforma ministerial e em meio a uma crise que atingia especialmente o Ministério do Trabalho. Essa reforma tem sido interpretada por uns como uma "virada à esquerda" do governo Vargas e, por outros, como uma maturação das intenções conciliadoras do mesmo governo, que insistia na busca de um consenso político. Esta última perspectiva tem ganho espaço crescente entre os estudiosos, o que implica em se pensar por que, sobretudo para os contemporâneos (militares e civis de vários partidos), interessava ou era possível ver a reforma como uma possível "radicalização popular" do governo. A resposta está, em boa parte, nas ações do titular da pasta do Trabalho.

Segadas Viana (ao centro) abraça João Goulart durante a cerimônia de transferência do cargo de ministro do Trabalho. 17 jun. 1953.

Jango é nomeado ministro quando José de Segadas Viana, outro petebista, pede exoneração do cargo, devido a discordâncias relativas ao tipo de condução política a ser dada a uma grande greve de marítimos que paralisava os portos do Rio de Janeiro, Santos e Belém. Portanto, a substituição não só deixa clara a existência de confrontos dentro do PTB no que dizia respeito às relações com o movimento sindical, como explicita o apoio que Vargas estava disposto a dar a uma nova estratégia proposta por seu jovem ministro. Em lugar de convocar os reservistas da Marinha de Guerra para substituir os grevistas, que seriam considerados desertores se fosse usada uma legislação, nunca aplicada, da época da Segunda Guerra Mundial, Jango estabelece negociações com os sindicalistas e esvazia a greve. Sua fórmula, que propunha menos repressão, vinha a calhar, pois o governo não estava em maré de popularidade junto aos trabalhadores. Um governo, aliás, que ainda na campanha de 1950 agitara como bandeira os ideais trabalhistas, marca registrada de Vargas desde o Estado Novo. Um fracasso nesse campo estratégico pelo que simbolizava e pelo número de votos que envolvia era, efetivamente, um sinal de derrota para a liderança pessoal de Vargas e para o bom curso do restante de seu mandato. A escolha de Jango, portanto, foi um ato ousado do presidente, mas o teste que o ministro enfrentaria tinha alto grau de complexidade e importância políticas.

Num certo sentido, pode-se dizer que Jango se saiu muito bem. Cerca de dez dias depois de tomar posse, a greve estava encerrada. Houve reuniões com o comando geral e o próprio ministro se encontrou com empregadores e trabalhadores para encaminhar uma solução definitiva. Muitas demandas dos grevistas foram atendidas e o impopular presidente da Federação dos Marítimos foi afastado. Uma ação rápida, que evidenciou o estilo político de um ministro que gostava de falar pessoalmente com lideranças sindicais e que intervinha diretamente na dinâmica das negociações dos conflitos trabalhistas. Interessante por um lado e assustador por outro, especialmente para setores conservadores e oposicionistas, como os militares e os udenistas, sempre dispostos a mobilizar o medo face à ameaça do "continuísmo" de Vargas e/ou de uma excessiva aproximação sua com a "massa trabalhadora". De fato, esse é o tom que marca a curta e ativa gestão de Jango na pasta do Trabalho: maior aproximação com setores sindicais e crescentes acusações por parte de variados grupos políticos oposicionistas.

Angela de Castro Gomes

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Liga das Nações



A Liga das Nações foi uma organização internacional criada em abril de 1919, quando a Conferência de Paz de Paris adotou seu pacto fundador, posteriormente inscrito em todos os tratados de paz.

Ainda durante a Primeira Guerra Mundial, a idéia de criar um organismo destinado à preservação da paz e à resolução dos conflitos internacionais por meio da mediação e do arbitramento já havia sido defendida por alguns estadistas, especialmente o presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson. Contudo, a recusa do Congresso norte-americano em ratificar o Tratado de Versalhes acabou impedindo que os Estados Unidos se tornassem membro do novo organismo.

