domingo, 1 de março de 2009

Émile Zola- entre a genialidade e a justiça

A fama do escritor francês veio não só de suas obras como também de seu empenho em defender a absolvição de um condenado, desafiando a justiça e a política de sua época.
por Henri Mitterand

Émile Zola no escritório parisiense em 1868, em retrato feito pelo amigo Manet

Junho de 1908. Os restos mortais de Émile Zola são levados ao Panthéon. Um fanático nacionalista e anti-semita, Gregori, dispara contra o comandante Alfred Dreyfus e o fere no braço. As brasas do caso Dreyfus não estão extintas, os velhos rancores permanecem vivos. Em 29 de setembro de 1902, a morte de Zola, por asfixia em seu apartamento da rue de Bruxelles, fora talvez a conseqüência de um atentado. Três teses se contrapuseram a esse respeito: a da investigação oficial, que concluiu por um acidente, a de uma investigação particular feita em 1952, que apoiou em testemunhos indiretos a hipótese de um ato criminoso, e uma outra, recente, do comissário Marcel Leclère, que se inclinou pela hipótese de uma morte involuntária, resultante de erro. Em 30 de setembro de 1902, La Libre Parole, jornal do líder anti-semita Drumont, dizia na manchete de primeira página que Zola havia sido asfixiado. Alguns choraram, outros aplaudiram. Zola era então, e desde muito tempo, objeto de admirações incondicionais e de ódios irreconciliáveis; literários, morais, políticos. Ele jamais detestou isso.

Émile Zola nasceu em 10 de abril de 1840, no coração de Paris, filho de um engenheiro de origem veneziana, Francesco Zola, e de Emilie Aubert, natural da região da Beauce, 24 anos mais jovem que o marido. François Zola construiu em Aix-en-Provence a barragem e o canal Zola. Morreu em 1847 das seqüelas de um resfriado. Seu filho, órfão aos sete anos, viveu em Aix até perto dos 17, enfrentando dificuldades cada vez maiores, pois a família foi enganada pelos homens que se apoderaram da empresa do canal Zola. É assim que se formam os revoltados. No colégio Bourbon de Aix-en-Provence, ele teve como companheiro mais próximo Paul Cézanne, filho de um banqueiro, que sonhava em pintar com o mesmo ardor com que ele sonhava em escrever. Encontro extraordinário de dois garotos que lançariam por terra todas as convenções da arte. Quando Zola "subiu" para Paris, em fevereiro de 1858, foi um rude golpe em uma amizade que ainda se prolongaria por quase 30 anos.

Aluno do liceu Saint-Louis, ele fracassou no exame de conclusão do ensino médio em 1859. Estava mais interessado no espetáculo da cidade, revirada e reconstruída pelos pedreiros de Haussmann, do que nas aulas. Ele não insistiu. Seguiram-se três anos de vida boêmia nos alojamentos a preço módico da colina Sainte-Geneviève. Zola perambulava, vagava pelos ateliês de pintura na companhia de Cézanne, leu todos os clássicos e todos os românticos e compôs milhares de versos, pois se imaginava poeta. No decorrer do inverno de 1860-1861, teve um relacionamento com uma mulher tão pobre quanto ele. Chamava-se Berthe, é tudo que se sabe a seu respeito. Ela passava de amante em amante, levando ao desespero seu poeta famélico. Eles se separaram. Talvez ela tenha libertado o verdadeiro gênio de Zola, que voltou as costas à elegia romântica e se inscreveu na rude escola do real. Seu primeiro romance, La confession de Claude, em 1865, fez a transposição de sua aventura.

Fim do período boêmio. Em março de 1862, uma recomendação o fez ingressar na Librairie Hachette, famosa editora francesa. Zola agarrou com as duas mãos a chance que passava. Encarregado da publicidade e da distribuição dos livros à imprensa, atendia ao mesmo tempo editores, escritores e jornalistas, o que lhe permitiu organizar rapidamente uma valiosa agenda de endereços. Lendo os autores da Hachette e das outras editoras, educou-se como livre-pensador. Aos 25 anos, crítico literário, cronista e logo crítico de arte, afirmava bem alto sua admiração pelos escritores e artistas que desafiavam o conformismo: os Goncourt, Flaubert, Courbet, Manet. Enquanto todos os críticos oficiais cobriam de injúrias o pintor de Déjeuner sur l\\'herbe e de Olympia, ele bradou em L\\' Evénement: "O lugar do sr. Manet é no Louvre!"

Seguiram-se alguns anos difíceis. Zola deixou a Hachette, no início de 1866, para viver exclusivamente de sua pena, de um pequeno jornal a outro, produzindo na base de um romance por ano. Ora, o pagamento dos textos era irregular e os romances não davam retorno. Ele tinha a seu encargo a mãe e a mulher, Alexandrine. Felizes os escritores que tinham boas rendas, como Flaubert e os Goncourt. Zola estava o tempo todo contra a parede.

