sexta-feira, 13 de março de 2009

Verdes ‘avant-garde’

Sob inspiração iluminista, cientistas do século XVIII, reunidos em academia no Rio, empenharam-se em descobrir, classificar e avaliar as riquezas da flora brasileira
Vera Regina Beltrão Marques

Séculos antes de se inventar a palavra “ecologia”, um grupo de cientistas já se voltava, aqui, para a defesa intransigente do verde. Não se falava ainda em espécies ameaçadas, desequilíbrio ambiental e outros temas hoje tão candentes. O interesse desses estudiosos, e daqueles que os patrocinavam, era científico, mas também mercantil. Já existia entre eles, no entanto, a percepção da importância de se conhecer e preservar plantas e árvores da colônia, sobretudo como fontes de divisas. Nos primórdios desse processo de conhecimento e classificação da nossa flora, uma instituição – a Academia das Ciências e da História Natural do Rio de Janeiro, primeira academia científica do Brasil – teve papel fundamental.

Sua primeira sessão realizou-se no dia 18 de fevereiro de 1772. Curiosamente, ela surgia aqui, na Colônia, antes mesmo da criação da Academia de Ciências de Lisboa, em 1780. E havia uma explicação para isso. A metrópole sempre esteve mais interessada no ouro e nas pedras preciosas que podia retirar do Brasil. Com o gradativo esgotamento das minas é que começou a voltar os olhos para a nossa flora. Afinal, a natureza brasílica oferecia amplas e ainda inexploradas possibilidades econômicas, o que levou o célebre naturalista Lineu, criador de um sistema de classificação de plantas em uso ainda hoje, a comentar: “Se os portugueses conhecessem os bens que entre eles depositou a natureza, quão infelizes seriam todos os outros, que não possuem terras exóticas!”

Desde o fim do século XVII, as descrições da flora ultramarina haviam se tornado uma prática comum no universo europeu. Muitos começavam a entender a investigação científica como motor do progresso material. A natureza passava a ser pensada como uma máquina geradora de divisas, e a ciência era a técnica com a qual se podia explorá-la. As academias surgiam, assim, como “congregações do saber”. Nelas se reuniam homens notáveis, prontos a auxiliar os governos em questões de ciência e técnica que englobavam inúmeras áreas do conhecimento, como economia, meteorologia, solos, clima, fauna, flora etc. Nossos acadêmicos, a exemplo de outros “ilustrados” europeus, sabiam que para aproveitar as vantagens que a natureza oferecia era necessário conhecer perfeitamente a terra e as riquezas que ela poderia produzir.

O marquês do Lavradio, ao assumir o vice-reinado do Brasil em 1769, trouxe com ele um médico e dois boticários, como eram chamados os farmacêuticos, todos sintonizados com os novos rumos da ciência. Foi sob os auspícios do marquês que nasceu a nossa primeira academia científica. O presidente era o médico José Henriques Ferreira e o secretário, o cirurgião Luís Borges Salgado. Os boticários Antônio Ribeiro Paiva e Manoel Joaquim Henriques de Paiva ocuparam os cargos de diretor de História Natural e diretor de Farmácia, respectivamente. Como não existia instituição semelhante em Portugal, nossa academia ligou-se à Academia de Ciências da Suécia, o que, virtualmente, dava mais liberdade a seus associados.

Foi de alguns deles que partiram as mais duras críticas ao tratamento dado à História Natural no reino português. Em carta enviada à metrópole, José Henriques Ferreira, que era o médico particular de Lavradio, disse que Portugal, ao dar mais importância ao mundo mineral, explorava de forma equivocada seus domínios de ultramar. Ele considerava as plantas produtos de primeira necessidade, pois nutriam, curavam e vestiam a gente da colônia. Na sua opinião, todo o interesse e a cobiça do reino recaíam sobre os metais e as pedras preciosas, ignorando os valiosos grãos que a natureza produzia. Na carta, ele enumerava vários produtos úteis à medicina e ao comércio, que, se cultivados, em muito adiantariam as finanças de Portugal e a saúde dos homens.

Ferreira não foi o único cientista português do século XVIII que assumiu essa postura. Seus registros refletem o pensamento de toda uma geração de ilustrados que começava a se formar, e cuja atenção à natureza acabaria por inspirar e estimular ações oficiais da Coroa. Boticários, médicos e cirurgiões mantinham estreitas ligações com a natureza. Dela provinham as plantas curativas das quais extraíam seus medicamentos.

Esse processo começou com a chegada a Portugal, em 1764, do naturalista italiano Domenico Vandelli. Ele foi contratado pelo marquês de Pombal para participar da ampla reforma educacional que este ministro do rei D. José I (1750-1777) promoveu em Portugal. O fato trouxera para a ordem do dia os estudos de História Natural. A partir daí, caixotes passaram a atravessar o Atlântico conduzindo à metrópole exemplares da flora e da fauna das colônias. O empenho de Lavradio, apoiando a criação da Academia no Rio de Janeiro, encaixava-se nos objetivos de Pombal: incentivar aqui o desenvolvimento da História Natural. Além disso, o vice-rei, com conhecimentos e interesse na matéria, sabia que sua política de estímulo às produções naturais não se manteria sem a atuação de uma sociedade que investigasse novos produtos comercializáveis.