A Liga possuía uma Secretaria Geral permanente, sediada em Genebra, e era composta de uma Assembléia Geral e um Conselho Executivo. A Assembléia Geral reunia, uma vez por ano, representantes de todos os países membros da organização, cada qual com direito a um voto. Já o Conselho, principal órgão político e decisório, era composto de membros permanentes (Grã-Bretanha, França, Itália, Japão e, posteriormente, Alemanha e União Soviética) e não-permanentes, estes últimos escolhidos pela Assembléia Geral. Não possuindo forças armadas próprias, o poder de coerção da Liga das Nações baseava-se apenas em sanções econômicas e militares. Sua atuação foi bem-sucedida no arbitramento de disputas nos Bálcãs e na América Latina, na assistência econômica e na proteção a refugiados, na supervisão do sistema de mandatos coloniais e na administração de territórios livres como a cidade de Dantzig. Mas ela se revelou impotente para bloquear a invasão japonesa da Manchúria (1931), a agressão italiana à Etiópia (1935) e o ataque russo à Finlândia (1939). Em abril de 1946, o organismo se autodissolveu, transferindo as responsabilidades que ainda mantinha para a recém-criada Organização das Nações Unidas, a ONU.http://www.fgv.br

Anos 20 - Modernidade Carioca


Os artistas e intelectuais cariocas dos anos 20 reagiam à idéia do modernismo como movimento cultural organizado. Manuel Bandeira, um dos expoentes da poesia modernista, sempre declarou que seus escritos haviam-se inspirado mais na vivência das rodas boêmias cariocas do que em discussões intelectuais.

No Rio de Janeiro, o intercâmbio entre os artistas e intelectuais e as camadas populares ocorria de fato muito mais no espaço informal das ruas, dos cafés, das festas de igreja, como a da Penha, das casas de santo, como a da Tia Ciata, e dos carnavais. Desde o início do século, e mais acentuadamente em meados da década de 1910, vários artistas e intelectuais estrangeiros, como Gustavo D'Allara, Paul Claudel (embaixador da França no Brasil), Darius Millaud e Blaise Cendrars passaram a visitar o Brasil no intuito de conhecer sua literatura, pintura, folclore e música popular. Millaud estabeleceu relações pessoais com Pixinguinha e Donga, inspirando-se em sua música para montar musicais em Paris. Esse "diálogo cultural" que caracterizava a estética moderna também mobilizou alguns artistas e intelectuais cariocas como Afonso Arinos, Emílio de Menezes, Bastos Tigre e Hermes Fontes, que freqüentavam a república dos compositores populares e os cafés da Lapa.

Fora das rodas boêmias, Graça Aranha, com sua obra A estética da vida (1921), tornou-se o "paladino" do modernismo e foi convidado a fazer a conferência de abertura da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais Neto, que fundaram no Rio, em 1924, a revista Estética, compunham com Ronald de Carvalho e Renato de Almeida um grupo de intelectuais sintonizados com o movimento modernista paulista.http://www.fgv.br

terça-feira, 29 de março de 2011

Visões originais sobre o cangaço

Entre suas melhores passagens, o livro propõe que a forma de guerrear do cangaceiro foi produto do amadurecimento secular da experiência de negros rebelados, caboclos oprimidos, e da crueldade do senhorio moreno do Nordeste, vencendo assim a tentação de explicar a luta entre as forças da ordem e do banditismo alinhando-as em termos de classe ou cultura
Publicado em 08 de fevereiro de 2011

Fabrizio Rigout

É sempre uma surpresa positiva encontrar um livro de pesquisa social que exercite a dúvida. Uma obra que exponha tanto as evidências que levaram o autor a chegar a determinada conclusão como aquelas que poderiam fazer com que o leitor delas suspeitasse. Temos então a promessa de um diálogo de honestidade intelectual. Isso se alcança, num primeiro momento, pelo descarte das grandes teorias explicativas em favor de um recorte mais indutivo, o que por sua vez pode implicar uma falta de ambição teórica. Esse é sempre o dilema da explicação na ciência social: comprovar a tese ou teorizar sobre a prova. A interpretação apresenta-se nessas horas como alternativa. O autor interpela os fatos não para retomar na conclusão a hipótese adiantada no primeiro capítulo, mas o faz no decorrer da exposição à luz de grandes questões teóricas, buscando dosar profundidade e representatividade.

É uma missão arriscada que requer muita capacidade argumentativa. Se à criatividade necessária para realizar esse projeto não corresponder uma pesquisa original diligente, a obra será enquadrada entre os textos de sistematização. Se o autor ostenta grandes descobertas factuais, porém faz perguntas ingênuas, o livro gravita para um mercado em que o sucesso de público depende tanto ou mais da qualidade literária do que do interesse teórico.