Paradoxalmente, foi o Império que o livrou das dificuldades. Em maio de 1868, Napoleão III liberalizou o regime da imprensa. Os jornais oposicionistas surgiram como cogumelos depois da chuva. Zola ingressou em La Tribune, onde atuou durante dois anos. Por meio de amigos de Victor Hugo, teve abertas as colunas do Rappel, mais ferozmente republicano que La Tribune. A abdicação de Napoleão III o preservou no último instante de uma condenação por estímulo ao menosprezo pelo governo. A propaganda democrática o alimentava, e ele não pedia mais do que isso. Mas o que fazer em uma Paris atacada pelo exército prussiano, durante a Guerra Franco-prussiana (1870-1871)? Em 7 de setembro de 1870, os Zola conseguiram embarcar em um dos últimos trens que deixaram a estação de Lyon. Passariam o fim da guerra em Marselha, onde Zola fundou um jornal hoje desaparecido, La Marseillaise, e depois em Bordeaux, onde ele se fez contratar como cronista parlamentar de La Cloche. Cada vez que, no decorrer desses cinco anos, o solo ameaçava afundar sob ele, Zola retomava pé com uma rara habilidade tática e com um desprezo crescente pelo pessoal político.

A coleção de 20 volumes sobre os Rougon-Macquart nasceu em boa medida de seu desencantamento. Em 1868 ele concebeu a idéia de uma "história natural e social de uma família sob o Segundo Império", um pouco por razões de subsistência, um pouco para desafiar a lembrança de Honoré Balzac e de La comédie humaine, e mais ainda para dar forma romanesca a sua visão da sociedade contemporânea. Vinte e cinco anos de trabalho ininterrupto entre 1871-1893. O primeiro romance, La fortune des Rougon, foi concluído quando a guerra de 1870 interrompeu sua publicação em folhetins. Seguiram-se 19 outros, pontuados pela balbúrdia de alguns escândalos: L\\'Assommoir, em 1877, Nana, em 1880, La Terre, em 1887.

Tantos mundos e condutas observados e compreendidos em sua violenta verdade. Um acerto de contas libertário com as hipocrisias bem-pensantes; uma expansão contínua da sátira e da ironia. Uma montagem exagerada, excessiva, no estilo de Flaubert. É assim a crônica monumental dos Rougon-Macquart, na qual com freqüência o sexo e a morte fazem par e onde se encontram a cada instante estranhezas mais surrealistas que "naturalistas".

Nesse processo, Zola terminou por conquistar fortuna. A família deixou seus alojamentos modestos em Batignolles para se instalar em Paris. Eles freqüentavam os salões de alguns amigos mais próximos, entre eles o editor Charpentier, os Manet, Flaubert. Em 1878 compraram uma casa de campo em Médan, aldeia da Île-de-France que seria imortalizada em Les soirées de Médan. Zola aparecia como chefe de escola, mas seus sucessos lhe valeram tanto o ciúme quanto a admiração.

Ninguém era mais caricaturado do que ele. O romancista obstinava-se em querer entrar para a Academia Francesa, mas sempre encontrava as portas fechadas. Sua estatura aumentou em meio a polêmicas, às quais permaneceu indiferente. A República jamais o defendeu. Depois de L\\'Assommoir, seu nome foi retirado das listas das condecorações futuras. Ele esperaria até 1888 pela cruz de cavaleiro da Legião de Honra.

A riqueza, o sucesso, as honrarias não o tornaram feliz. A morte da mãe, depois a do velho amigo Flaubert, em 1880, conduziram-no à beira da depressão. Os anos passavam, sempre os mesmos. De tempos em tempos, Zola deixava escapar uma confissão, inesperada e secreta, como esta, no esboço de Le revê: "Eu, o trabalho, a literatura que devorou minha vida, e as perturbações, a crise, a necessidade de ser amado...". Tudo está dito. E tudo está pronto para outra coisa.

Na primavera de 1888, Alexandrine cometeu a imprudência de contratar em Médan uma jovem criada de origem borgonhesa, cujos traços seriam capazes de encantar um pintor: Jeanne Rozerot, de 21 anos, uma Vênus escondida sob o avental. Cinco anos mais tarde, a dedicatória do Docteur Pascal a Jeanne diria o essencial: "À minha bem-amada Jeanne, a minha Clotilde, que me deu o banquete real de sua juventude e que trouxe de volta meus trinta anos, ao fazer-me presente de minha Denise e de meu Jacques, os dois queridos filhos para quem escrevi este livro, para que saibam, lendo-o algum dia, o quanto adorei a mãe deles". A redescoberta dos prazeres da carne, o amor paterno, em nada mudaram a curiosidade de Zola pelos assuntos de sua época. O ciclo dos Rougon havia contado a história de um regime que não existia mais. A série Les trois villes com três livros: Lourdes (1894), Rome (1896) e Paris (1898) iria se abrir às agitações das cidades modernas.