A instituição, no seu entender, não só prestaria um serviço utilíssimo ao reino como poderia romper com um antigo ciclo de dependência e acabar com a vergonha de que os “estrangeiros sejam os que nos instruam, e se aproveitem destas preciosidades que nós temos”. Em suma, era preciso aprender a decifrar a natureza do Brasil para melhor utilizá-la. Os primeiros acadêmicos buscavam atualizar-se e divulgar seus achados, trocando informações com cientistas de outros países. José Henriques Ferreira e Manuel Joaquim Henriques de Paiva, por exemplo, se correspondiam com o médico Antônio Nunes Ribeiro Sanches, um dos principais inspiradores do iluminismo português e da reforma dos estatutos da Universidade de Coimbra.

Os contatos com cientistas estrangeiros reforçavam a importância de se conhecer o que a natureza oferecia, de remédios naturais a produtos a serem explorados. Ribeiro Sanches sabia que se Portugal pretendesse “entrar no gênio das nações” deveria investir, pois “sem fazer avanços e sem gastar, jamais haverá nem ciências, nem artes, nem comércio, nem estado civil”.

Foi por intermédio de Ribeiro Sanches, aliás, que Lineu teve notícia da fundação da academia brasílica, fomentando a discussão dos achados neste lado do Atlântico. E, possivelmente, desses intercâmbios resultou a filiação da Academia Científica do Rio de Janeiro à Academia de Ciências da Suécia, terra do grande Lineu. Os acadêmicos se reuniam às quintas-feiras na sede e aos sábados, no posto botânico próximo ao antigo Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, onde eram apresentadas dissertações e memórias sobre plantas, notícias de novas descobertas, e elaborados projetos para o progresso da agricultura, da indústria e do comércio. Os acadêmicos nomeados de outras terras, como Bahia, Minas, Colônia, Santa Catarina etc, tinham, pelo estatuto, a obrigação de “comunicar as notícias e observações notáveis, remetendo plantas, pedras, animais, excrescências, fungos, sementes, declarando nomes, virtudes, lugares onde foram coletados e descrições” com todas as propriedades e, se possível, plantas em “cascões” com terra.


A existência de um horto botânico no Rio de Janeiro garantia espaço para ações práticas. Era um local para se aprender e ensinar, proporcionando aos sócios e correspondentes ambiente para discutir temas e experimentos científicos, inclusive os realizados com espécies vindas de outros locais, como a cochonilha, por exemplo, que servia para fazer tinta, encontrada na Ilha de Santa Catarina e transportada em caixotes para o Rio de Janeiro. Tudo era feito em sintonia com o ideário dos acadêmicos e com as necessidades do reino. As Memórias de História Natural, de agricultura, artes e medicina, publicadas em Lisboa em 1790, tratam de várias plantas estudadas no Brasil, como a fava purgativa ou feijão peruviano, chamado também de mucuná, e a guaxima, matéria-prima do linho com o qual se pretendeu substituir o linho de Riga usado na Marinha portuguesa.

O mucuná, utilizado como purgativo pelos indígenas e caboclos, foi denominado “Lavradio”, em homenagem ao vice-rei. A jalapa, ou batata-de-purga, outra planta de ação laxante, também foi estudada. Pensavam que só existia no México, mas Antônio Ribeiro Paiva descobriu que os jesuítas a cultivavam e vendiam “ocultamente” sua raiz e a resina, com o nome de “jalapa do México”. Assim, “importava-se jalapa dos espanhóis”, como sendo a verdadeira, quando ela já existia no Brasil. Num relatório, o marquês de Lavradio foi bastante enfático ao mostrar que seu governo não mediu esforços para incentivar a cultura de produtos considerados estratégicos. O anil, por exemplo, quando entregue pelos lavradores aos armazéns da Provedoria da Fazenda, era pago à vista, para estimular seu comércio. Todas as culturas contavam com o apoio dos acadêmicos, que não deixavam de divulgar estudos a respeito de cada uma.

Nossa primeira academia científica funcionou até o regresso do marquês de Lavradio a Lisboa, em 1779. Embora tenha tido curta duração, seus feitos são muito importantes. No correr dos anos, trabalhos nela iniciados iriam levantar questões fundamentais e atualíssimas, como, por exemplo, a biopirataria praticada na Amazônia por pesquisadores estrangeiros. Ainda no século XIX, o renomado naturalista Francisco Freire Alemão (1797-1874) se recusava a atender de pronto a pedidos de envio de plantas, para serem classificadas “em conjunto” por instituições européias. Ele proclamava: “Nessa não caio eu (...) hei de remetê-las somente depois de publicadas as descrições; a diagnose há de ser minha, boa ou má. Não é pouco vê-los na Europa desfazendo o que eu faço e corrigindo, mudando e dando a outrem o que a mim pertence”.

A academia possibilitou, enfim, a circulação de uma cultura científica por meio do aprendizado das ciências da natureza, introduzindo práticas “ilustradas” no rude espaço da colônia. Mais ainda, alinhavou projetos que se converteriam em política prioritária, antecipando as explorações de cunho naturalístico que percorreriam mais tarde o interior do Brasil. Foram as riquezas da flora brasileira que fizeram retornar à metrópole os lucros que começaram a escassear quando o ouro parou de “jorrar das minas”.

Vera Regina Beltrão Marques é professora na Universidade Federal do Paraná e autora de Natureza em Boiões – Medicinas e Boticários no Brasil Setecentista. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

Saiba Mais - Bibliografia:

HOEHNE, F.C. O Jardim Botânico de São Paulo - Precedido de prólogo histórico e notas biobibliográficas de naturalistas botânicos que trabalharam para o progresso do conhecimento da flora do Brasil, especialmente no estado de São Paulo. São Paulo: SAICSP, 1941.

Revista Nossa Historia - Biblioteca Nacional

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