Interpretação original

Em Os Cangaceiros – Ensaio de Interpretação Histórica, Luiz Bernardo Pericás aborda o fenômeno mais conhecido da história popular do Nordeste do Brasil, e um dos mais discutidos na historiografia nacional, decidido a correr o risco de trilhar esse caminho ambicioso, e o faz com muito sucesso. Preparou sua pesquisa pensando fora do convencional. Antes de viajar pelo semiárido, passou um ano na Universidade do Texas, em Austin, na maior das bibliotecas de estudos latino-americanos dos EUA, incorporando fontes descartadas ou ignoradas até então por especialistas da área. Seu amplo espectro de interesses intelectuais o fez escrever um livro em que explora a relação do cangaço com o movimento operário, a questão “racial”, confronta-o com as teorias do banditismo social, os misticismos religiosos, analisa seus personagens e estrutura de organização tendo por pano de fundo as características dominantes da sociedade rural nordestina de então: a persistência de estruturas oligárquicas e a violência do cotidiano.

Muitos podem não concordar com suas teses originais, mas é difícil que alguém as considere ousadas demais em face da riqueza de fatos apresentada. Entre suas melhores passagens, o livro propõe que a forma de guerrear do cangaceiro foi produto do amadurecimento secular da experiência de negros rebelados, caboclos oprimidos, e da crueldade do senhorio moreno do Nordeste, vencendo assim a tentação de explicar a luta entre as forças da ordem e do banditismo alinhando-as em termos de classe ou cultura. Em todos os momentos, a análise revela maturidade ao não se deixar seduzir pela dimensão épica do cangaço e traçar um panorama complexo das mentalidades de seus integrantes, em que as vontades de riqueza, poder e gozo se misturam ao desejo de justiça coletiva e redenção.

Trata-se da obra mais sofisticada até o momento de um historiador jovem, inquieto, e de certo modo outsider. Pericás construiu uma já prolífica carreira (mais de 50 artigos acadêmicos publicados, dez livros, sendo dois de ficção, e outros tantos organizados e prefaciados) tangenciando os departamentos universitários, evitando associar-se a esta ou àquela corrente de pensamento. Tal desprendimento seguramente é uma das razões para o frescor deste livro.

Fabrizio Rigout é doutor em sociologia pela Universidade da Califórnia

Os Cangaceiros – Ensaio de Interpretação Histórica
Luiz Bernardo Pericás
Boitempo
320 págs. – R$ 54

    domingo, 27 de março de 2011

    O Brasil e suas epidemias

    Na hygiene dando ordens
    Charge de J. Carlos (1884-1950)

    "O Sr. nada tem a fazer em casa dos Srs. Deputados... só pode atacar as casas dos particulares, e não os poupe; é carregar p'ra frente no povo miúdo."
    http://www.revistadehistoria.com.br

    Moacyr Scliar

    O Brasil e suas epidemias

    Uma retrospectiva histórica sobre o complicado e muitas vezes letal convívio dos brasileiros com suas doenças tropicais

    Os primeiros navegadores que chegaram ao Brasil ficaram impressionados com a robustez e com o aspecto sadio dos índios, que, de fato, alimentavam-se abundantemente de produtos naturais, movimentavam-se constantemente – não tinham, portanto, problemas de sedentarismo – e não cultivavam hábitos nocivos à saúde. O tabaco, por exemplo, era usado apenas esporadicamente e em rituais; os problemas mais tarde criados pela industrialização, comercialização e propaganda do cigarro não existiam.

    Este quadro, todavia, logo começou a mudar. Os europeus traziam consigo, além do interesse econômico e das armas de fogo, micróbios causadores de doenças para as quais os índios não tinham imunidade. Assim eles poderiam adoecer gravemente, e até morrer, de uma simples gripe. Outras doenças eram ainda piores, como foi o caso da varíola, enfermidade que hoje não existe mais: desapareceu depois de uma bem-sucedida campanha mundial de vacinação, conduzida pela Organização Mundial da Saúde há cerca de 40 anos. Mas naquela época a vacina não existia e, mesmo que existisse, não seria aplicada nos índios. Ao contrário, os conquistadores, como Cortés no México, logo se deram conta de que a doença trabalhava a favor deles. De fato, a derrota dos astecas pelos espanhóis foi facilitada por uma epidemia de varíola.

    Ao longo do tempo criou-se uma verdadeira “guerra biológica”: tanto na América do Sul como na América do Norte os colonizadores que queriam se apossar das terras indígenas espalhavam, nas trilhas destes, roupas de pessoas que tinham varíola. Os índios ingenuamente as vestiam, contraíam a doença e morriam como moscas. No Brasil, a primeira epidemia de varíola ocorreu já em 1563. Outras doenças vindas do Velho Mundo foram sendo introduzidas: malária, febre amarela, tuberculose, peste bubônica. Logo toda a população da colônia estava sujeita a elas. Os escravos negros, por causa das péssimas condições de vida e de nutrição; os brancos, porque não dispunham de vacinas ou de tratamentos eficazes. A isto se acrescentou outro fator: o surgimento das cidades, que tinham precárias condições de higiene e saneamento. Por outro lado a assistência à saúde era muito deficiente. Os físicos, como eram chamados os médicos, eram em geral formados em Portugal. A primeira escola de medicina, em Salvador, só surgiu com a chegada da Família Real em 1808. O número de físicos era pequeno; a maior parte da população consultava curandeiros. A assistência hospitalar estava a cargo das Santas Casas, estabelecimentos de caridade que proporcionavam abrigo e amparo religioso aos moribundos, mas que não dispunham de recursos terapêuticos eficazes.