Quando esse último romance apareceu, em março de 1898, foi envolvido pelo turbilhão de "J\\'Accuse...!" (leia o texto na página 25). Em 1894, Zola não conheceu o processo do capitão Dreyfus. No entanto, o anti-semitismo ambiente o enojava. Quando o comandante Esterhazy, o verdadeiro traidor, foi absolvido, em 11 de janeiro de 1898, Zola lançou todo o peso de seu nome em um confronto direto com os ministros, os juízes militares e os generais. Nada sobreviveria da honra deles, abatida por uma inquirição implacável. A França inflamou-se, os "intelectuais" se mobilizaram, os estados-maiores e os gabinetes ministeriais ficaram em pânico, fez-se condenar Zola a um ano de prisão, mas a trama do tenente-coronel Henry, chefe dos serviços de informação, caiu por terra. A revisão do processo de 1894 estava em andamento. Era preciso resolver-se a repatriar Dreyfus, preso desde 1895 na ilha do Diabo. Zola correu todos os riscos, pagou com um ano de exílio na Inglaterra a eficácia de sua eloqüência; mas salvou o oficial judeu.

Sua vida iria se concluir com essa derradeira bofetada no establishment. Ele começou um novo ciclo, a série Les quatre Evangiles, mas morreu antes de haver escrito o quarto. Voltou os olhos para a profecia utópica de um século XX que imaginava marchar para a fraternidade e a felicidade. Em resumo, ele desapareceu a tempo, antes de assistir ao eterno retorno da barbárie.

Uma ferida na honra francesa
Em 1894, o judeu Alfred Dreyfus, oficial do exército francês, foi acusado de ser um suposto informante a serviço do governo alemão. O crime foi enquadrado como alta traição e o acusado sofreu um processo fraudulento conduzido a portas fechadas. A farsa foi acobertada por uma feroz onda de nacionalismo e xenofobia que invadiu a Europa no final do século XIX. Dias soturnos já avistados em 1886, com o lançamento do panfleto anti-semita de Édouard Drumont intitulado A França judia.

A perseguição ao oficial começou quando Madame Bastian, encarregada da limpeza na embaixada alemã em Paris, descobriu uma carta no cesto do lixo do adido militar alemão, o tenente-coronel Schwarzkoppen. O achado caiu nas mãos do serviço secreto francês, que concluiu ser o escrito a prova da existência de um traidor entre o corpo militar. Um bode expiatório fez-se necessário. Seu nome: Alfred Dreyfus, condenado à prisão perpétua na ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa.

Em 1898, evidências de sua inocência possibilitaram um segundo julgamento. Mais uma encenação. A permanência da sentença anterior provocou a indignação de Émile Zola, peça-chave da campanha pelo indulto do militar injustiçado. Zola fez excelente uso do único meio de mobilização da opinião pública na época: a imprensa escrita. Seu golpe de mestre veio em 1898, com a publicação de J\\'Accuse, a célebre carta aberta ao presidente da República Félix Faure, publicada pelo jornal L\\'Aurore.

Indignado, o escritor endereça uma reprimenda à França: "Como poderias querer a verdade e a justiça, quando enxovalham a tal ponto todas as tuas virtudes lendárias?". A polêmica agrupou os franceses em duas frentes de batalha: os dreyfusards e os anti-dreyfusards. Provocador da balbúrdia, Zola foi condenado a um ano de prisão por difamação. Resolvido com o exílio de um ano na Inglaterra.

Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy, major do exército francês, foi o verdadeiro autor da carta, desmascarado, em grande parte, graças aos esforços de Zola. Infelizmente, Zola, não assistiu à revisão do processo, que promoveu a reabilitação do oficial em 1906.

Raphaella de Campos Mello

Henri Mitterand é professor emérito na Sorbonne Nouvelle. Publicou numerosos textos sobre a obra de Zola e sobre os romancistas dos séculos XIX e XX.

Revista Historia Viva

3 comentários:

Unknown disse...

Sempre aprendo muito quando venho aqui. Mas hoje além de aprender conheci um contemporâneo de um dos meus autores preferidos Honoré de Balzac.
Não importa a época, a era, enfim o escritor daquela é poca e da atual, tem uma luta árdua.Alguns tem o apoio da mídia e voam como pássaros com uma péssima literatura de auto ajuda e ainda vão para a Academia Brasileira de Letras!
Triste mundo esse!

Parabens, amigo

Um forte abraço

Mirze

GoldShine disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Café da Madrugada® Lipp & Van. disse...

Acredito que quando se confronta os conformismos e as 'autoridades' ... ou qualquer idéia já imposta, adquiri-se inimigos, e admiradores. Mas... sempre mais inimigos. E se não tiver apoio de todos que admiram os seus atos reivindicadores, o fim é sempre o mesmo.
E talvez, anos mais tarde pode ser reconhecido. rs.