    Com relação à saúde pública organizada pouco se fazia. Existia um físico-mor, que, através de assistentes, fiscalizava a prática médica e a venda de medicamentos, esta feita nas boticas, que aplicavam ainda sanguessugas, que serviam para extrair o “excesso” de sangue ou o sangue “envenenado”. As boticas eram também ponto de encontro para conversas e para o jogo de gamão.

    Surge a medicina tropical
    À medida que o País crescia, os problemas de saúde se agravavam e ficava cada vez mais evidente a incapacidade do governo para resolvê-los. Em 1850, por ocasião de uma grande epidemia de febre amarela, foi criada a Junta Central de Saúde Pública, precursora do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, o conceito de medicina tropical chegava ao Brasil. Tratava-se de uma decorrência do colonialismo europeu; nas colônias da África e das Américas as doenças chamadas tropicais dizimavam a mão-de-obra e dificultavam o comércio de produtos coloniais. Além disso, em meados do século XIX iniciara-se um intenso movimento migratório da Europa para as Américas, muito estimulado pelos governos latino-americanos, para os quais, como dizia o intelectual argentino Juan Alberdi, “governar era povoar”. Tratava-se de trazer mão-de-obra para a lavoura, sobretudo a do café, uma necessidade que crescia à medida que se aproximava o fim da escravatura negra. E tratava-se também de “branquear” a população, que, para muitos, tinha índios demais, negros demais, mestiços demais. Mas, assim como os índios haviam sucumbido à varíola, os europeus mostravam-se suscetíveis à febre amarela, e isso logo foi encarado pelo governo como um sério problema. Os médicos, por sua vez, deram-se conta de que precisavam concentrar suas pesquisas e estudos nos problemas mais prevalentes no trópico. Surgiu em Salvador a escola tropicalista baiana, em que se destacaram cientistas como Otto Wucherer (1820-1873).

    As doenças infecciosas eram muito freqüentes na então capital federal, o Rio de Janeiro. Grassavam ali a febre amarela, a peste, a varíola, a tuberculose. Isso ficou dramaticamente ilustrado pelo episódio com o Lombardia. Este navio da Marinha italiana, em visita de cortesia ao Brasil, tinha 340 tripulantes; todos, menos sete, contraíram a febre amarela e 234 morreram. Notícias como essas se espalhavam e logo o porto do Rio de Janeiro começou a ser evitado pelas companhias de navegação internacional. Resultado: o principal produto do Brasil, a grande fonte de divisas, que era o café, não podia ser exportado. O País não tinha como pagar sua dívida externa, que era enorme, e o governo Rodrigues Alves decidiu tomar providências. Naquela época assumiu a Diretoria de Saúde Pública (antecessora do Ministério da Saúde) o jovem cientista Oswaldo Cruz, que tinha estagiado em Paris e estava familiarizado com os progressos da microbiologia, decorrentes dos trabalhos de Louis Pasteur e seus discípulos.

    A revolta da vacina
    Oswaldo Cruz recebeu carta-branca para combater as pestilências, o que fez com muita competência e também com autoritarismo, através das campanhas sanitárias. No combate à febre amarela, a primeira das doenças que enfrentou, o modelo foi o da campanha feita pelos médicos militares em Cuba, que, depois da Guerra Hispano-Americana de 1898, tinha ficado sob a tutela dos Estados Unidos. Tratava-se de combater os focos de mosquito, coisa que deu resultado, reduzindo muito os casos de febre amarela. Seguiu-se o combate à peste bubônica, doença causada por um micróbio transmitido pela pulga de ratos. O foco foi o roedor, de novo com êxito. Mas no caso da varíola, uma doença para a qual já havia vacina, surgiram problemas sérios. A vacinação era obrigatória, feita por funcionários que não tinham muito tato para lidar com as pessoas. Além disso, o atestado de vacinação (fornecido, mediante pagamento, por médicos privados) era exigido para a obtenção de emprego. Havia a oposição política, não pequena, ao governo federal. Por último, mas não menos importante, os serviços de saúde pouco se comunicavam com a população, de modo que circulavam boatos assustadores sobre a vacina, que, sendo extraída da vaca, deixaria a pessoa com cara de bezerro. Resultado: eclodiu, em 1904, a chamada Revolta da Vacina, que deixou dezenas de mortos.

    Tempos depois Oswaldo Cruz deixou o cargo de diretor de Saúde Pública. Empreendeu então uma série de viagens; fez, por exemplo, a supervisão sanitária da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (“Mad Maria”), então em construção. Outros sanitaristas seguiram seu exemplo. Artur Neiva e Belisário Penna publicaram, em 1916, um impressionante relato sobre a miséria e as deprimentes condições de saúde no interior do Brasil. Para Artur Neiva e para um grande grupo de profissionais de saúde, a palavra-chave passou a ser saneamento. Não se tratava apenas de um objetivo, mas sim de uma verdadeira causa, tanto que para defendê-la foi criada, em 1918, a Liga Pró-Saneamento. O termo “liga” é muito significativo; evidenciava a união em torno de um movimento com objetivos amplos. À época surgiram a Liga Nacionalista, a Liga de Defesa Nacional (uma iniciativa de Olavo Bilac e que defendia o serviço militar obrigatório) e a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM). Instituições que refletiam o despertar do nacionalismo brasileiro – como o fez, no plano intelectual e artístico, a Semana de Arte Moderna de 1922.

    A Liga Pró-Saneamento foi presidida pelo médico Belisário Penna e teve como principal proposta a institucionalização do combate às endemias rurais por meio de uma política sanitária de caráter nacional, exercida de maneira centralizada pelo governo federal. Tinha apoio de intelectuais, como Monteiro Lobato, que, através de seu personagem Jeca Tatu, mostrava como a verminose enfraquecia os brasileiros. Como resultado da ação da Liga Pró-Saneamento foi criado, em nível federal, o Serviço de Profilaxia Rural, cuja direção foi entregue a Belisário Penna e que tinha por finalidade combater a malária, a ancilostomíase (uma verminose que dá anemia grave, o “amarelão”) e a doença de Chagas.

    Um engenheiro, um cientista e muitos barbeiros
    A Liga foi extinta depois que o Congresso Nacional aprovou a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em janeiro de 1920, que foi chefiado, até 1926, por Carlos Chagas, discípulo de Oswaldo Cruz e grande cientista. Sua história é exemplar. Em 1909 Chagas foi convidado para trabalhar para a Estrada de Ferro Central do Brasil, que planejava unir, por ferrovia, o Norte e o Sudeste do Brasil, de Belém do Pará ao Rio de Janeiro. As obras, contudo, estavam paralisadas – supostamente por causa da malária – na altura de um vilarejo chamado Lassance, no sertão mineiro. Chagas constatou que a doença, muito disseminada, não era malária. Os doentes queixavam-se do que chamavam de “baticum”: palpitações. Não raro o coração falhava, levando a pessoa à morte.

    À época, o diagnóstico para casos assim era o de sífilis, doença que, em estágios avançados, compromete o aparelho cardiovascular. Contudo, os moradores do lugar, desnutridos, apáticos, não pareciam propensos a doenças sexualmente transmitidas. E se fosse uma nova doença? O que a estaria causando? Como estaria sendo transmitida? Chagas estava às voltas com essas dúvidas, quando um engenheiro da estrada de ferro, Cantarino Motta, fez um comentário sobre a enorme quantidade de barbeiros no local. Insetos semelhantes a percevejos, os barbeiros têm hábitos noturnos: de dia escondem-se nas frinchas e frestas das casas de taipa ou pau-a-pique e à noite saem para picar os moradores, de cujo sangue se alimentam. Como as pessoas em geral estão cobertas, eles escolhem a face – daí o nome. Examinando ao microscópio o conteúdo do tubo digestivo desses insetos, Chagas fez uma grande descoberta: havia ali tripanossomos, um parasita composto de uma única célula. Ele decidiu verificar experimentalmente, em macacos, a possível capacidade de esse parasita infectar mamíferos. Enviou a Oswaldo Cruz alguns barbeiros, pedindo que tentasse infectar macacos de laboratório – o que foi feito, com resultados positivos.

    O microrganismo foi posteriormente denominado Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz. A infecção de mamíferos estava comprovada e em seres humanos foi confirmada pelo exame de sangue de uma criança de 9 meses. Era o primeiro caso em que demonstrava a associação do parasito com a doença – e com isso Chagas completava um trabalho extraordinário, inédito em medicina: descobrira uma nova doença, identificara o agente causador e o mecanismo de transmissão.

    A partir de 1930, com o incremento do processo de industrialização e urbanização ganha relevo a questão da assistência médica aos trabalhadores e suas famílias. Essa assistência era prestada sobretudo por órgãos previdenciários. Com isso, acentuou-se a cisão entre ações preventivas e curativas, entre saúde pública e assistência médica. Várias tentativas foram feitas para superar essa barreira. A Lei 6.229, de 1975, que criou o Sistema Nacional de Saúde, introduziu o conceito de ações integradas de saúde. Em 1986 reuniu-se em Brasília a VIII Conferência Nacional de Saúde, que postulou a intensificação desse processo. No ano seguinte surgiu o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). E a Constituinte de 1988, a Constituinte Cidadã, introduziu o Sistema Único de Saúde, SUS, que hoje é responsável por todas as ações de saúde no País, preventivas e curativas.

    Revista Carta Capital

    Palmares, a longa resistência

    Para o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos, Palmares, por sua longevidade de quase cem anos, é o mais importante capítulo da história social brasileira

    Palmares era um dos tabus trancados pela consciência conservadora. No fim dos anos 70, alguns historiadores começaram a revelar essa história. Foto: Marcelo Carnaval

    No fim dos anos 60, o futuro premiado escritor Joel Rufino ainda era um professor de História sem emprego, a caminho de uma entrevista na Volkswagen, quando, por acaso, encontrou uma ex-aluna que estava envolvida na criação de uma revista para crianças, a Recreio. Convidado a escrever alguma história infantil, o historiador, que tinha visto sua coleção didática História Nova do Brasil, escrita em parceria com Nelson Werneck Sodré, ser recolhida pela ditadura, viu ali uma oportunidade, mesmo sem nunca ter feito isso antes. E a editora da revista, a futura premiada Ruth Rocha, gostou do que leu e pediu mais. Assim, por acaso, começou a carreira de escritor Joel Rufino, que nunca mais seria só historiador. Nem apenas um escritor de boas histórias, pois nelas sempre há, por trás, os livros lidos por direito e dever de ofício. Nesta entrevista, concedida a Ricardo Prado, o historiador indica bons livros para ensinar a cultura afro-brasileira e discute alguns mitos sobre a história dos negros. E o escritor declara seu tributo a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Ou o contrário: o historiador fala do sertão rosiano e o escritor conta como extraiu literatura do rico período da abolição.

    Carta na Escola: O que o senhor descobriu sobre o tipo de texto que mais agrada a crianças e jovens?

    Joel Rufino: Eu fazia a crítica de que a literatura para crianças era boba, tratando a criança como débil mental. Até hoje tem isso, aquela profusão de “inhas”, “inhos”, e eu achava que alguém deveria fazer literatura pra criança sem tratá-la dessa forma. Havia o antecedente de Monteiro Lobato…

    CE: O senhor foi leitor de Monteiro Lobato na infância?

    JR: Não, foi até uma falta que me fez. Não sei por quê, mas não fui leitor de Lobato, não. Quando era adolescente, lá pelos 12 anos, comecei a ler Júlio Verne e Jack London, e ficou esse furo na minha formação. Mas o que me motivou a escrever foi, de uma forma semelhante, o que aconteceu com o Gonzaguinha na música. Eu me lembro que ele foi perguntado sobre como começou a compor e ele disse que achava tão ruim o que ouvia que pensou: “Eu posso fazer melhor que isso”. Aí, eu comecei a procurar uma linguagem que não fosse aquela coisa infantiloide, e acho que encontrei esse estilo em grandes autores que escreveram para crianças também, como o Graciliano Ramos. Alexandre e Seus Heróis foi um desses livros que me ensinaram como tratar a criança como um leitor, provável consumidor de literatura. Acho que foi assim que consolidei o meu estilo, longe do “nhenhenhém” infantiloide e me amparando nos grandes autores.

    CE: Em O Gosto da África há alguns ecos de Guimarães Rosa, como a referência à cidade do Ão, perto de Montes Claros. Ele, de alguma forma, também se situa entre esses autores que o influenciaram?

    JR: O Guimarães Rosa motivou todos aqueles que vieram depois. Ele reinventou a literatura, como todo grande autor. Essa referência ao Ão devia estar na minha memória, no meu imaginário. Aquela região do Guimarães Rosa ele tornou tão poderosa que é difícil esquecer; o lugar, como os geógrafos gostam de chamar, que une o local geográfico mais o imaginário. Esse lugar recriado pelo escritor aparece nas minhas histórias, de vez em quando.

    CE: Até pela sua formação de historiador, o senhor gosta de usar personagens históricos na literatura. Eu gostaria, inicialmente, de falar de um deles, Zumbi, que foi tema de um livro seu. Como foi fazer esse trabalho de pesquisa? E por que Zumbi demorou tanto tempo para aparecer?

    JR: Esse meu livro é dos anos 80, tem 20 anos. De lá pra cá, nós aprendemos um pouco mais sobre o Quilombo dos Palmares e Zumbi. De passagem digo que é conversa fiada aquela história de que não se consegue fazer pesquisa sobre os negros porque Rui Barbosa teria queimado os arquivos, isso é uma lenda. Há muita documentação sobre os negros, sob todos os aspectos. E no caso de Palmares, há pelo menos 10 mil manuscritos, fragmentos de documentação histórica que ainda não foram completamente lidos e decifrados. Só a Universidade Federal de Alagoas tem mais de 5 mil desses documentos sobre Palmares.

    CE: Talvez por conta da longevidade do quilombo?

    JR: É uma extensão de quase cem anos. Se a gente pensar que o Brasil tem cinco séculos, é o capítulo mais importante da história social do País, pela sua duração. Aqui entramos na segunda parte da sua pergunta: por que demorou tanto tempo para emergir? A razão só pode ser ideológica. A consciência conservadora brasileira sempre foi muito sensível a mexer na história, havia alguns tabus: João Cândido, Canudos. E Palmares era um tabu também, que ficava trancado pela consciência conservadora. No fim dos anos 70, alguns historiadores começaram a revelar essa história. Como Décio Freitas, por exemplo, que estava exilado no Uruguai e foi pesquisar a história de Palmares no Conselho Ultramarino da Espanha. Ele conseguiu reunir uma documentação que lhe permitiu escrever o primeiro livro de impacto sobre Palmares, que foi A Guerra dos Escravos. Outro avanço veio de um filme do Cacá Diegues, feito nos anos 80, chamado Quilombo. Cacá partiu desse livro do Décio, consultou outros historiadores e fez um filme que é alegórico, não é realista, mas no qual já surgem alguns elementos sobre Palmares de que não se falava antes. Se fosse resumir esse filme, eu diria que é a história de um negro portador da ideia da utopia, de uma sociedade justa, igualitária. Por último, vou citar o movimento negro, que descobriu Palmares nos anos 80 e transformou a Serra da Barriga em local de peregrinação. Hoje, o quilombo é -visitado por muita gente, recebe acadêmicos do mundo todo. Quando o movimento negro descobriu Palmares, colocou Zumbi como uma bandeira.

    CE: É quando a história da escravidão começa a mudar da Princesa Isabel e dos abolicionistas para o aspecto de luta e resistência?

    JR: O que aconteceu é que começou a se fazer a seguinte analogia: a história do negro é uma história de luta. Será que no 13 de Maio também não houve luta? Será que foi apenas um ato formal da Princesa Isabel para confirmar um fato já dado? Daí se começou a estudar melhor o processo da Abolição. Alguns historiadores começaram a rever o 13 de Maio e mostrar que houve luta também naquela época. Eu tomo essa revisão como consequência de Palmares.

    CE: Especulando sobre como seria uma outra história construída a partir da Abolição, seria possível para o Brasil ter seguido um caminho que colocasse essa massa de trabalhadores para dentro do sistema econômico?

    JR: Considerando que o historiador é aquele que prevê o passado, se pegarmos 1850, quais eram as possibilidades que havia? Era um momento em que nascia o capitalismo brasileiro e ele trazia várias possibilidades de desdobramento. Havia nessa época uma camada de negros livres, donos de pequenos negócios. Joaquim Nabuco chamou essa camada de um “formigueiro de pequenas iniciativas feitas por negros”, que tinham suas oficinas e outros pequenos comércios. Olhando de hoje, uma das possibilidades era essa camada de negros livres ter se tornado uma burguesia negra, uma classe média negra. Então seria diferente hoje. Mas esse “formigueiro de iniciativas” foi eliminado pela concorrência. Em 1900, essa camada já estava derrotada pelos estrangeiros imigrantes, que chegavam com capital, muitas vezes apoiados por bancos ou pelo governo, que lhes dava facilidades. Assim, essa camada negra protoburguesa desaparece.

    CE: O senhor também escreveu sobre essa época em seu livro A Abolição, que virou minissérie de televisão. Esse livro surgiu como uma proposta da emissora?

    JR: Você está falando de um livro que foi a base de uma minissérie do Walter Avancini, não é? Você tem esse livro?

    CE: Eu o li na Biblioteca Nacional. Por quê?

    JR: Porque eu acabei ficando sem nenhum! (risos) O Avancini, já falecido, era meu amigo e queria fazer uma história sobre a Abolição e outra sobre a Proclamação da República. E me estimulou a escrever alguma coisa. Foi uma encomenda e eu a escrevi quase ao mesmo tempo que dava os argumentos para o Avancini. Foi interessante mexer naquele ambiente de jornalistas (a revista Semana Illustrada, dirigida por Angelo Agostini, reduto de abolicionistas) e dos intelectuais, que naquele momento fizeram aliança com a classe trabalhadora, no caso os escravos. Quando essa aproximação acontece, em geral provoca mudança. E foi esse o primeiro caso na história do País, porque na Independência essa aliança não aconteceu, nem nos movimentos anteriores. Ou eram grupos de intelectuais sem conexão com os trabalhadores ou o contrário. Na Abolição houve esse encontro de intelectuais, principalmente jornalistas, como Angelo Agostini, Carlos Lacerda, e os quilombolas, os organizadores dos escravos. Houve, também, participação dos trabalhadores livres. Nessa época já chegavam por aqui os italianos e espanhóis, no meio deles muitos anarquistas, que participaram dessa luta. Muita gente no movimento negro diz que a abolição não tem nenhuma importância, mas eu não concordo. Inclusive, porque manifestou um processo mais geral de transformação que o País estava passando. Daí que tem relação direta com a Proclamação da República e o início da economia capitalista no Brasil. É na passagem do trabalho escravo para o livre que deslancha o capitalismo no País.

    CE: Que autores o senhor recomendaria para quem quer saber mais sobre a Abolição?

    JR: Essa nova geração de historiadores é muito boa. Há João José Reis, que publicou um “senhor livro” sobre esse período chamado Domingos Sodré, um Sacerdote Africano, que conta a história de um babalaô de Salvador que viveu no fim do século XIX. Lilia Schwarcz também é uma historiadora respeitável. Há, ainda, Eduardo Oliveira, que vem publicando sobre esse período. Qualquer professor vai ler livros desses autores com agrado porque, hoje, um historiador publicado é perfeitamente legível por alguém que não é do ramo. Outro exemplo, ainda, é Alberto da Costa e Silva, que talvez seja o principal historiador desse processo Brasil-África. Ele tem um livro que eu recomendaria efusivamente, Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos. Esse é um pequeno livro que conta a história do principal mercador de escravos para o Brasil, que era um mestiço brasileiro que foi para a África e fez fortuna. Daí, o leitor fica sabendo como era o tráfico negreiro, como se fazia no dia a dia, quanto se ganhava. De passagem, derruba aquele mito de que a escravidão foi um assalto do homem branco impiedoso em busca de mão de obra. Mostra-se ali que a escravidão foi um negócio, um empreendimento. Nei Lopes é outro que tem uma preciosa Enciclopédia da Diáspora Africana. Todos esses livros são de boa leitura. Além disso, a Unesco financiou um programa internacional chamado Rota do Escravo, que fez um mapeamento das fontes e dos documentos sobre o tráfico negreiro na África, nas Américas e na Europa. Só para dar um exemplo, todos os fortes africanos que embarcavam negros para o Brasil têm a sua documentação. Não falta documentação sobre esse período, é bom lembrar que a história não se faz só com documentos de papel. A língua, por exemplo, é um documento da história. A genética também tem ajudado os historiadores a descobrir de onde vieram os escravos.

    CE: Que mitos sobre a história do negro são os mais persistentes?

    JR: Nós já citamos dois, o de que o comércio de escravos era unilateral; outro, de que não dá pra fazer a história do negro porque não há documentação. Um terceiro seria o de que há uma história do negro e uma história do Brasil que correm paralelas. É possível separar a história do negro pedagogicamente, mas é só se avançar um pouco para perceber que quem fala da história do negro fala da história do País. Outro, ainda, que está imbricado em todos os anteriores, é o mito da passividade do negro. Quando eu estava na escola, se dizia que o escravo no Brasil foi o negro porque o índio não se submeteu à escravidão. Esse é um mito de duas faces. Uma, a de que o índio não se submeteu; outra, a de que o negro se submeteu. Nenhum povo se submete à escravidão. No caso do índio, ele lutou contra a escravidão, mas também foi escravo. Por muito tempo, até o século XVIII, mais tempo do que no resto da América espanhola, durante quase 250 anos.

    Revista Carta na Escola